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FESTIVAL DE LIÇÕES

Cego é quem tem medo de ousar

   Silvestre Gorgulho


Com o 40o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro reaprendi uma velha lição: só é cego, mesmo, quem não quer ver. Cega e surda desde bebê, a escritora norte-americana Helen Adams Keller gostava de testar as pessoas. Ao deparar com elas voltando de uma caminhada, costumava perguntar:


– E aí, o que você viu. Pode me contar?


Em geral, a resposta era vaga:


– Nada especial!


E Helen pensava: como é possível caminhar por uma trilha ou um bosque e não ver nada interessante? Eu, apenas pelo tato e olfato, quando caminho, vejo tanta coisa especial. Vejo a delicada simetria de uma folha. Passo as mãos pela casca áspera de um tronco. Acaricio os galhos de árvores na esperança de encontrar um botão. Pouso a mão num arbusto e sinto o palpitar feliz de um pássaro cantando.


 Se os cegos têm tanto prazer com um simples e delicado toque, quanta beleza poderia, então, ser revelada pela visão! E Helen Keller gostava de imaginar o que um cego mais gostaria de apreciar se pudesse ver, digamos, por apenas um dia…


 Este é o ponto: enxergar por apenas um dia. Ou não enxergar por apenas um dia.


Deveria ter um programa, um software divino, um milagre que possibilitasse as pessoas cegas enxergarem por apenas um dia. Ou, mais importante ainda, que as pessoas que enxergam ficassem sem a visão também por um dia. Um dia de rotina.


Uns e outros passariam por transformações. Passariam a enxergar com a alma e a ver, além do olhar.


Para os cegos, seria fantástico perceber as qualidades essenciais de outra pessoa ao monitorar as sutilezas de expressão da boca, dos músculos da face, das mãos e até do respirar. Ver o vôo rasante de uma juriti, o revolutear de uma borboleta e a exuberância de uma flor. Ver o fetiche de uma piscadela e o magnetismo de um sorriso galanteador.


Já para os videntes, seria um aprendizado perceber o desabrochar de uma outra natureza vivenciada apenas pelo tato e olfato. As trevas os obrigariam a perceber a alegria ou tristeza de um amigo pelo afago nos seus rostos. As lágrimas só poderiam ser vistas pelo umedecer das pontas dos dedos. As diversidades e mistérios da natureza só poderiam ser descobertas pelas palmas das mãos. E para pressentir a beleza de uma tarde, o frescor de um bosque, um pôr-do-sol avermelhado e a aurora de um amanhecer… apenas com o acariciar das ondas do ar.


 Quem sabe, esta bênção de fazer ver – para quem é cego – e de cegar – para quem vê – mesmo que apenas por um dia, não faria o mundo mais justo. Quem sabe, esta troca de posições não faria a vida mais solidária e o cotidiano mais harmonioso e tolerante.


 Quando trouxe Dolores Tomé, flautista e educadora, para criar e dirigir na Secretaria de Cultura do Distrito Federal um Núcleo de Inclusão Cultural e Social pela Arte, não podia imaginar que estava criando um software divino. Um programa para proporcionar aos cegos, um dia de visão. E para os videntes, um dia de lições pela cegueira. Tudo para que ambos os grupos pudessem passar por uma transformação. Pudessem ver além de suas possibilidades.


 Foram quatro testes no cine Brasília, com uma ajuda efetiva do César Achkar, presidente da Associação Brasiliense dos Deficientes Visuais. Era um encontro descontraído e alegre com a participação de João Júlio, Sara Bentes, Ruy Bicalho, Noeme Rocha, Rafael Vaz, Luis Felipe, Marta Guedes, Flávio Luis, José Ferreira, Paulo Sérgio, Maringueth Monteiro, Vera e Genes Guedes, Simone Kichel e Josenei Ferreira e tantos outros.


 Testes para se criar um mecanismo viável com o qual os cegos pudessem assistir ao 40o Festival. As gravações da áudiodescrição dos 18 filmes selecionados e o sucesso da acessibilidade para cegos e surdos fizeram do 40o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro um destaque na vida cultural de Brasília e um momento especial na minha vida. Como jornalista, como gestor cultural e como cidadão. Todos aprendemos muito.


 E fico pensando que ninguém nunca viu a linha do Equador, nunca viu um Meridiano ou um Trópico. Beethoven era surdo e compôs as mais belas músicas da humanidade. Einstein nunca viu a velocidade da luz, mas decifrou seus segredos e criou suas teorias.  Guglielmo Marconi nunca viu uma onda de rádio, mas conseguiu transmitir sinais radiofônicos. Enfim, ninguém nunca viu a alma, o amor e a saudade, mas sabe muito bem que tudo isto é real. Todos sabem como isto funciona. Nossa inteligência consegue decifrar e nosso coração consegue bendizer todos estes mistérios.


 Louis Braille perdeu a visão aos três anos. Não se entregou. Estudou, pesquisou e se dedicou mais ainda. Aos 16 anos, em 1825, com base no emprego de pontos em relevo, deu ao mundo um presente fantástico: o sistema Braille. Morreu com 43 anos e deixou esta herança divina.


 Já foi o tempo que os cegos não enxergavam. Que eram dependentes. Hoje eles ultrapassam barreiras, aceitam desafios, surpreendem e provam que a pior cegueira é aquela que impede mesclar ações e conquistas da raça humana com solidariedade.


 Entre as lições que guardo do 40o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro a mais importante é que a pior cegueira está no orgulho, no egoísmo e na prepotência. Cego é quem tem medo de ousar para não errar. Cegueira é acreditar que a felicidade nos envolve e adentra nosso coração apenas para nos dar prazer. Puro engano: a felicidade só é real, verdadeira e duradoura se for compartilhada. Se for dividida com as pessoas que estão ao nosso redor.


 

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JUCA CHAVES

APENAS UM DEPOIMENTO

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O compositor, músico, humorista e crítico, Menestrel Maldito, deixa saudades. O Brasil e a Bahia se despedem do carioca Jurandyr Czaczkes Chaves (1938-2023).
Juca Chaves fez muito sucesso com suas modinhas/sátiras durante o governo Juscelino Kubitschek.
Ele é autor de músicas que se tornaram sucesso no Brasil como “A Cúmplice”, “Menina”, “Que Saudade” e “Presidente Bossa Nova”.
Vale lembrar:
1) JK nunca censurou as sátiras de Juca Chaves. Pelo contrário, adorava suas modinhas sempre bem humoradas e criativas. Juca Chaves foi censurado durante governo militar, entre 1964 e 1985. Aí sim, ele foi perseguido, exilado e viveu alguns anos longe do Brasil, entre Portugal e Itália.
2) Em 2011, no lançamento do filme ‘JK NO EXÍLIO’, de Charles Cesconetto, aqui no Museu Nacional de Brasília, a meu convite, o Juca Chaves subiu ao palco com a filha de JK, Maria Estela, e cantou suas modinhas, abrindo com o PRESIDENTE BOSSA NOVA.
3) Nesse dia, Juca Chaves e Maria Estela Kubitschek, abriram a cerimônia com uma forte mensagem a favor da ADOÇÃO, por sinal, uma lei proposta por JK. Evidente lembrando a adoção da própria Maria Estela e das duas filhas de Juca Chaves: Maria Clara e Morena.
A filha de JK, deixou no seu FB a seguinte mensagem:
“A família do “Presidente Bossa Nova” está triste com o falecimento de Juca Chaves. O Menestrel popularizou JK com suas sátiras, sempre criativas e bem humoradas. Juca Chaves “Voou…. Voou pra bem distante…” e “a mineirinha debutante” está triste.
Maria Estela Kubitschek Lopes
Para quem quiser ouvir Juca Chaves cantando “Presidente Bossa Nova”
Fotos: Antes da exibição do filme “JK NO EXÍLIO”, no Museu Nacional de Brasília, Juca Chaves subiu ao palco e cantou várias modinhas, terminando com Presidente Bossa Nova.
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Dia Mundial da Água

Cerrado pode perder quase 34% da água até 2050

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Cenário considera impacto do ritmo de exploração agropecuária no bioma

 

O Cerrado pode perder 33,9% dos fluxos dos rios até 2050, caso o ritmo da exploração agropecuária permaneça com os níveis atuais. Diante da situação, autoridades e especialistas devem dedicar a mesma atenção que reservam à Amazônia, uma vez que um bioma inexiste sem o outro. O alerta para situação é do fundador e diretor executivo do Instituto Cerrados, Yuri Botelho Salmona. Nesta terça-feira (22), é celebrado o Dia Mundial da Água, instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Salmona mensurou o efeito da apropriação da terra para monoculturas e pasto, que resultou em artigo publicado na revista científica internacional Sustainability. A pesquisa contou com o apoio do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN).

Ao todo, foram analisadas 81 bacias hidrográficas do Cerrado, no período entre 1985 e 2022. Segundo o levantamento, a diminuição da vazão foi constatada em 88% delas em virtude do avanço da agropecuária.

A pesquisa indica que o cultivo de soja, milho e algodão, assim como a pecuária, têm influenciado o ciclo hidrológico. O estudo também evidencia que mudanças do uso do solo provocam a redução da água em 56% dos casos. O restante (44%) está associado a mudanças climáticas.

“Quando eu falo de mudança de uso de solo, a gente está, no final das contas, falando de desmatamento e o que você coloca em cima, depois que você desmata”, disse Saloma, em entrevista à Agência Brasil. Segundo o pesquisador, o oeste da Bahia é um dos locais onde o cenário tem mais se agravado.

Quanto às consequências climáticas, o pesquisador explica que se acentua a chamada evapotranspiração potencial. Salmona explicou ainda que esse é o estudo com maior amplitude já realizado sobre os rios do Cerrado.

“O que está aumentando é a radiação solar. Está ficando mais quente. Você tem mais incidência, está ficando mais quente e você tem maior evaporação do vapor, da água, e é aí em que a mudança climática está atuando, muito claramente, de forma generalizada, no Cerrado. Em algumas regiões, mais fortes, como o Maranhão, Piauí e o oeste da Bahia, mas é geral”, detalhou.

Chuvas

Outro fator que tem sofrido alterações é o padrão de chuvas. Conforme enfatizou Salmona, o que se observa não é necessariamente um menor nível pluviométrico.

“A gente viu que lugares onde está chovendo menos não é a regra, é a exceção. O que está acontecendo muito é a diminuição dos períodos de chuva. O mesmo volume de água que antes caía em quatro, cinco meses está caindo em dois, três. Com isso, você tem uma menor capacidade de filtrar essa água para um solo profundo e ele ficar disponível em um período seco”, comentou.

Uma das razões que explica o efeito de reação em cadeia ao se desmatar o cerrado está no fato de que a vegetação do bioma tem raízes que se parecem com buchas de banho, ou seja, capazes de armazenar água. É isso que permite, nos meses de estiagem, que a água retida no solo vaze pelos rios. Segundo o pesquisador, em torno de 80% a 90% da água dos rios do bioma tem como origem a água subterrânea.

Edição: Heloisa Cristaldo

EBC

 

 

 

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VENTO DA ARTE NOS CORREDORES DA ENGENHARIA

Lá se vão 9 anos. Março de 2014.

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No dia 19 de março, quando o Sinduscon – Sindicato das Indústrias da Construção Civil do DF completava 50 anos, um vendaval de Arte, Musica, Pintura adentrou a casa de engenheiros, arquitetos e empresários e escancarou suas portas e janelas para a Cultura.
Para que o vento da arte inundasse todos seus corredores e salões, o então presidente Júlio Peres conclamou o vice Jorge Salomão e toda diretoria para provar que Viver bem é viver com arte. E sempre sob as asas da Cultura, convocou o artista mineiro Carlos Bracher para criar um painel de 17 metros sobre vida e obra de JK e a construção de Brasília. Uma epopeia.
Diretores, funcionários, escolas e amigos ouviram e sentiram Bracher soprar o vento da Arte durante um mês na criação do Painel “DAS LETRAS ÀS ESTRELAS”. O mundo da engenharia, da lógica e dos números se transformou em poesia.
Uma transformação para sempre. Um divisor de águas nos 50 anos do Sinduscon.
O presidente Julio Peres no discurso que comemorou o Cinquentenário da entidade e a inauguração do painel foi didático e profético:
“A arte de Carlos Bracher traz para o este colégio de lideranças empreendedoras, a mensagem de Juscelino Kubitschek como apelo à solidariedade fraterna e à comunhão de esforços. Bracher é nosso intérprete emocionado das tangentes e das curvas de Oscar Niemeyer e Lucio Costa. Nos lances perfomáticos de seu ímpeto criador, Bracher provocou um espetáculo de emoções nas crianças, professores, convidados, jornalistas e em nossos funcionários.
Seus gestos e suas pinceladas de tintas vivas plantaram sementes de amor à arte. As colheitas já começaram.”
Aliás, as colheitas foram muitas nesses nove anos e serão ainda mais e melhor na vida do Sinduscon. O centenário da entidade está a caminho…
Sou feliz por ter ajudado nessa TRAVESSIA.
SG
Fotos: Carlos Bracher apresenta o projeto do Painel. Primeiro em Ouro Preto e depois visita as obras em Brasília.
Na foto: Evaristo Oliveira (de saudosa Memória) Jorge Salomão, Bracher, Julio Peres, Tadeu Filippelli e Silvestre Gorgulho
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Reportagens

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