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Saneamento e gestão dos lixões

Palácio do Planalto envia projeto de lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos

Silvestre Gorgulho, de Brasília


Com 33 artigos objetivos, distribuídos em sete capítulos que tratam de resíduos sólidos urbanos, industriais, rurais, da área de saúde e também entulhos da construção civil, o Presidente Lula assinou mensagem que acompanha o projeto de lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos. O ato solene aconteceu na véspera do Dia da Pátria, no Palácio do Planalto. É a primeira vez que o Executivo tem a iniciativa de apresentar uma proposta que, transformada em lei, vai estabelecer regras claras para proteger o meio ambiente e a saúde pública dos problemas causados pelos resíduos, bem como punições criminais para quem descumpri-las. A realidade hoje no Brasil é triste: cerca de 25 mil pessoas moram em aterros ou lixões. E mais de dois milhões de pessoas vivem ligadas direta ou indiretamente aos aterros.



Foto: Jefferson Rudy


O presidente Lula assina a mensagem que acompanha o projeto de lei da Política Nacional dos Resíduos Sólidos ao lado do ministro das Cidades, Márcio Fortes, de Marina Silva e do presidente da Asmare, Luiz Henrique da Silva.


 


 


Segundo a ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, aprovado pelo Congresso Nacional, o projeto de lei da Política Nacional de Resíduos Sólido  poderá agregar valor aos resíduos.
Além disso, criará formas de aumentar a capacidade competitiva do setor produtivo, de propiciar a inclusão e o controle social e, concomitantemente, de orientar estados e municípios sobre a gestão adequada dos resíduos sólidos.
O conteúdo do projeto foi tema de seminários regionais, promovidos pelos ministérios envolvidos e pela Caixa Econômica Federal. O assunto também foi debatido com a sociedade civil no Conama.
Participaram das discussões ainda a Confederação Nacional das Indústrias, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, a Associação Brasileira de Engenharia Sanitária, o Compromisso Empresarial para Reciclagem (Cempre) e organizações como o Fórum Lixo & Cidadania e o Comitê Interministerial de Inclusão Social dos Catadores de Lixo.
Segundo técnicos do MMA, o projeto está em consonância com duas leis importantes, as quais complementa: a nº 11.107, de 2005, que dispõe sobre normas gerais para União, estados, Distrito Federal e municípios contratarem consórcios públicos na realização de objetivos comuns; e a nº 11.445, de 2007, que estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico.
Destino final
“Com esse tripé, completaremos a legislação do saneamento básico ambiental no País.
A articulação do projeto com outras leis é fundamental para estabelecer o controle efetivo do destino final do produto, pós-consumo”, explica o secretário de Recursos Hídricos e Ambientes Urbanos do MMA, Luciano Zica.
O projeto também vai ao encontro das políticas nacionais do Meio Ambiente, de Educação Ambiental, de Recursos Hídricos, de Saneamento Básico, de Saúde, de política Urbana, Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior, bem como das ações do governo que promovem a inclusão social.
Essa concordância é fundamental, de acordo com o secretário, para fortalecer os sistemas já existentes. Hoje, a regulação referente aos resíduos sólidos é constituída apenas de resoluções do Conama e de leis estaduais.


Diretrizes
Entre as principais diretrizes, além da proteção da saúde pública e da qualidade do meio ambiente, a Política Nacional de Resíduos Sólidos prevê: não-geração, redução, reutilização, reciclagem e tratamento de resíduos sólidos e disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos; alteração dos padrões de produção e consumo sustentável; gestão integrada de resíduos sólidos; incentivo ao uso de matérias-primas e insumos derivados de materiais recicláveis e reciclados.
Para alcançá-las, o projeto determina inúmeras estratégias. Uma delas é a gestão compartilhada dos resíduos, a partir das definições de atribuições do Distrito Federal e dos municípios no processo.
O texto prevê a possibilidade de pequenos municípios se unirem para gerir seus resíduos em conjunto, conforme a lei nº 11.107: são as soluções consorciadas regionais para, por exemplo, a construção de um aterro que atenda vários municípios com significativa redução de custo para cada um deles e, conseqüentemente, melhor otimização dos recursos repassados pela União.


Planos de Gestão
Integrada

Para que haja uma gestão única na questão dos resíduos sólidos, o governo resolver instituir um grupo de trabalho interministerial. Assim, as atividades serão unificadas e vão ficar concentradas no Ministério das Cidades, na Codevasf e na Funasa.
Segundo técnicos do MMA, entre as vantagens do trabalho conjunto está o de acabar com os lixões; criar estruturas de cooperativas de catadores, incentivando a coleta seletiva; implantar aterros sanitários; criar consórcios intermunicipais para gestão de recursos e viabilizar o manejo de resíduos provenientes da construção civil e da demolição.
Além de viabilizar recursos governamentais numa única direção, o grupo de trabalho vai facilitar a atuação dos técnicos das três esferas governamentais – federal, estadual e municipal.
A gestão compartilhada de resíduos sólidos, também prevista na Lei Nacional de Saneamento, abre possibilidade para que pequenos municípios se unam para gerir seus resíduos em conjunto construindo aterros que atendam várias cidades, o que significa redução de custo para cada um dos consorciados. Com o intuito de incentivar a formação desses consórcios, o projeto de lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos estabelece que os consórcios públicos, constituídos com o objetivo de viabilizar a descentralização e a prestação de serviços públicos e envolvam resíduos sólidos, terão prioridade na obtenção dos incentivos propostos e de recursos disponibilizados pelo governo federal.


Responsabilidades
O projeto responsabiliza o gerador por seu rejeito. Estabelece que a responsabilidade abrange as etapas de acondicionamento, disponibilização para coleta, coleta em si e tratamento e disposição ambientalmente adequada de rejeitos.
O texto destaca que a contratação de serviços para qualquer uma dessas etapas não isenta a responsabilidade do gerador pelos eventuais danos que vierem a ser causados.
A responsabilidade só cessa quando os resíduos forem reaproveitados como novos insumos em seus ciclos ou em outros ciclos produtivos. No caso do gerador de resíduos sólidos urbanos – do resíduo doméstico -, a responsabilidade cessa com a disponibilização para a coleta.


Logística reversa
Explica Luciano Zica que “depois de aprovado, o projeto de lei funcionará como um mecanismo efetivo para estimular a redução, reutilização, reciclagem, tratamento e destinação adequada dos resíduos”. Além disso- acrescenta o secretário Zica  – será um estímulo importante para a atividade dos catadores, garantindo o mercado de trabalho desses trabalhadores, cuja demanda hoje é pequena. “O projeto cria a ferramenta da logística reversa e, como conseqüência, cria condições para assegurar o retorno dos resíduos, como matéria-prima, para o ciclo produtivo”, diz  Luciano Zica.
A partir da logística reversa, as empresas devem se comprometer com o destino final de seus produtos pós-consumo, pois estabelece que o fabricante é responsável pela retirada deles do meio ambiente. Esse sistema pode funcionar, por exemplo, com pneus, lixo hospitalar e certas embalagens. “Com ele, reduzimos a presença de plástico e metal nos aterros e, portanto, melhoramos a qualidade desses aterros”, acrescenta o secretário do MMA. Os resíduos “reversos” coletados pelos serviços de limpeza pública serão guardados em instalações adequadas, facilitando seu resgate pelos fabricantes e seu reaproveitamento no ciclo produtivo. Os municípios, o Distrito Federal ou o consórcio de municípios poderão cobrar por esses serviços.


Incentivos financeiros
 No parágrafo 2º do artigo 23 do projeto, está explícito que os responsáveis pelo serviço público de limpeza e manejo de resíduos deverão priorizar a contratação de associações ou cooperativas de catadores de materiais recicláveis, formadas por pessoas de baixa renda. E essa não é a única referência a esses trabalhadores.
No texto, consta também que indústrias e entidades dedicadas à reutilização e ao tratamento de resíduos sólidos produzidos no País e ao desenvolvimento de programas de logística reversa, prioritariamente em parceria com cooperativas e associações de catadores, poderão receber incentivos da União, estados, Distrito Federal e municípios para suas iniciativas.
O projeto prevê instrumentos econômicos e financeiros para que o Poder Público possa desenvolver programas que induzam a prevenção e redução de resíduos no processo produtivo; o desenvolvimento de pesquisas voltadas para essa área, de produtos que possam atender à proteção ambiental e à saúde até a novas tecnologias; infraestrutura física e equipamentos para associações ou cooperativas de catadores; e desenvolvimento de projetos consorciados de logística reversa. Os municípios e o DF poderão ter acesso a crédito no Sistema Financeiro Nacional, com critérios diferenciados, como taxa de juros reduzida, concessão de carência e parcelamento de operações creditícias e de financiamentos.


Classificações técnicas
O texto do projeto de lei classifica os resíduos e estabelece conceitos técnicos – considerados fundamentais na uniformização das práticas num país das proporções do Brasil – para procedimentos importantes em sua gestão. Define, por exemplo, que “destinação final ambientalmente adequada” é a técnica de destinação ordenada de rejeitos, segundo normas operacionais específicas, de modo a evitar danos ou riscos à saúde pública e à segurança, minimizando impactos ambientais adversos.


Proibições
O projeto proíbe o lançamento de resíduos sólidos nos rios e no solo, quando possa causar danos ao meio ambiente e à saúde da população.
A queima de lixo a céu aberto ou em recipientes, instalações e equipamentos não licenciados também não é permitida – com exceção apenas para o caso de emergência sanitária, desde que autorizada e acompanhada pelo órgão ambiental competente.
Conforme o texto, ficam proibidos, na área de destinação final dos rejeitos – resíduos que não podem ser reciclados nem tratados -, o uso de rejeitos como alimentação, a catação, a fixação de habitação temporárias e permanentes.
O artigo 31 ainda veta a importação de resíduos sólidos e rejeitos cujas características causem danos ao meio ambiente e à saúde pública, ainda que para tratamento, reforma, reuso, reutilização ou recuperação. O projeto remete a definição do conceito de resíduos e rejeitos importados, que não causam danos ao meio ambiente e à saúde pública, para futura regulamentação.
Para evitar duplicidade jurídica, o projeto de lei não trata de rejeitos radioativos, que são regulados por lei específica.


Hoje, 69% dos resíduos sólidos do Brasil,
concentrados em alumínio, plástico, PET,
papel/papelão e vidro, têm como destino
os inapropriados lixões a céu aberto.


Cerca de 25 mil pessoas moram em aterros. Calcula-se ainda que o universo
de pessoas que vive ligado direta ou indiretamente aos aterros pode chegar a 2 milhões.


Situação atual no Brasil


Transformado em lei, o projeto pode contribuir para modificar para melhor um quadro sombrio. Hoje, 69% dos resíduos sólidos do Brasil, concentrados em alumínio, plástico, PET, papel/papelão e vidro, têm como destino os inapropriados lixões a céu aberto, quando deveriam ser retirados antes do lixo ser depositado adequadamente em aterros sanitários e serem reciclados e reaproveitados na cadeia produtiva, em benefício até dos catadores , que têm na coleta um meio de sobrevivência. Atualmente, cerca de 25 mil pessoas moram em aterros. Calcula-se ainda que o universo de pessoas que vive ligado direta ou indiretamente aos aterros pode chegar a 2 milhões.
Segundo dados do IBGE, de 2000, mais da metade dos 5.240 municípios brasileiros – 59% – continuam a depositar os resíduos em lixões. Apenas 13% possuem aterros sanitários e 17% aterros controlados. O relatório mostra ainda que apenas 10% dos municípios do País fazem coleta seletiva do lixo e 352 municípios o reciclam. Informações do Centro Empresarial de Reciclagem indicam que só 11% dos resíduos são reciclados no País.
A maior parte dos problemas com os resíduos sólidos concentra-se em poucas cidades do País.
Dez por cento dos municípios (com mais de 50 mil habitantes) produzem 80% do total do lixo coletado no Brasil. Por outro lado, 32% de todo o lixo urbano é coletado por 13 cidades.
Os números demonstram que o consumidor consciente, que separa o lixo a ser coletado, pode ajudar a mudar esse cenário. Afinal, os resíduos domésticos (119.884 ton/ diárias) respondem por 78% de todos os resíduos sólidos do País.

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Comemoração dos 64 anos de Brasília tem teatro e oficinas

Programação em homenagem ao aniversário da capital inclui uma agenda extensa de atividades culturais, shows e eventos esportivos e cívicos gratuitos ao longo do mês

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em

 

Por Ana Flávia Castro, da Agência Brasília | Edição: Igor Silveira

 

A programação em homenagem aos 64 anos de Brasília promete agenda cheia para os brasilienses. A lista de atividades se estende até domingo (21), com diferentes atrações gratuitas, que vão desde apresentações musicais e artísticas até eventos esportivos e cívicos por toda a cidade.

Nesta quarta-feira (16), os brasilienses poderão aproveitar oficinas, apresentações de teatro e mostras culturais gratuitas em várias regiões do Distrito Federal. A lista de atividades inclui atrativos para todos os públicos.

Memorial JK e o Museu do Catetinho receberão a cada dia cerca de 40 crianças em vulnerabilidade social em visitas guiadas intituladas ‘Descobrindo Brasília: um passeio pela história’ | Foto: Tony Oliveira/Agência Brasília

“A ideia do governador Ibaneis Rocha e da vice-governadora Celina Leão é levar as comemorações para todas as regiões administrativas e definir o aniversário de Brasília como um evento no calendário nacional, para que as pessoas venham curtir essa semana do aniversário, movimentando a cidade, enchendo os hotéis e dando visibilidade aos artistas locais”, destaca o secretário de Turismo, Cristiano Araújo.

Projeto Cantoar e as Aventuras Encantadas fará, na quarta-feira, duas apresentações teatrais voltadas para o público infantil, apresentando ao público técnicas do universo do yoga e da meditação para encontrar o equilíbrio emocional por meio da musicalidade, palhaçaria e literatura. As exibições serão às 10h e às 15h, no Teatro Sesc Paulo Gracindo (Gama).

Além dos espetáculos, o projeto oferecerá oficinas ligadas ao mundo sensorial das crianças ao longo de todo o mês no Cepi Quero-Quero (Recanto das Emas), sempre às 10h. A atividade é gratuita, mas está sujeita à lotação, e é necessário retirar ingresso neste link.

História, arte e cultura

Até o próximo sábado (20), o Memorial JK e o Museu do Catetinho receberão a cada dia cerca de 40 crianças em vulnerabilidade social em visitas guiadas intituladas Descobrindo Brasília: um passeio pela história.

O Museu do Catetinho também está na programação do aniversário de 64 anos de Brasília | Foto: Joel Rodrigues/Agência Brasília

Ao longo de todo o mês de abril, as estações do Metrô Galeria e Central terão a exposição de telas dos artistas plásticos Xande e Rivas, tendo Brasília como tema. Aulões de dança também serão ofertados nos espaços culturais do DF – complexos culturais de Samambaia e de Planaltina, Centro de Dança, Espaço Cultural Renato Russo e Casa do Cantador.

Já na Biblioteca Nacional de Brasília serão realizados clubes de leitura uma vez por semana com a discussão de obras de Nicolas Behr. Durante o mês ocorre a primeira edição do concurso de fotografia Regina Santos. Serão contempladas três categorias: fotografias de natureza, de pessoas e de arquitetura. A premiação varia de R$ 1 mil a R$ 10 mil. As imagens vencedoras ficarão expostas no Espaço Oscar Niemeyer, na Praça dos Três Poderes.

Clique aqui para ver a programação completa do aniversário de Brasília.

Veja, abaixo, a programação.

→ Projeto Cantoar e as Aventuras Encantadas – apresentação teatral
Data: quarta-feira (17)
Horário: 10h e 15h
Local: Sesc Paulo Gracindo, Gama

→ Oficinas Cantoar e as Aventuras Encantadas
Data: durante todo este mês
Horário: 10h
Local: Cepi Quero-Quero – Núcleo Rural Monjolo, Recanto das Emas

→ Exposição de telas dos artistas plásticos Xande e Rivas sobre Brasília
Data: durante todo este mês
Local: Estações de metrô Galeria (Xande) e Central (Rivas)

→ 1ª edição do Concurso de Fotografia Regina Santos
Data da premiação: domingo (21)
Local: Espaço Oscar Niemeyer – Praça dos Três Poderes

→ Aulões abertos nos espaços culturais
Data: durante todo este mês
Locais: Centro de Dança (Setor de Autarquias Norte Q 1), Casa do Cantador (Setor. N Quadra 32 Área Especial G – Ceilândia), Complexo Cultural de Planaltina (Avenida Uberdan Cardoso, Setor Administrativo Lote 02 – Planaltina), Espaço Cultural Renato Russo (Asa Sul Comércio Residencial Sul 508 Bloco A – Asa Sul) e Complexo Cultural de Samambaia | (Samambaia Sul)

→ Clube de leitura de autores brasilienses
Data: durante todas as semanas deste mês
Local: Biblioteca Nacional de Brasília

→ Projeto Cinema é Ralação – oficinas
Data: até o dia 26
Horário: 8h às 12h
Local: IFB Recanto das Emas

→ Visita guiada pelos patrimônios históricos e culturais de Brasília
Data: quarta (16),  quinta (17) e sexta (19) no turno vespertino; domingo (20), no turno matutino
Local: Memorial JK e Museu do Catetinho.

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Viva Brasília 64 anos: As várias faces da estética brasiliense

Especial de aniversário da capital tem início com reportagem explorando a identidade brasiliense, do sotaque à culinária, passando pela moda

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Por ‌Jak Spies e Victor Fuzeira, da Agência Brasília | Edição: Vinicius Nader

Prestes a completar 64 anos de vida, Brasília é a capital responsável por abrigar todos: desde candangos que edificaram prédios, passando pelos descendentes e aqueles que vêm somente para visitar e conhecer a construção da identidade cultural do Quadradinho.

No especial Viva Brasília 64 anos, a Agência Brasília convida você a lembrar, conhecer e viver o jeitinho brasiliense, contemplado pela arquitetura, culinária, arte, esporte e outras áreas.

Forjada na diversidade, a capital tem gerações que nasceram aprendendo a fazer o balão, descer a tesourinha e pegar o zebrinha – coisas que fazem sentido para os brasilienses e compõem o estilo de vida da cidade, mas podem causar estranhamento a quem vem de fora.

Arte: Agência Brasília

Para a antropóloga e professora do departamento de sociologia da Universidade de Brasília (UnB) Haydèe Caruso, Brasília pode ser pensada de forma muito diversa e com múltiplas identidades devido à própria concepção da cidade, que representa a junção de todas as partes e lugares do Brasil.

“A gente não estabelece padrões culturais por decretos ou protocolos, nós vamos vivendo e construindo a identidade cultural. É difícil dizer que há uma única identidade, até pelo distanciamento entre o Plano Piloto e as outras regiões administrativas, onde há vários movimentos que são berço do rap, do rock e do samba brasiliense. É um caldeirão que reúne o diverso que é o Brasil. A pluralidade pode ser nossa identidade”, explica a especialista.

Arte, cultura, arquitetura, moda e gastronomia ajudam a compor a identidade única de Brasília, cidade que reúne aspectos culturais de todas as partes do país | Foto: Tony Oliveira/Agência Brasília

A antropóloga ressalta, ainda, que a identidade cultural é um processo contínuo de construção, em que a própria linguagem e expressões coloquiais locais podem ser citadas como exemplo.

Sotaque brasiliense

Para o brasiliense é comum pegar um baú ou camelo e ir ao Eixão do Lazer ou até mesmo morgar embaixo de um ipê e admirar o céu

Para o brasiliense, é comum pegar um baú ou camelo e ir ao Eixão do Lazer ou até mesmo morgar embaixo de um ipê e admirar o céu de Brasília – aquele conhecido como o mar da cidade. Depois, quem sabe, ir à Igrejinha e mais tarde ao Cine Drive-In ou ao Conic para um frevo.

Se você não é de Brasília, o parágrafo acima pode ser um pouco confuso de entender. Mas não se preocupe, nós o ajudamos a entender o dialeto da cidade que é só o ouro para você não pagar vexa, tá ligado, véi?

Essas são apenas algumas expressões típicas que fazem parte do sotaque brasiliense, tão claro para alguns e questionado por outros. O assunto foi tema do documentário Sotaque Capital, produzido pela jornalista Marcela Franco em 2013.

No curta, a resposta é que sim, existe um sotaque com características próprias no DF, fruto de uma mistura de diversas regiões do país. “Vinham pessoas de todos os estados para cá. Daí nasceu esse sotaque; dizem que é falado de forma cantada e que comemos algumas letras das palavras”, acentua a jornalista.

Outro termo peculiar é “babilônia”, usada para se referir às únicas quadras comerciais do Plano Piloto com ligação subterrânea. Considerada uma quebra de padrão entre as quadras modelos do Plano Piloto, a 205/206 Norte era conhecida como “a quadra estranha do Plano Piloto”, malvista por muitos e amada por alguns, e tema do documentário Babilônia Norte, dirigido por Renan Montenegro, 34.

O cineasta estava entre os que passavam pela quadra e a viam de forma diferente. Lançado em 2013, o curta explora os ângulos e espaços arquitetônicos do espaço, fazendo parte de um movimento de identificação cultural em Brasília que surgiu no mesmo ano. “O que mais potencializou esse movimento foi ser um trabalho feito por brasilienses, convidando mais artistas brasilienses para um público brasiliense. É um discurso bem bairrista: feito aqui, por nós, sobre nós e para nós. É pertencer à cidade e dar ressignificado para as coisas”, conta Renan.

O diretor aponta que o ano de 2013 foi uma virada para a identidade brasiliense e fez diferença na quadra para o que ela é hoje. A mesma lógica, que parte de ocupar os espaços públicos, é aplicada ao Carnaval de Brasília, que já tem um circuito a contemplar os brasilienses que não precisam mais viajar só para se divertir em bloquinhos.

“Para uma cidade nova, dez anos fazem muita diferença. Há um desenvolvimento dos artistas locais e do público. Brasília sempre foi muito fria pela construção arquitetônica e urbanística e pelos endereços cheios de números. Então, até esse movimento de apelidar os lugares, por exemplo, ajuda no processo de chamar a cidade de nossa”, destaca o cineasta.

Moda e gastronomia

O chef André Castro defende a gastronomia com ingredientes locais: “Precisamos começar a olhar para o quintal da gente”

Essa construção de identidade entra em outros campos. Os alimentos típicos do Cerrado são usados na elaboração de menus executivos, festivais gastronômicos e cardápios especiais. Entre os restaurantes que ressaltam essa culinária local está o Authoral, localizado na Asa Sul e comandado pelo chef de cozinha André Castro.

Durante o período em que esteve na Europa, André assimilou o importante aprendizado de enaltecer o local. “Valorizar o ingrediente que está próximo a você, seja porque ele faz parte da cultura, seja porque chega até você mais fresco: isso é valorizar, também, toda a cadeia produtiva que está próxima”, pontua.

Atualmente, há dois pratos incluídos no cardápio nessa linha. O primeiro leva óleo de babaçu tostado no lugar do óleo de gergelim. É um filé de pescada-amarela com crosta de castanhas brasileiras, musseline de batata-doce roxa, creme de moqueca e vinagrete de milho tostado. No outro preparo, é usada uma técnica espanhola para fazer uma croqueta com massa de galinha caipira com emulsão de pequi.

“Infelizmente, o brasiliense ainda conhece pouco do Cerrado. As pessoas nascem e crescem no Cerrado, mas não conseguem falar cinco ingredientes encontrados aqui. Precisamos começar a olhar para o quintal da gente”, comenta o chef.

Na loja Verdurão, Wesley Santos trabalha com duas ‘estações do ano’: seca e chuva

Não só a culinária é influenciada por características locais do DF, mas também a moda. Enquanto muitos países apresentam estações do ano bem-definidas, a marca de roupas Verdurão, criada em 2003, entende que isso não existe na realidade brasiliense.

“Temos duas estações: seca e chuva. E é assim que operamos, com roupas para época de seca e época de chuva. Eu até brinco que a Verdurão começou a falar da identidade cultural de Brasília em uma época em que a gente nem sabia que tinha uma identidade. A marca ajudou a mapear e explicitar essa identidade aos brasilienses”, afirma o diretor criativo da Verdurão, Wesley Santos.

Além de ser uma rede de apoio à economia local e às várias famílias que vivem da produção do vestuário, a Verdurão produz roupas sem nada de origem animal. Algumas são feitas com tecidos biossustentáveis, como fibra de bananeira e de cânhamo.

“Eu já rodei o mundo inteiro e nunca vi nada minimamente parecido com Brasília. É uma cidade cenário diferente de tudo”

Wesley Santos, diretor criativo

Uma das missões da empresa é, segundo Santos, “promover Brasília até para gringo conhecer” e “mostrar para o resto do país o quanto Brasília é massa”. Para o diretor criativo, não é tarefa difícil trabalhar com estampas que retratam o cotidiano da capital federal, usando e abusando dos símbolos brasilienses – placas, fauna, flora, gírias, costumes e cartões-postais.

“Estamos em uma cidade fora do normal, incrível. Temos um estilo de vida que não se encontra em nenhuma cidade do país. Eu já rodei o mundo inteiro e nunca vi nada minimamente parecido com Brasília. É uma cidade-cenário diferente de tudo”, afirma.

Brasília é poesia

Com oito livros repletos de poesias que falam sobre Brasília, o poeta Nicolas Behr compartilha dessa paixão pela cidade onde mora há 50 anos. O autor frisa que tudo está relacionado ao choque inicial que teve com Brasília, quando chegou aos 14 anos, vindo de Cuiabá (MT), e deu de cara com uma cidade estranha, nova e árida.

O poeta Nicolas Behr foi buscar inspiração nas curvas de Brasília para sua arte | Foto: Paulo H. Carvalho/Agência Brasília

“Essa aridez me causou um estranhamento, uma dificuldade de aceitar essa cidade e uma tentativa constante de dialogar com ela. Foi daí que nasceu a minha poesia, da tentativa de decifrar Brasília antes que ela me devorasse. É um conflito bom, que vai diminuindo à medida que você vai se incorporando à cidade”, observa.

Behr também comenta que a parte mais visível da estética brasiliense é a contribuição para a arquitetura, sendo impossível falar de Brasília sem passar pelas obras de Oscar Niemeyer. “Antes de Brasília, a arquitetura moderna era feia, pesada, sem leveza, sem graça, sem a criatividade que Oscar Niemeyer nos trouxe. Ele tirou os ângulos retos e trouxe as curvas, deu beleza ao que antes era uma coisa pesada”.

Para o poeta, Brasília representa a maior realização do povo brasileiro. “A grande história de Brasília é o que ela simboliza como uma ideia: a transposição para o papel e para o chão de uma tentativa de organizar o caos. Brasília é a cidade mais racional do mundo. É uma cidade instigante, que ganhou em vida e perdeu em mistério”, declara.

Ele finaliza reforçando que Brasília, por si só, rende muita poesia: “Aqui não existe limite para a criação intelectual. Brasília é uma cidade muito nova e, por ser nova, não tem uma tradição literária. Isso é bom para o artista, porque a tradição é um peso. Em Brasília, o horizonte está na sua frente”.

 

 

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Programa leva estudantes para visitas guiadas no Museu de Arte de Brasília

Mais de 3 mil alunos da rede pública já visitaram o Museu de Arte de Brasília por meio de projeto que oferece transporte gratuito, alimentação e oficinas educativas para os jovens

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Por Jak Spies, da Agência Brasília | Edição: Igor Silveira

 

Foi a primeira vez que a estudante Maiara Kelly Soares dos Santos, de apenas 6 anos, foi ao Museu de Artes de Brasília. De primeira, ela já demonstrou afeição pelas obras, elogiando não só as oficinas com brincadeiras, mas principalmente os quadros que viu durante a visita guiada. “Eu gostei mais das obras de arte, nunca vim aqui. É tudo bonito. Aprendemos o que é mais quente e mais frio”, destacou a pequena, referindo-se à tonalidade das cores ensinadas durante o passeio.

Já foram realizadas 168 visitas guiadas no equipamento público, que ocorrem desde 17 de abril de 2023 | Foto: Tony Oliveira/Agência Brasília

Maiara é uma entre os 140 alunos de educação infantil da Escola Classe Córrego Barreira, uma escola rural localizada na Ponte Alta Sul do Gama, e está entre os 3 mil estudantes do DF que já visitaram o museu por meio do MAB Educativo, que conta com recursos do Fundo de Apoio à Cultura (FAC) da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Distrito Federal (Secec-DF). Além das mediações e práticas artísticas, o programa oferece transporte gratuito e lanche para as crianças.

Já foram realizadas 168 visitas guiadas no equipamento público, que ocorrem desde 17 de abril de 2023. Mais de sete mil pessoas já foram alcançadas pelo programa do MAB, divididas entre público espontâneo e público escolar, além de 335 professores de 94 escolas, de 20 regiões administrativas do DF – sendo 90 de escolas públicas e quatro de escolas particulares. Mais de mil pessoas foram atendidas com o transporte gratuito.

“É uma oportunidade que eles têm de sair do ambiente deles, porque nossa escola é do campo e os alunos são de comunidade bem carente, então é uma parceria muito importante. Melhora muito a criatividade, o repertório visual e de palavras, além do desenvolvimento deles no campo da arte”, destacou a vice-diretora da Escola Classe Córrego Barreira, Marlene Alves.

Mais de sete mil pessoas já foram alcançadas pelo programa do MAB, divididas entre público espontâneo e público escolar, além de 335 professores de 94 escolas, de 20 regiões administrativas do DF – sendo 90 de escolas públicas e quatro de escolas particulares

Essas visitas só foram possíveis porque o MAB foi reaberto em 2021, antes fechado desde 2007. A reabertura do espaço cultural foi um dos presentes do aniversário de 61 anos da capital federal. Para o aniversário de Brasília, além das atividades normais durante a semana, o Museu está com uma programação de oficinas especiais nos finais de semana. O MAB fica no Setor de Hoteis e Turismo Norte, trecho 1, Projeto Orla.

Interação com o mundo

O projeto, que tem capacidade atual de receber 480 crianças por semana, também disponibiliza visitas acessíveis em libras e um material educativo para as crianças. De acordo com a coordenadora pedagógica do MAB Educativo, Luênia Guedes, a acessibilidade e o transporte gratuito são a parte principal do programa. “Muitas dessas escolas estão em regiões que ficam longe e não têm condição financeira de levar esse acesso às crianças”, ressaltou.

Com supervisão pedagógica, a turminha recebe a visita mediada de forma lúdica pelo acervo, onde as crianças participam dos jogos desenvolvidos pela equipe de mediadores. Depois, elas seguem para uma oficina no laboratório, que conta com atividades interativas.

“Essa proximidade com a arte já começa transformando e dando a sensação de pertencimento para essas crianças, para que elas possam perceber que o museu é um espaço para a comunidade. A experiência com a arte acessa o sensível, o criar, as possibilidades de reflexão, de interação com o mundo e a capacidade de construir novas realidades e mundos possíveis. Esse trabalho é fundamental para a formação cidadã de cada criança”, reforçou a coordenadora.

 

 

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