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A PARTICIPAÇÃO INDÍGENA NA COP-30 NO BRASIL

Cacique Marcos Terena, que viaja dia 21 de abril para reunião na ONU, a fim de discutir a participação da comunidade indígena internacional na COP-30, fala sobre o Dia do Índio e sobre a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025, a ser realizada em Belém do Pará.

 

O índio Mariano Justino Marcos Terena, de filho pródigo em Mato Grosso do Sul, mora em Brasília e tornou-se uma das mais importantes lideranças de seu povo. Sem dúvida, é o líder indígena mais respeitado pela comunidade internacional. O Cacique Marcos Terena é hoje o ponto de equilíbrio entre autoridades brancas e os povos indígenas. Índio, piloto e cacique, Marcos Terena foi fundador da União das Nações Indígenas – UNIND, primeiro movimento político da juventude indígena no Brasil e articulador dos direitos dos Pajés e os Conhecimentos Tradicionais. Além de Coordenador Internacional dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, o cacique Terena também é Guerreiro da Cultura: de 2007 a 2010, foi o Diretor do Museu do Índio, em Brasília. A partir do dia 21 de abril próximo, Marcos Terena vai estar na ONU, em Nova York, para participar de um encontro que vai estudar a participação dos povos indígenas na COP-30, em Belém do Pará, no final do ano.

CACIQUE MARCOS TERENA – ENTREVISTA

 

Marcos Terena, a maior liderança brasileira da causa indígena, fala sobre as comemorações do Dia do Índio e sobre a COP’30.

 

Silvestre Gorgulho – Acompanho seu trabalho e suas ações nacionais e internacionais desde a RIO’92, no Rio de Janeiro. Como nasceu a histórica “Declaração da Kari-Oca”? Haverá nova declaração agora pela COP’30, no Brasil?

Marcos Terena – Pois é, lá se vão 33 anos. Em 1991, a ONU decidiu fazer do Brasil país sede da Conferência Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada em 1992, no Rio de Janeiro. E graças a uma articulação indígena internacional foi incluída a participação indígena. Em troca, as Nações Unidas acataram a mudança do nome do evento indígena para Conferência Mundial sobre Território, Meio Ambiente e Desenvolvimento, RIO’92. Assim nasceu a histórica “Declaração da Kari-Oca”, cujo texto base começava com a seguinte frase – Caminhamos em direção ao futuro, nos rastros de nossos Antepassados.

 

 

“Caminhamos em direção ao futuro, nos rastros de nossos Antepassados”.

CACIQUE MARCOS TERENA

 

A construção da Aldeia Kari-Oca, antes da RIO’1992. No próximo dia 30 de maio, são 33 anos da Declaração da Aldeia Kari-oca, promulgada durante a Conferência Mundial dos Povos Indígenas sobre Território, Meio Ambiente e Desenvolvimento, a ECO’92.

 

Silvestre – E este “caminhamos em direção ao futuro” estará presente em novembro deste ano em Belém, na COP’30?

Terena – Sim, vamos nos reunir no final deste mês na ONU para tratar disso. Entre os dias 21 de abril e 02 de maio deste ano, as Nações Unidas reunirá com mais de dois mil indígenas em sua sede em Nova York para analisar o tema: Implementando a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas nos Estados Membros da ONU e nos sistemas das Nações Unidas, incluindo a identificação de boas práticas e a abordagem dos desafios. Como indígenas brasileiros e organizadores da Kari-Oca – RIO’92 e participantes da construção do Fórum Permanente da ONU sobre Questões Indígenas que coloca o tema indígena num alto nível internacional e da Declaração, lá estaremos para ouvir e opinar sobre o tema.

 

Silvestre – Mas como está o Brasil nisso tudo?

Terena – O Brasil é sempre ouvido e tem voz ativa. Afinal, nosso país é considerado referência no cenário internacional seja pela diversidade étnica, seja pelos biomas existentes e principalmente pela existência de mais de 300 povos indígenas e os níveis de contatos. Também possui uma lei específica para os direitos indígenas, o Estatuto do Índio e artigos como o 231 e 232 dentro da Constituição nacional, que reconhecem essa diversidade e, também, o direito sobre a Terra que historicamente ocupam de norte a sul do Brasil.

É preciso destacar que as aldeias ou comunidades indígenas existentes no Cerrado como os Bororo; os Tukano e Mundurucu, na Amazônia; no Pantanal como os Terena; na Mata Atlântica como os Guarani; na região dos Pampas no Sul como os Xokleng; ou ainda no Semiárido do Nordeste como os Fulni-Ô, todos são atores históricos na luta por direitos básicos como a demarcação de seus territórios e seus recursos minerais e naturais. Terra é vida, é o lema mundial!

 

Silvestre – Como os nativos convenceram o mundo da importância das aldeias para o equilíbrio ambiental e econômico?

Terena – No ano de 1992, durante uma Conferência RIO’92, os Povos Indígenas das quatro direções do vento convenceram o mundo da importância de seus territórios como fonte de equilíbrio ambiental. E, também, capaz de gerar aos nativos uma economia sustentável e com qualidade de vida. O sistema econômico do “time is Money” ou da moeda fácil proliferam, a partir das cidades circunvizinhas, plantaram a ideia de que era preciso modernizar e qualificar as nações indígenas para um encontro com a modernidade, a partir do uso irresponsável da terra e do lucro fácil.

 

Aldeia da tribo Mundurucu, na comunidade de Bragança próxima a Alter do Chão-Pará é um exemplo de trabalho e educação que leva toda aldeia a participar e usufruir do desenvolvimento regional, sob a orientação do cacique Domingos Mundurucu. (foto: Silvestre Gorgulho)

 

Silvestre – Mas hoje há várias comunidades indígenas atualizadas e até modernizando costumes e trabalhos. Como você vê isso?

Terena – É verdade. Os mesmos costumes religiosos, educativos e de novas conquistas vêm se modernizado nos relacionamentos com os povos indígenas. Além do ouro e das madeiras preciosas, o avanço colonialista quer para si os territórios indígenas. A justificativa é que são terras sem donos e ociosas e que o País carece delas para inclusive, enriquecer o mundo sem quaisquer estudos de impactos. No passado, argumentos como esses terminou por gerar mais pobreza. E eles ainda continuam trazendo a destruição dos rastros dos nossos antepassados. Por exemplo, colocar fim às causas das mudanças climáticas do qual os líderes espirituais haviam avisado em 1992 com uma Carta da Terra.

 

Silvestre – Você está satisfeito com o apoio e acolhida da ONU?

Terena – Em 2015, quando fui tratar dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, o então Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-Moon, explicou a importância dos diálogos. E foi além: disse das oportunidades como exemplo a ser dado pelos povos indígenas. As palavras dele foram essas: “Este evento é um excelente exemplo de como o esporte pode unir as pessoas e promover a paz, o respeito pelos direitos humanos e as ricas culturas e sabedorias indígenas de todo o mundo”. Então, quando a ONU abre suas portas aos Povos Indígenas do mundo para analisarem a aplicação de uma Declaração Universal a governos e Povos Indígenas, certamente os indígenas do Brasil estão presentes. E importante: às vésperas da maior conferência ambiental da atualidade na forma de Cooperação entre os Países, a COP’30 em novembro próximo.

 

Silvestre – Como você sente a COP’30, em novembro no Brasil?

Terena – Olha, a COP’30 no Brasil ainda não sinalizou como fazer o Brasil grande. Temos tudo para tal, mas não sabemos por onde começar e como assegurar, novamente, o respeito entre as Nações para se tornar líder de um novo processo para o bem comum. Enquanto isso, como disseram os líderes indígenas, os efeitos estão chegando na forma de catástrofes ecológicos. Não existem benefícios unilaterais. A força de um povo e o bem-estar estão baseados nas alianças e no respeito a diversidade ambiental e coletiva das primeiras nações. Talvez a Mãe Terra esteja apenas respondendo às queimadas criminosas no Pantanal, Cerrado e Amazônia.

 

Silvestre – A COP’30 poderá ser um marco divisor diante do desafio de encontrar caminhos para o bem-estar ambiental?

Terena – Acho que sim. Todo diálogo é importante e todas as ações proativas pela natureza são necessárias. Principalmente o uso de novas tecnologias para um desenvolvimento sustentável. Os povos indígenas têm noção ecológica tradicional e espiritual, mas como convencer as grandes indústrias de energia e os sistemas econômicos que não se renova?

 

Silvestre – E sobre o Dia do Índio neste próximo dia 19?

Terena – Não temos notícias alvissareiras de como será o Dia do Índio no Brasil, mas certamente as aldeias se lembrarão das diversas agressões sofridas lá em suas aldeias tradicionais, seja pela falta da demarcação, seja pela falta da presença do Estado e uma política indigenista adequada a diversidade social, econômica e cultural. A agressão e os desmandos não vêm apenas das formas de agressões físicas. As agressões agora vêm também nas formas de mono agriculturas como a expansão da soja, das sementes transgênicas, dos venenos e com ela a destruição ambiental que afeta também as fontes de águas e a diversidade animal. É preciso observar a movimentação dos jurídicos e suas formas mágicas de argumentar a destruição de pessoas em conjunto aparente com o poder legislativo, onde seus representantes são maioria e sem qualquer reconhecimento pelos rastros indígenas que ainda existem desde a chegada do primeiro homem branco.

 

 

Silvestre – Uma mensagem final…

Terena – Vale lembrar a agenda Kari-Oca de 1992: Nós Povos Indígenas avisamos: “continuaremos mantendo nossos direitos inalienáveis a nossas terras, nossos recursos do solo e subsolo, e águas. Afirmamos nossa contínua responsabilidade de passar todos esses direitos as gerações futuras. Estamos unidos pelo ciclo da vida e não podemos ser desalojados de nossas terras e nosso meio ambiente.”

 

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BAUNILHA DO CERRADO

Brasília faz curso e oficinas para produção, polinização e beneficiamento gastronômico da especiaria da região.

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Sob a coordenação da Gastróloga e pesquisadora de baunilhas brasileiras Cláudia Nasser, o Instituto de Baunilhas Edmond Albius, criado pela produtora de baunilha, Ângela Almeida, da Quinta do Alecrim, realizou no dia 25 de maio um curso prático sobre o cultivo de baunilhas. A atividade aconteceu em Brasília e reuniu agricultores, gastrônomos, comerciantes, empreendedores do ramo da alimentação e curiosos em conhecer de perto essa orquídea tropical de alto valor gastronômico e comercial.

A pesquisadora Cláudia Nasser explica que o curso busca criar uma rede de produtores capacitados, que compreendam o cultivo da baunilha desde a produção de mudas até o produto para comercialização.

A oficina marcou o início de uma série de capacitações que o Instituto oferecerá ao longo do ano, voltadas à produção e valorização das baunilhas brasileiras, com foco em espécies nativas que crescem em regiões do Cerrado.
Segundo a pesquisadora Cláudia Nasser, “o objetivo é criar uma rede de produtores capacitados, que compreendam o cultivo da baunilha desde a produção de mudas até o produto para comercialização, sejam favas in natura, bem como produtos à base de baunilhas como extratos, pastas, pó, mel, azeites etc., por meio da educação, pesquisa e experiências sensoriais”.

Dessa forma, em parceria com produtores, chefs, pesquisadores e comunidades tradicionais, o projeto busca inserir a baunilha nativa no circuito gastronômico e turístico do Brasil.
O Instituto leva o nome de Edmond Albius, jovem que descobriu, aos 12 anos, a técnica de polinização manual da baunilha na Ilha de Reunião (antiga Bourbon), tornando possível seu cultivo em diversas partes do mundo.

PRÓXIMOS CURSOS E OFICINAS

Após o sucesso da primeira oficina, o Instituto de Baunilhas Edmond Albius prepara novas atividades para os próximos meses. O importante, ressalta Cláudia Nasser, é que todas as atividades mesclam conteúdo técnico com vivências sensoriais, respeitando os saberes tradicionais e promovendo o uso sustentável das espécies nativas.

A programação e o conteúdo das próximas oficinas, incluem:
• Curso de Polinização – Técnica essencial para a produção de frutos fora do ‘habitat’ nativo.
• Curso de Beneficiamento da Baunilha – Etapas de cura e secagem, fundamentais para o desenvolvimento do aroma característico.
• Oficina de Análise Sensorial de Baunilhas – Uma experiência olfativa para identificar as notas e qualidades da especiaria.
• Oficinas Gastronômicas com Baunilhas – Aulas práticas onde os participantes aprendem a utilizar diferentes espécies de baunilha em receitas doces e salgadas, drinks e etc.

COMO PARTICIPAR

Os cursos são presenciais e realizados em pequenos grupos, com foco na prática. As inscrições serão divulgadas no perfil oficial da Quinta do Alecrim @quintadoalecrim, @nasserclaudia, e também por meio de parcerias com associações rurais, sindicatos e instituições de ensino do DF e entorno.

O sucesso e a procura pelo curso levou os organizadores a programarem novas oficinas sobre Baunilha do Cerrado.

QUEM FOI EDMOND ALBIUS

A vida de Edmond Albius não foi fácil. Mas ele deixou um legado eterno para a horticultura mundial de baunilha. Em 1841, Edmond Albius (1829-1880) era apenas um garoto de 12 anos, escravizado e sem educação formal. Mas ele conseguiu algo inédito, resolvendo um enigma que intrigava os principais botânicos da época: desenvolveu uma técnica inovadora para polinizar orquídeas baunilha de forma rápida e lucrativa. A verdade é que sem a sua contribuição, a baunilha não teria alcançado a popularidade que tem hoje.
Na década de 1820, os colonos franceses trouxeram cápsulas de baunilha para a ilha Reunião, onde Albius nasceu em 1829, vindas do México. Logo ficou claro que nenhum inseto na região poderia polinizar as orquídeas baunilha, ao contrário do que ocorria no México, onde as abelhas selvagens faziam esse trabalho.

Na década de 1830, o botânico belga Charles Morten desenvolveu uma técnica manual de polinização, mas era demorada e exigia muita mão de obra.

 

TÉCNICA SIMPLES E EFICAZ

Edmond Albius, aos 12 anos, usou folhas de erva ou pedaços finos de madeira para levantar a tampa da flor e dobrar a parte masculina, permitindo que o pólen entrasse em contato com a parte feminina. Depois, com seu polegar, pressionava levemente, realizando a polinização de forma eficaz. Embora simples, sua técnica revolucionou a indústria, transformando a Ilha Reunião em um dos maiores fornecedores mundiais de baunilha.
As contribuições de Albius para a ciência passaram despercebidas durante sua vida, e ele faleceu na pobreza e no esquecimento. Somente muitos anos após sua morte, que ocorreu em 1880, seu trabalho foi reconhecido e celebrado como um avanço significativo na história da botânica. Até hoje, em Madagascar, a técnica de Albius é utilizada, e o país se destaca como o maior fornecedor de baunilha do mundo.

ILHA DA REUNIÃO

A Ilha da Reunião, uma antiga colônia francesa, que se tornou um departamento ultramarino em 1960, é um pontinho de rocha vulcânica a cerca de 650 quilômetros de Madagascar. Um paraíso natural com enormes cachoeiras e pontos de surfe famosos no mundo todo.

A Ilha da Reunião tem 2.512 km², mas, no centro, o antigo pico vulcânico da Piton des Neiges ultrapassa as nuvens e alcança mais de três mil metros de altitude, criando uma infinidade de microclimas em suas encostas e dividindo a ilha em um lado “úmido” e outro “seco”.

A baunilha do Cerrado, conhecida também como “baunilha banana”, é uma especiaria rara, nativa do bioma Cerrado brasileiro, que se destaca pelo aroma floral e adocicado de sua fava.

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Sobre o Instituto de Baunilhas Edmond Albius
O IBEA foi concebido pela produtora Angela de Almeida e tem como coordenadora a gastróloga e mestre em Turismo, Cláudia Nasser Brumano. O Instituto atua na promoção do cultivo e valorização das baunilhas brasileiras por meio da educação, pesquisa e experiências sensoriais. Em parceria com produtores, chefs, pesquisadores e comunidades tradicionais, o projeto busca inserir a baunilha nativa no circuito gastronômico e turístico do Brasil.

 

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A VOLTA DE JEAN DE LÉRY PARA A FRANÇA

O naturalista que entrou de gaiato no navio, veio para o Rio de Janeiro e deixou um relato precioso do Brasil de 1557. Sua volta para a França coincidiu com o fim da colônia francesa no Brasil.

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Naturalistas Viajantes – JEAN DE LÉRY (Parte 16)

 

 “Uma vez em terra, caminhei ao longo da Avenida Rio Branco, 

onde uma vez existiram as aldeias tupinambás; 

no meu bolso havia aquele breviário do antropólogo, Jean de Léry. 

Ele chegou ao Rio 378 anos antes, quase no mesmo dia”.

Claude Lévi-Strauss em ‘Tristes Trópicos’, ao chegar ao Rio de Janeiro em 1934. 

 

 

A volta de Jean de Léry para a França também marca o fim da colônia francesa no Brasil. Após a expulsão dos franceses da Guanabara, os padres jesuítas José de Anchieta e Manuel da Nóbrega teriam instigado o Governador-Geral Mem de Sá a prender Jacques Le Balleur, e a condená-lo à morte por professar “heresias protestantes”.  Quanto à viagem de volta, Jean de Léry conta em detalhes como, por milagre, se salvou de uma grande tempestade em alto mar.

 

Lévi-Strauss assim se refere a Léry: “A leitura de Léry me ajuda a escapar de meu século, a retomar contato com o que eu chamaria de ‘sobre-realidade’, não aquele de que falam os surrealistas, mas uma realidade ainda mais real do que aquela que testemunhei. Léry viu coisas que não têm preço, porque era a primeira vez que eram vistas e porque foi a mais de quatrocentos anos”.

 

 

O FIM DA COLÔNIA FRANCESA NO BRASIL

Após a expulsão dos franceses da Guanabara, os padres jesuítas José de Anchieta e Manuel da Nóbrega teriam instigado o Governador-Geral Mem de Sá a prender Jacques Le Balleur, e a condená-lo à morte por professar “heresias protestantes”.  O jornalista e historiador paranaense José Francisco da Rocha Pombo (1857-1933), em sua ‘História do Brasil’ publicada em 1935, recupera parte da história dos religiosos franceses: “Jacques Le Balleur foi poupado, pois era ferreiro. Isto praticamente marcou o fim da colônia francesa, e encerrou a tragédia da Guanabara”.

Em nota de rodapé, explica: “Após conseguir viver escondido, Jacques Le Balleur foi preso pelos portugueses nas cercanias de Bertioga. Ele foi enviado para Salvador, na Bahia, que era a sede do governo colonial, onde foi julgado pelo crime de “invasão” e “heresia”, isso em 1559. Em abril de 1567, foi queimado, sendo auxiliar do carrasco José de Anchieta, para consternação dos católicos”.

 

A VIAGEM DE VOLTA E SALVOS POR MILAGRE

“Prosseguindo na narração dos extremos perigos de que Deus nos livrou no mar, durante o nosso regresso, contarei um deles, proveniente de uma disputa surgida entre o nosso contramestre e o nosso piloto, em virtude da qual, por despeito, nenhum deles desempenhou desde então os deveres do cargo. A 26 de março, fazendo o piloto o seu quarto, conservou abertas todas as velas sem perceber a aproximação de um furacão que se preparava e que desabou com tal ímpeto que adernou o navio a ponto de mergulharem os cestos de gávea e a ponta dos mastros no mar, atirando à água cabos, gaiolas e todos os objetos que não estavam bem amarrados, pouco faltando para que virássemos completamente. Todavia, cortadas com rapidez as enxárcias e escotas da vela grande, aprumou-se o navio pouco a pouco. Pode-se dizer que só por um milagre nos salvamos, mas nem por isso concordaram os causadores do mal em reconciliar-se, não obstante os rogos de todos; muito ao contrário, apenas passado o perigo engalfinharam-se e com tal fúria se bateram que julgamos se matassem na luta.

 

‘ESTAMOS PERDIDOS, ESTAMOS PERDIDOS’

Por outro perigo passamos dias depois. Estando o mar calmo, pensaram o carpinteiro e outros marinheiros em aliviar-nos do trabalho de bombear, procurando tapar melhor as fendas por onde entrava a água. Aconteceu que mexendo em um deles para consertá-lo, despregou-se uma peça de madeira de quase um pé quadrado e a água entrou com tal abundância e rapidez que forçou os marinheiros a subirem para o convés abandonando o carpinteiro. E sem sequer contar-nos o fato, berravam: ‘Estamos perdidos, estamos perdidos’.

Diante disso, o capitão, o mestre e o piloto trataram de pôr ao mar a toda a pressa o escaler, mandando também lançar à água os toldos do navio, grande quantidade de pau-brasil e outras mercadorias num valor total de mil francos, decididos a abandonar a embarcação e a salvar-se no bote. Mas temendo o piloto que o grande número de pessoas que tentavam embarcar tornasse a carga excessiva, saltou do bote com um cutelo na mão, ameaçando romper os braços do primeiro que tentasse entrar.

Vendo-nos assim desamparados à mercê das ondas, lembramo-nos do primeiro naufrágio de que Deus nos livrara e, resolvidos a lutar pela vida, empregamos todas as nossas forças em bombear a água a fim de que o navio não afundasse; e tanto trabalhamos que o conseguimos. Nem todos, porém se mostraram corajosos. Os marinheiros, em sua maioria, estavam desatinados e tão temerosos se mostravam da morte que já não se importavam com coisa alguma a não ser em beber à farta. Estou certo de que os rabelesianos, escarnecedores e desprezadores de Deus, que em terra tagarelam sentados à mesa e comentam com motejos os naufrágios e perigos em que se encontram muitas vezes os navegantes, teriam seus gracejos mudados em pavor se nesta situação se encontrassem. E creio também que muitos leitores desta narrativa e dos perigos por que passamos dirão com o provérbio: ‘Muito melhor é plantar couves ou ouvir discorrer do mar e dos selvagens do que tentar tais aventuras’. (…)

O nosso carpinteiro, rapaz animoso, não abandonara o porão como os marinheiros, mas enfiara o seu capote de marujo no buraco, comprimindo-o com os pés para quebrar o impulso da água, a qual, como depois nos disse, por várias vezes o desalojou, tal a sua impetuosidade. Assim nessa posição gritou ele quanto pôde para que os de cima, do convés, lhe levassem roupas, redes de algodão e outras coisas com que pudesse deter o jorro d’água enquanto consertava a peça. Graças a esse esforço fomos salvos”.

 

PÓLVORA E FOGO

“Como temíamos encontrar piratas nessas paragens, ao sair desse mar de ervas não só assestamos quatro ou cinco peças de artilharia que havia no navio, mas ainda preparamos as necessárias munições para nos defendermos oportunamente. Entretanto, com isso novo perigo tivemos que vencer. Quando o nosso artilheiro secava a pólvora em uma panela de ferro, esqueceu-a ao fogo até tornar-se incandescente e a pólvora se inflamou, correndo a chama de uma à outra extremidade do navio, de forma que inutilizou velas e massame e por pouco não incendiou o breu de que o navio estava untado, queimando-nos todos em pelo mar. Aliás, um grumete e dois marujos foram tão maltratados pelo fogo que um deles morreu poucos dias depois. Por minha parte, se não tivesse rapidamente levado ao rosto o boné de bordo, ter-me-ia queimado seriamente; escapei chamuscando apenas a ponta das orelhas e os cabelos”.

 

 

PRÓXIMA EDIÇÃO 376 – JULHO DE 2025 – PARTE 17.

 TRÁGICA VOLTA – O erro do piloto em calcular a posição do navio “fez com que em fins de abril já estivéssemos inteiramente desfalcados de todos os víveres; já varríamos o paiol, cubículo caiado e gessado onde se guarda a bolacha nos navios, mas encontrávamos mais vermes e excrementos de ratos do que migalhas de pão. Quando havia, repartíamos às colheradas esse farelo e com ele fazíamos uma papa preta e amarga como fuligem. Os que ainda tinham bugios e

papagaios, a que ensinavam a falar, comeram-nos. E vindo a faltar por completo os víveres, em princípio de maio, dois marinheiros morreram de hidrofobia da fome, sendo sepultados no mar como de praxe”.

 

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NIÈDE GUIDON, UMA GUERREIRA DO SERTÃO NORDESTINO

E a vida segue seu ciclo. Estava me preparando para ir ao Campo da Esperança para me despedir do amigo Fausto Salim, quando recebo a notícia da passagem de outra amiga: Niède Guidon.

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Aos 92 anos, a arqueóloga Niède Guidon morreu na madrugada desta quarta-feira.
O Parque Nacional da Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato (PI) apesar seus milhares de ano tem um divisor de águas: Niède Guidon. Antes e Depois de Niède Guidon.
IMPORTANTE: a última entrevista concedida por Niède Guidon foi dada à Folha do Meio Ambiente, em agosto do ano passado. Fiz várias entrevistas com Niède, mas quando conversei com ela em agosto de 2024, senti que era a última vez. Ela já queria fazer uma prestação de contas.
No final desta nota, está o link da entrevista.
Niède é reconhecida internacionalmente pelo seu trabalho científico. Foi sua luta e sua dedicação que gerou a criação do Parque Nacional da Serra da Capivara. A verdade é que Niéde, (completou 92 anos em 12 de março) tinha um ideal: proteger, pesquisar e fazer do Parque Nacional da Serra da Capivara, uma região pobre em economia, mas muito rica em História e Cultura. E transformar a região em um grande centro de estudos e de turismo no coração do Piauí. E ela conseguiu. Foram 54 anos para Niéde mudar o perfil econômico da área com investimentos educação, em cultura e turismo.
NIÈDE GUIDON DEIXOU UM LEGADO IMENSO PARA O BRASIL E PARA A HUMANIDADE.
As fotos são de André Pessoa.
Link para ler a última entrevista de Niède Guidon, dada para a Folha do Meio Ambiente:
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