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JEAN DE LÉRY – PARTE 10
CASAMENTO, A POLIGAMIA E CUIDADOS COM OS RECÉM-NASCIDOS ENTRE OS INDÍGENAS

E a história de Jean de Léry (1536-1613) continua. Léry é aquele que entrou de gaiato no navio, ao acreditar na balela do poderoso Nicolas Durand de Villegaignon, embarcando em um dos navios franceses que vieram colonizar a porção Antártica da França. O relato que o artesão e futuro pastor calvinista deixou é precioso porque, depois da carta de Pêro Vaz de Caminha, que foi um relato oficial da expedição de Cabral, Jean de Léry era francês e deixou tudo como ele viu e sentiu. Não tinha interesse em agradar ou desagradar quem quer que fosse. Nesta Parte 10, Jean de Léry conta como os índios promovem seus casamentos e as regras para conseguir uma esposa. Explica, também, como acontece a cerimônia matrimonial.
SOBRE O CASAMENTO E OS
GRAUS DE PARENTESCO
“Devo dizer com relação ao casamento dos nossos americanos que eles observam tão somente três graus de parentesco; ninguém toma por esposa a própria mãe, a irmã ou filha, mas o tio casa com a sobrinha e em todos os demais graus de parentesco não existe impedimento. A cerimônia matrimonial é a seguinte: quem quer ter mulher, seja viúva ou donzela, indaga de sua vontade e em seguida dirige-se ao pai ou na falta deste, ao parente mais próximo, para pedi-la em casamento. Se lhe respondem afirmativamente leva consigo a noiva como legítima mulher sem que se lavre nenhum contrato. Se, porém, recebe um não o pretendente desterra-se sem se sentir humilhado. (…)
O VÍCIO QUE É VIRTUDE
– Note-se que sendo a poligamia permitida podem os homens ter quantas mulheres lhes apraz e quanto maior o número de esposas mais valentes são considerados, o que transforma, portanto o vício em virtude. Vi alguns com oito mulheres, cuja enumeração era feita com a intenção de homenageá-los. O que me parece admirável é que havendo sempre uma, entre elas, mais amada do marido, não se revoltem as outras e nem sequer demonstrem ciúmes; vivem em paz, ocupadas no arranjo das casas, em tecer redes, limpar a horta e plantar suas raízes. E deixo aos meus leitores considerarem se, ainda que não fosse proibido por Deus ter mais de uma mulher, se acomodariam as europeias com esse regime matrimonial. Melhor seria condenar um homem às galés do que metê-lo no meio de tanta intriga e ciumeira.
Léry é testemunha de um parto literalmente ao natural e observa a maneira de disfarçarem o sangramento das mocinhas, durante a menstruação:
“Quanto ao parto, eis o que presenciei: Pernoitando com outro francês em uma aldeia, certa ocasião, ouvimos, quase à meia-noite, gritos de mulher, e pensamos que estivesse sendo atacada pelo jaguar, essa fera carniceira que descrevi. Acudimos imediatamente e verificamos que se tratava apenas de uma mulher em horas de parto. O pai recebeu a criança nos braços, depois de cortar com os dentes o cordão umbilical e amarrá-lo. Em seguida, continuando no seu ofício de parteira, esmagou com o polegar o nariz do filho como é de praxe entre os selvagens do país. (…) Apenas sai do ventre materno, é o menino bem lavado e pintado de preto e vermelho pelo pai, o qual sem enfaixá-lo, deita-o em uma rede de algodão. Se for macho, dá-lhe logo um pequenino tacape e um arco miúdo com flechas curtas de penas de papagaio; depois de colocar tudo isso junto do menino, beija-o risonho e diz: ‘Meu filho, quando cresceres serás destro nas armas, forte, valente e belicoso para te vingares dos teus inimigos’. (…)
NOMES E ALIMENTAÇÃO
DOS RECÉM-NASCIDOS
– Tal como fazemos com nossos cachorros e outros animais, dão eles às crianças nomes de coisas ou bichos. (…) A alimentação da criança consiste em certas farinhas mastigadas e carnes tenras juntamente com o leite materno; a mãe fica de resguardo um dia ou dois; em seguida pendura o filho no pescoço por uma cinta de algodão e vai tratar da horta como de costume. (…) Acrescentarei, entretanto que embora as mulheres desse país não tenham fraldas para limpar o traseiro dos filhos e que nem sequer se sirvam de folhas de árvores, que possuem em abundância são tão caprichosas que com pauzinhos em forma de pequenas cavilhas os limpam com muito asseio; e tão bem o fazem que jamais os vereis emporcalhados. Já que estou a discorrer sobre essa matéria suja, direi ainda que os meninos selvagens, depois de crescidos, urinam em geral no meio das casas e se estas não exalam mau cheiro isso se deve ao fato de serem areadas e às fogueiras ou acendem por toda parte; quanto aos excrementos, costumam as crianças deitá-los longe das casas. (…)
– Permanecemos quase um ano nesse país, visitando amiúde os selvagens e suas aldeias, mas nunca percebemos nas mulheres sinais de menstruação. Penso que as afastam ou empregam modos de sangrar diversos das europeias, pois vi meninas de doze a quatorze anos cujas mães ou parentas as punham de pés juntos sobre uma pedra e com um dente afiado de animal lhes faziam incisões no corpo desde o sovaco até as coxas e os joelhos; e as raparigas, com grandes dores, sangravam assim por certo espaço de tempo. Creio que procedem deste modo desde o início para que não lhes vejam as impurezas”.
PRÓXIMA EDIÇÃO 369 – janeiro de 2025 – Parte 11
SOBRE OS DESENTENDIMENTOS PARTICULARES
“Se acontece brigarem dois indivíduos (o que é tão raro que durante a minha permanência de quase um ano entre eles só me foi dado presenciar duas vezes) não procuram os outros separá-los ou apaziguá-los; deixam-nos até furarem os olhos mutuamente sem dar palavra. Entretanto se um deles é ferido prendem o ofensor, que recebe dos parentes próximos do ofendido ofensa igual e no mesmo lugar do corpo; e ocorrendo morrer a vítima, os parentes do defunto tiram a vida ao assassino.”
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A VOLTA DE JEAN DE LÉRY PARA A FRANÇA
O naturalista que entrou de gaiato no navio, veio para o Rio de Janeiro e deixou um relato precioso do Brasil de 1557. Sua volta para a França coincidiu com o fim da colônia francesa no Brasil.

Naturalistas Viajantes – JEAN DE LÉRY (Parte 16)
“Uma vez em terra, caminhei ao longo da Avenida Rio Branco,
onde uma vez existiram as aldeias tupinambás;
no meu bolso havia aquele breviário do antropólogo, Jean de Léry.
Ele chegou ao Rio 378 anos antes, quase no mesmo dia”.
Claude Lévi-Strauss em ‘Tristes Trópicos’, ao chegar ao Rio de Janeiro em 1934.
A volta de Jean de Léry para a França também marca o fim da colônia francesa no Brasil. Após a expulsão dos franceses da Guanabara, os padres jesuítas José de Anchieta e Manuel da Nóbrega teriam instigado o Governador-Geral Mem de Sá a prender Jacques Le Balleur, e a condená-lo à morte por professar “heresias protestantes”. Quanto à viagem de volta, Jean de Léry conta em detalhes como, por milagre, se salvou de uma grande tempestade em alto mar.
Lévi-Strauss assim se refere a Léry: “A leitura de Léry me ajuda a escapar de meu século, a retomar contato com o que eu chamaria de ‘sobre-realidade’, não aquele de que falam os surrealistas, mas uma realidade ainda mais real do que aquela que testemunhei. Léry viu coisas que não têm preço, porque era a primeira vez que eram vistas e porque foi a mais de quatrocentos anos”.
O FIM DA COLÔNIA FRANCESA NO BRASIL
Após a expulsão dos franceses da Guanabara, os padres jesuítas José de Anchieta e Manuel da Nóbrega teriam instigado o Governador-Geral Mem de Sá a prender Jacques Le Balleur, e a condená-lo à morte por professar “heresias protestantes”. O jornalista e historiador paranaense José Francisco da Rocha Pombo (1857-1933), em sua ‘História do Brasil’ publicada em 1935, recupera parte da história dos religiosos franceses: “Jacques Le Balleur foi poupado, pois era ferreiro. Isto praticamente marcou o fim da colônia francesa, e encerrou a tragédia da Guanabara”.
Em nota de rodapé, explica: “Após conseguir viver escondido, Jacques Le Balleur foi preso pelos portugueses nas cercanias de Bertioga. Ele foi enviado para Salvador, na Bahia, que era a sede do governo colonial, onde foi julgado pelo crime de “invasão” e “heresia”, isso em 1559. Em abril de 1567, foi queimado, sendo auxiliar do carrasco José de Anchieta, para consternação dos católicos”.
A VIAGEM DE VOLTA E SALVOS POR MILAGRE
“Prosseguindo na narração dos extremos perigos de que Deus nos livrou no mar, durante o nosso regresso, contarei um deles, proveniente de uma disputa surgida entre o nosso contramestre e o nosso piloto, em virtude da qual, por despeito, nenhum deles desempenhou desde então os deveres do cargo. A 26 de março, fazendo o piloto o seu quarto, conservou abertas todas as velas sem perceber a aproximação de um furacão que se preparava e que desabou com tal ímpeto que adernou o navio a ponto de mergulharem os cestos de gávea e a ponta dos mastros no mar, atirando à água cabos, gaiolas e todos os objetos que não estavam bem amarrados, pouco faltando para que virássemos completamente. Todavia, cortadas com rapidez as enxárcias e escotas da vela grande, aprumou-se o navio pouco a pouco. Pode-se dizer que só por um milagre nos salvamos, mas nem por isso concordaram os causadores do mal em reconciliar-se, não obstante os rogos de todos; muito ao contrário, apenas passado o perigo engalfinharam-se e com tal fúria se bateram que julgamos se matassem na luta.
‘ESTAMOS PERDIDOS, ESTAMOS PERDIDOS’
Por outro perigo passamos dias depois. Estando o mar calmo, pensaram o carpinteiro e outros marinheiros em aliviar-nos do trabalho de bombear, procurando tapar melhor as fendas por onde entrava a água. Aconteceu que mexendo em um deles para consertá-lo, despregou-se uma peça de madeira de quase um pé quadrado e a água entrou com tal abundância e rapidez que forçou os marinheiros a subirem para o convés abandonando o carpinteiro. E sem sequer contar-nos o fato, berravam: ‘Estamos perdidos, estamos perdidos’.
Diante disso, o capitão, o mestre e o piloto trataram de pôr ao mar a toda a pressa o escaler, mandando também lançar à água os toldos do navio, grande quantidade de pau-brasil e outras mercadorias num valor total de mil francos, decididos a abandonar a embarcação e a salvar-se no bote. Mas temendo o piloto que o grande número de pessoas que tentavam embarcar tornasse a carga excessiva, saltou do bote com um cutelo na mão, ameaçando romper os braços do primeiro que tentasse entrar.
Vendo-nos assim desamparados à mercê das ondas, lembramo-nos do primeiro naufrágio de que Deus nos livrara e, resolvidos a lutar pela vida, empregamos todas as nossas forças em bombear a água a fim de que o navio não afundasse; e tanto trabalhamos que o conseguimos. Nem todos, porém se mostraram corajosos. Os marinheiros, em sua maioria, estavam desatinados e tão temerosos se mostravam da morte que já não se importavam com coisa alguma a não ser em beber à farta. Estou certo de que os rabelesianos, escarnecedores e desprezadores de Deus, que em terra tagarelam sentados à mesa e comentam com motejos os naufrágios e perigos em que se encontram muitas vezes os navegantes, teriam seus gracejos mudados em pavor se nesta situação se encontrassem. E creio também que muitos leitores desta narrativa e dos perigos por que passamos dirão com o provérbio: ‘Muito melhor é plantar couves ou ouvir discorrer do mar e dos selvagens do que tentar tais aventuras’. (…)
O nosso carpinteiro, rapaz animoso, não abandonara o porão como os marinheiros, mas enfiara o seu capote de marujo no buraco, comprimindo-o com os pés para quebrar o impulso da água, a qual, como depois nos disse, por várias vezes o desalojou, tal a sua impetuosidade. Assim nessa posição gritou ele quanto pôde para que os de cima, do convés, lhe levassem roupas, redes de algodão e outras coisas com que pudesse deter o jorro d’água enquanto consertava a peça. Graças a esse esforço fomos salvos”.
PÓLVORA E FOGO
“Como temíamos encontrar piratas nessas paragens, ao sair desse mar de ervas não só assestamos quatro ou cinco peças de artilharia que havia no navio, mas ainda preparamos as necessárias munições para nos defendermos oportunamente. Entretanto, com isso novo perigo tivemos que vencer. Quando o nosso artilheiro secava a pólvora em uma panela de ferro, esqueceu-a ao fogo até tornar-se incandescente e a pólvora se inflamou, correndo a chama de uma à outra extremidade do navio, de forma que inutilizou velas e massame e por pouco não incendiou o breu de que o navio estava untado, queimando-nos todos em pelo mar. Aliás, um grumete e dois marujos foram tão maltratados pelo fogo que um deles morreu poucos dias depois. Por minha parte, se não tivesse rapidamente levado ao rosto o boné de bordo, ter-me-ia queimado seriamente; escapei chamuscando apenas a ponta das orelhas e os cabelos”.
PRÓXIMA EDIÇÃO 376 – JULHO DE 2025 – PARTE 17.
TRÁGICA VOLTA – O erro do piloto em calcular a posição do navio “fez com que em fins de abril já estivéssemos inteiramente desfalcados de todos os víveres; já varríamos o paiol, cubículo caiado e gessado onde se guarda a bolacha nos navios, mas encontrávamos mais vermes e excrementos de ratos do que migalhas de pão. Quando havia, repartíamos às colheradas esse farelo e com ele fazíamos uma papa preta e amarga como fuligem. Os que ainda tinham bugios e
papagaios, a que ensinavam a falar, comeram-nos. E vindo a faltar por completo os víveres, em princípio de maio, dois marinheiros morreram de hidrofobia da fome, sendo sepultados no mar como de praxe”.
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NIÈDE GUIDON, UMA GUERREIRA DO SERTÃO NORDESTINO
E a vida segue seu ciclo. Estava me preparando para ir ao Campo da Esperança para me despedir do amigo Fausto Salim, quando recebo a notícia da passagem de outra amiga: Niède Guidon.




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