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Bicentenário é momento para Brasil encarar seus problemas, diz historiador

 

Ricardo Westin
Publicado em 12/8/2022

Rubens Ricupero estava lotado como diplomata em Washington quando os Estados Unidos celebraram os 200 anos da Independência, em 1976. Ele lembra que os eventos comemorativos, tanto os do governo quanto os da sociedade, se espalharam pelo país inteiro e puderam ser contados aos milhares.

Neste momento, o Brasil está às vésperas do bicentenário da separação de Portugal, mas Ricupero vê aqui um estado de ânimo bem diferente daquele dos americanos.

— O que eu vejo é uma imensa apatia, como se este aniversário não tivesse relação conosco, não dissesse respeito à nação. Há um vazio — afirma ele, que também é historiador, autor do livro A Diplomacia na Construção do Brasil, titular da Cátedra José Bonifácio, da Universidade de São Paulo (USP), e ex-ministro do Meio Ambiente (1993-1994) e da Fazenda (1994).

O historiador avalia que o aniversário da Independência seria a oportunidade perfeita para a sociedade brasileira fazer um balanço destes 200 anos e, a partir dele, corrigir os rumos para o futuro. Essa oportunidade, no entanto, está sendo perdida. Ele acrescenta:

— O povo não é indiferente. Quem é indiferente à história nacional é o governo, que não sabe ou não quer mobilizá-la em favor de uma reflexão sobre o país.

Leia, a seguir, a entrevista concedida por Ricupero à Agência Senado.

 

O historiador e diplomata Rubens Ricupero (foto: Roque de Sá/Agência Senado)

Por que o bicentenário da Independência precisa ser lembrado?

Por que se trata de uma oportunidade única para fazermos um balanço daquilo que realizamos ao longo destes 200 anos como país e sociedade. Em quais aspectos progredimos? Em quais regredimos? Em quais não saímos do lugar? A partir desse diagnóstico crítico baseado na história, poderemos então desenhar um programa de correção de rumos para o futuro, modificando aquilo que fizemos de errado, passando a agir naquelas questões que deixamos de lado.

Nesse balanço, há muitos aspectos que precisamos levar em conta. A desigualdade social é um deles. Passamos muito tempo fazendo vista grossa para os efeitos da escravidão sobre o presente. É verdade que nos últimos tempos tomamos algumas medidas para combater o racismo estrutural, mas ainda faltam muitas outras. Até hoje uma parcela diminuta da população controla uma grande parte da riqueza. Como podemos mudar essa situação e redistribuir a riqueza nacional? Propostas com esse fim estão há muito tempo engavetadas, como a correção do sistema brasileiro de tributos, que é altamente regressivo e cobra menos dos ricos e mais dos pobres. A democracia é outro aspecto que devemos analisar com atenção, ainda mais neste momento delicado que vivemos. Também devemos olhar o meio ambiente, a educação, a cultura.

Na comemoração do bicentenário, o importante não é lembrar um acontecimento isolado, como o grito do Ipiranga, o momento da separação de Portugal ou o reconhecimento pelo sistema internacional. O que realmente interessa é o que veio depois, estes dois séculos de idas e vindas, avanços e recuos, na formação e no crescimento da nação independente. Em outras palavras, precisamos ver o processo de construção do Brasil, uma obra ainda em andamento.

Esse balanço histórico e esse programa de correção de rumos não poderiam ser feitos em qualquer outro momento?

A vantagem de um aniversário como o da Independência é que se trata de um catalisador. Ele tem a rara capacidade de unir e mobilizar a sociedade inteira num mesmo momento. Já vimos isso em outros lugares. Nos 100 e nos 200 anos da Revolução Francesa, a França fez grandes debates sobre o passado, o presente e o futuro. Em 1889, a Exposição Universal de Paris, que se caracterizou pela construção da Torre Eiffel, foi vista por mais de 32 milhões de pessoas.

Quando os americanos comemoraram os 200 anos da Independência, em 1976, eu era diplomata nos Estados Unidos e me lembro que eles organizaram centenas ou até milhares de iniciativas no país inteiro. O planejamento havia começado dez anos antes, com a criação de uma comissão pelo Congresso. Como o 200º aniversário ocorreu um ano depois do fiasco da retirada americana da Guerra do Vietnã, o governo do presidente Gerald Ford soube instrumentalizar os festejos para reanimar o abatido espírito da nação com uma visão nostálgica e apologética do passado. Um século antes, os americanos haviam organizado na Filadélfia a Exposição do Centenário, em que ocorreu a famosa demonstração do telefone por Alexander Graham Bell ao imperador D. Pedro II. No Brasil de hoje, me espanta não haver nenhum movimento nesse sentido.

 

Sociedade compareceu em peso à Exposição Internacional do Centenário da Independência, em 1922, no Rio de Janeiro (foto: Augusto Malta/Instituto Moreira Salles)

 

O Brasil não está preocupado com os 200 anos da Independência?

Poucas iniciativas alusivas ao bicentenário me vêm à mente. O Senado e a Câmara dos Deputados, por exemplo, organizaram atividades e publicaram livros. A Universidade de São Paulo vai reinaugurar em setembro o Museu do Ipiranga, após anos em obras. Essas iniciativas são isoladas. A Presidência da República, que deveria ser a grande condutora das celebrações nacionais do bicentenário da Independência, praticamente não está se mobilizando. O que eu vejo no Palácio do Planalto é uma imensa apatia, como se este aniversário não tivesse relação conosco, não dissesse respeito à nação. Há um vazio.

Os brasileiros não se interessam pela história nacional?

Eu não diria isso. Há estudos que indicam que os brasileiros gostam da história e se interessam por ela. Uma pesquisa feita no fim de 2021 pelo Ipespe [Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas] por encomenda da Febraban [Federação Brasileira de Bancos] mostrou que a maior parte considera a abolição da escravidão [1888], a Independência [1822], a Proclamação da República [1889] e o fim da ditadura militar [1985] os episódios históricos mais importantes do Brasil. O povo não é indiferente. Quem é indiferente à história nacional é o governo, que não sabe ou não quer mobilizá-la em favor de uma reflexão sobre o país. Está preocupado apenas com o curto prazo. Nem mesmo o Ministério da Educação foi acionado como deveria, para estimular as escolas e universidades a entrar no debate.

O poder público agiu diferente em 1922, no centenário da Independência, não foi?

Sim. Vejo uma diferença brutal em comparação com o centenário. Em 1922, incontáveis atividades foram organizadas no país tanto pelo governo federal, como a Exposição Internacional do Centenário da Independência do Brasil, no Rio de Janeiro, quanto pela própria sociedade, como a Semana de Arte Moderna, em São Paulo. A Exposição do Centenário foi inaugurada pelo presidente Epitácio Pessoa e contou com a participação de 13 países. Além disso, anos antes de 1922 já se falava das comemorações. Para que a Exposição do Centenário pudesse ser montada, o poder público demoliu o Morro do Castelo e construiu os prédios do evento sobre a nova esplanada que se abriu no centro da capital federal. Isso exigiu antecipação, planejamento. Um século atrás, havia uma ansiedade generalizada pela chegada do aniversário do Brasil independente.

Aqueles livros clássicos da década de 1930 com análises revolucionárias sobre o Brasil e os brasileiros, como Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, nasceram das discussões iniciadas no centenário, na década anterior. A criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, também nos anos 1930, foi uma consequência prática daquela efervescência começada em 1922.

Até mesmo no ano 2000 tivemos uma movimentação por ocasião dos 500 anos do Descobrimento, ao contrário de hoje. No ano anterior, o governo criou o Parque Nacional do Descobrimento, no sul da Bahia, a região em que os portugueses desembarcaram em 1500. O Descobrimento foi o início da extinção de muitos dos povos originários e também o começo da escravidão comercial, mas o aniversário passou ao largo dessas questões. Não se incluíram os indígenas e os negros nas discussões e não se debateram transformações sociais para o presente. De qualquer forma, os 500 anos não passaram em branco. Hoje, às vésperas do bicentenário, o país parece estar completamente anestesiado.

 

Imprensa engajada: na edição de 7 de setembro de 1922, o jornal carioca A Noite dedica a primeira página ao centenário da Independência (imagem: reprodução/Biblioteca Nacional Digital)

 

O senhor atribui essa despreocupação com o bicentenário da Independência apenas à falta de liderança do governo?

A maior culpa é do governo, sem dúvida. Mas atribuo essa despreocupação também aos meios de comunicação e à crise que enfrentamos neste momento. Assim como o governo, a mídia tampouco se empenhou em torno do bicentenário. Quando não existe um esforço nacional de esclarecimento, não há como as pessoas comuns saberem do aniversário. Aquela mesma pesquisa de opinião encomendada pela Febraban mostrou que quase 60% da população brasileira não sabe que estamos às vésperas dos 200 anos da Independência.

Quando falo em crise, eu me refiro à política, à econômica e à social nas quais estamos mergulhados há algum tempo, tudo isso agravado pelo trauma da pandemia. O bicentenário coincide com um momento em que os brasileiros estão tomados pelo desalento, pela falta de esperança, e não encontram motivação para comemorar. A autoestima nacional está muito baixa. Além disso, o 7 de setembro cai algumas semanas antes da eleição de 2 de outubro, que é tão decisiva, e tem que concorrer com a reta final da campanha.

Em 1922, o Brasil também vivia uma crise. A eleição presidencial vencida por Artur Bernardes tinha sido tumultuada, havia explodido a primeira das rebeliões tenentistas, o sistema político da Primeira República entrava em colapso e os brasileiros sofriam com a inflação. Apesar de tudo, a sociedade estava esperançosa. Ela tinha consciência do atraso nacional e estava desejosa do progresso e da modernidade.

Em termos práticos, que tipo de consequência o Brasil pode sofrer por deixar o bicentenário da Independência passar em branco?

Quando afirmo que é preciso comemorar o bicentenário, não quero dizer “festejar”, mas sim “trazer à memória”, “recordar o passado”, conforme a origem etimológica da palavra “comemorar”. Atividades meramente ufanistas e autocongratulatórias não levam a lugar nenhum. Elas dão a entender que, como país e sociedade, estamos muito bem e não há nada que precisemos modificar. Esse não é, obviamente, o caso do Brasil. Essa concepção de “comemoração” à qual me refiro nos obriga a confrontar a história em geral como tragédia, a não omitir aniversários abomináveis, os abismos de iniquidade do nazismo, do fascismo, do stalinismo, da colonização, da escravidão, dos genocídios, dos massacres, das ditaduras e das repressões.

Podemos fazer uma comparação com a psicanálise. Como indivíduos, é importante que olhemos para o nosso passado, por mais doloroso que seja, encontremos nele a origem dos traumas que nos perturbam hoje e, partir disso, trabalhemos para superá-los e ter uma vida melhor. Como nação, é a mesma coisa. Se não analisarmos o nosso passado coletivo, não vamos ter consciência crítica dos nossos problemas e, como consequência, nunca vamos superá-los. O bicentenário será, infelizmente, uma oportunidade perdida.

Fonte: Agência Senado

 

 

 

 

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Ação educativa em bares orienta contra direção após consumo de álcool

Com o projeto Rolê Consciente, o Detran promove intervenções artísticas sobre os riscos de beber e dirigir; iniciativa acontece nesta sexta, na Asa Norte

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Agência Brasília* I Edição: Débora Cronemberger

 

Na noite desta sexta-feira (29), acontece mais uma edição do projeto Rolê Consciente do Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran-DF). A ação educativa percorre bares e restaurantes levando conscientização ao público para não dirigir, se beber. A ação de hoje ocorre na Asa Norte, de 18h às 21h.

Equipes do Detran percorrem bares e restaurantes para alertar sobre os riscos de dirigir após consumir bebida alcoólica | Foto: Divulgação/Detran

O Rolê Consciente é uma ação que envolve intervenções artísticas com bonecos, MCs do trânsito com suas rimas e, também, um papo sério com a entrega de material educativo e palestras dos professores de trânsito do Detran-DF. Toda a ação é voltada ao tema sobre os efeitos do álcool no organismo, orientações de segurança quanto à utilização de celular ao volante, a importância do respeito à velocidade máxima das vias, faixa de pedestre, respeito aos ciclistas e muito mais.

De acordo com o Código de Trânsito Brasileiro, dirigir após o consumo de álcool é infração gravíssima, com multa no valor de R$ 2.934,70 e suspensão do direito de dirigir por um ano. O Rolê Consciente acontece às quintas e sextas-feiras e, a partir de outubro, será aos sábados e domingos também.

*Com informações do Detran

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Parceria visa fortalecer o esporte inclusivo no DF

Secretarias de Esporte e Lazer e da Pessoa com Deficiência vão elaborar ações para ampliar o acesso das pessoas com deficiência à prática esportiva em todas as suas esferas e em todas as faixas etárias

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Agência Brasília* | Edição: Igor Silveira

 

A Secretaria de Esporte e Lazer (SEL-DF) e a Secretaria da Pessoa com Deficiência (SEPD-DF) se uniram para potencializar o paradesporto e esporte inclusivo no DF. As ações serão efetivadas por meio do Programa de Esporte Inclusivo.

A SEL-DF tem trabalhado para fomentar a visibilidade e valorização do paradesporto na cidade. Para isso, a pasta vem realizando eventos com o objetivo de dar celeridade ao acesso das pessoas com deficiência à prática esportiva em todas as suas esferas e em todas as faixas etárias.

As secretarias já trabalhavam de forma conjunta em ações pontuais, com o apoio aos paratletas por meio dos programas Compete Brasília e Bolsa Atleta, além das atividades oferecidas nos Centros Olímpicos e Paralímpicos | Foto: Divulgação/SEL-DF

O secretário Julio Cesar Ribeiro explica que uma das principais prioridades da pasta tem sido criar ações para dar visibilidade ao paradesporto. “A valorização e o investimento no paradesporto são fundamentais para construir uma comunidade mais inclusiva, onde cada cidadão, independentemente de suas habilidades, encontre espaço e oportunidades no universo esportivo do Distrito Federal”, destaca. O esporte é uma ferramenta essencial para a superação de barreiras”, completa Ribeiro.

Para o secretário da Pessoa com Deficiência, Flávio Santos, as duas secretarias poderão estabelecer uma política pública específica e efetiva voltada para atender às pessoas com deficiência nessa área. “As ações já existiam, mas serão ampliadas e melhoradas por meio desse trabalho porque, aí sim, vai ser construído um programa de esporte inclusivo”, afirma.

As pastas já trabalhavam de forma conjunta em ações pontuais, com o apoio aos paratletas por meio dos programas Compete Brasília e Bolsa Atleta, além das atividades oferecidas nos Centros Olímpicos e Paralímpicos. “Eu, como secretário e como atleta, sempre evidenciei a importância do esporte como uma poderosa ferramenta de inclusão”, finaliza Flávio.

Inclusão

Em maio deste ano, o Centro Olímpico e Paralímpico do Gama, recebeu mais de 350 inscrições para o Festival Paralímpico, que, pela primeira vez, ocorreu em Brasília. O evento realizado pela SEL-DF proporcionou aos participantes a inclusão por meio da vivência lúdica nos esportes paralímpicos.

O Campeonato Regional Centro-Oeste de Bocha Paralímpica foi outro marco na capital federal. O evento, que recebeu o apoio inédito da pasta, serviu como etapa classificatória para o Campeonato Brasileiro de Bocha Paralímpica, além de ter proporcionado aos atletas a oportunidade de ter representado suas associações e região em uma competição de nível nacional.

Outro evento que contou com o apoio da pasta foi a etapa regional das Paralimpíadas Escolares, que fomentou a inclusão e o progresso dos jovens atletas com deficiência, reunindo a participação de mais de 900 competidores. Os jogos ocorreram entre os dias 31 de agosto e 1º de setembro.

Outras competições paradesportivas também foram apoiadas pela SEL, como o Brasileiro de Adestramento Paraequestre, Centro-oeste de Handebol de Surdos e o Campeonato Regional de Goalball.

*Com informações da Secretaria de Esporte e Lazer do Distrito Federal (SEL-DF)

 

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Poeta vencedora do Prêmio Jabuti transita do slam à literatura grega

Autora voltou à Estação Guilhermina para lançamento de seu livro

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Foi na praça ao lado da Estação Guilhermina do Metrô, na zona norte paulistana, que Luiza Romão começou a declamar versos em público. Ali, acontece desde 2012, toda última sexta-feira do mês, a batalha de rimas conhecida como Slam da Guilhermina. Agora, dez anos depois desse encontro com a poesia falada, a autora retornou ao espaço para fazer um dos eventos de lançamento de Também Guardamos Pedras Aqui, seu livro que venceu o último Prêmio Jabuti.

“Quase pedir a benção”, resume a poeta sobre os sentimentos sobre esse momento que ela enxerga como o fechamento de um ciclo. “Acho que é bastante significativo, fazer isso bem antes de ganhar o mundo, assim, sabe? Antes de ir pro mundão”, comenta a respeito da turnê que se aproxima nos próximos dias. Até janeiro de 2024, a previsão é que Luiza tenha passado pela França, Argentina, México e Alemanha para divulgar o livro premiado, que já tem prontas traduções para o francês e espanhol.

Formada em artes cênicas, Luiza se aproximou da poesia atraída pelo modelo performático do slam, que começou a frequentar em 2013. As batalhas de rimas foram criadas por Marc Smith, nos Estados Unidos, na década de 1980. As competições, que atualmente acontecem em diversas partes do mundo, começaram, segundo a autora, como uma forma de tornar a leitura de poesia mais atraente nos saraus. “Em geral, em noites de cabaré, quando músico ia se apresentar, todo mundo prestava atenção. Quando ia uma pessoa do stand up, todo mundo prestava atenção. Na hora que o poeta ia declamar, era o momento que geral ia no banheiro, comprar cerveja, acender cigarro”, conta.

A performance da poesia falada, que compõe a cena cultural das periferias paulistanas, acabou atraindo Luiza, que tinha vindo em 2010 para a cidade, para estudar na Universidade de São Paulo. “Não estava no meu horizonte de vida virar poeta. Foi através do encontro com as batalhas de slam, com os microfones abertos, com o movimento saraus, que eu comecei a escrever”, lembra.

Uma estética que se relaciona com as temáticas que atravessam a juventude, especialmente a que vive fora dos bairros mais privilegiados. “Uma poesia muito engajada. Uma poesia que pensa o seu tempo histórico, que é fundamentada na dimensão coletiva da palavra. Toda essa partilha da performance”, enumera sobre as razões que a aproximaram dos versos e das rimas.

Atualmente com 31 anos, Luiza tem quatro livros publicados. O Também Guardamos Pedras Aqui é diretamente inspirado no épico grego Ilíada, de autoria atribuída a Homero, que retrata a conquista de Troia.

Veja os principais trechos da entrevista com a autora:

Vamos começar falando um pouco do livro Também Guardamos Pedras Aqui. Queria entender um pouco por que essa opção pela poesia grega e também o que isso significa na sua trajetória.

Eu sou formada em teatro. Tem algo que, de certa forma, eu discuto no livro, talvez de uma maneira não tão direta, que é essa obsessão nossa pelos gregos, que não diz respeito só a mim, Luiza, mas a nossa sociedade que passou por esse processo brutal de colonização e que ainda hoje continua referenciando de maneira tão intensa nos currículos escolares, nas produções culturais, esse imaginário cânone greco-latino. Então, na faculdade de artes cênicas, por exemplo, eu estudei dois anos de Grécia antiga.

Isso é algo que também se verifica nos cursos de letras e em muitos outros cursos. Você estuda tragédia grega. Você estuda comédia grega. Você estuda poética de Aristóteles, O Banquete do Platão. Uma tradição que é tão distante a nós. E, muitas vezes, a gente acaba não olhando para outras tradições e cosmovisões que estão mais próximas. As diferentes tradições latino-americanas andinas, maias e tudo mais ou as tradições africanas.

Quando eu termino [o curso universitário] eu vou fazer EAD, que a escola de artes dramáticas da USP, eu tenho que retomar essa galera [os gregos]. Eu estava lá, lendo pela segunda vez a mesma tradição, e faltava a Ilíada.

Então, eu estava indo viajar, fazer um mochilão pela Bolívia e pelo Chile. Eu falei: ‘Ah, vou pegar a Ilíada. Por que não? [risos]. É pesado, mas, pelo menos, é um volume só’. Meu irmão, Caetano, tinha uma edição que era leve, de papel bem fininho.

Foi onde eu li e fiquei muito chocada. Eu costumo dizer que o Pedras nasce um pouco desse horror a essa narrativa fundante da tradição ocidental, que é narrativa muito violenta. Eu sabia que era a história de uma guerra, que é como é contada, né? Mas, na verdade, não é a história de uma guerra, é a história de um massacre.

O que diferencia uma guerra de um massacre?

A guerra é quando, minimamente, você tem pé de igualdade. Você tem possibilidades reais dos dois lados ganharem. É algo que vai ser disputado na batalha. E, quando você lê a Ilíada, você vê que os troianos nunca tiveram chance de ganhar, porque os deuses eram gregos. Acho que foi a maior indignação para mim, porque isso eu não sabia antes de ler. Mas você tem o tempo inteiro a batalha acontecendo no campo terreno, entre gregos e troianos, e uma batalha acontecendo no plano divino, digamos assim, no Olimpo. Então, você tem os deuses que são pró-troianos e os deuses que são pró-gregos. E tem um momento que tem uma treta gigante, e Zeus [deus do trovão e líder do panteão grego] fala: ‘ninguém intervém na guerra, nenhum dos deuses’. E aí os troianos passam a ganhar a guerra.

Só que aí tem uma coisa que é muito doida, porque a gente tem essa ideia de perfeição atrelada à divindade, no catolicismo. No panteão dos gregos, na mitologia grega, são deuses que estupram, que têm inveja, que trapaceiam. Hera [esposa de Zeus] faz uma trapaça com Zeus. Ela vai até o fundo do oceano, pega um sonífero e Zeus dorme. Aí, ela e Atena [deusa associada a sabedoria] voltam para a guerra, quebram o pacto.

Os deuses são trapaceiros e Ulisses [herói grego] é trapaceiro também, porque é uma trapaça o que ele faz com cavalo. Não é fair play [jogo justo]. Eu acho que tem essa dimensão do massacre. Além de toda a devastação de um povo, das inúmeras formas de aniquilação, de tortura de subjugação, de estupro, de violência que estão no livro, tem isso de que é impossível esse povo ganhar. [Por orientação de Ulisses, os gregos fingem se retirar do campo de batalha e oferecem um cavalo gigante de madeira como presente aos troianos. Porém, uma parte dos soldados gregos se esconde dentro da escultura para, durante a noite, abrir os portões da cidade e provocar a derrota de Troia.]

No poema Homero, você diz que os gregos “foram capazes de” e traz uma lista, que seria de atrocidades, mas que está coberta por uma tarja preta, de censura, para em seguida dizer que, apesar desses horrores, eles, ao menos devolveram o corpo de Heitor, príncipe de Troia, ao contrário do que se fez, muitas vezes na ditadura militar brasileira. Você quer dizer que vivemos horrores maiores do que os troianos?

Isso tem muito a ver com dimensão quase que performativa da minha leitura. Eu estava lendo nessa viagem e passei pelo local onde Che Guevara [guerrilheiro que participou da revolução cubana] foi assassinado, no interior da Bolívia. Inclusive, tinha uma menina lá [parte do grupo], que era Tânia. Eles estavam tentando articular uma revolução comunista no coração da América Latina. A ideia seria sair do coração da Bolívia e se espalhar pelo continente inteiro. Eles são delatados, passam por uma emboscada e são assassinados.

O Che Guevara morre. A cabeça dele fica exposta em uma dessas vilas e o corpo fica desaparecido, por medo de que o local em que ele estivesse enterrado virasse um mausoléu de peregrinação comunista, um lugar de memória. O corpo dele só é encontrado 30 anos depois. Um dos militares disse que ele estava enterrado numa pista de pouso militar. Hoje você tem um museu do Che Guevara nesse local.

Eu queria aprofundar um pouco o uso desse recurso da censura, que aparece em outras partes do livro.

Eu acho que essa questão da censura ou do apagamento de arquivos é algo que também está muito presente quando a gente fala dessa história, dessa imposição de uma história única, dessa construção de um relato produzido pelo poder. Então, desses arquivos que são censurados, apagados e tudo mais.

Também, de certa forma propõe esse jogo com os leitores, da mesma forma que eu estou tentando reconstituir uma história que é muito apagada, vamos tentar reconstituir juntos. Talvez seja exercício imaginativo nosso também.

Você disse que Ulisses não jogava no fair play [jogo justo]. Tem um texto em que parece que você fala disso, invertendo a condição de herói e vilão, no poema Polifemo [gigante de um olho só que comia pessoas]. “Ninguém te cegou não/ não foi Ulisses/ aquela noite o policial não tinha identificação”

Ulisses, para mim, é um personagem que a gente, enquanto ocidente, vai emular como a inteligência. Primeiro, tudo que a gente sabe das viagens dele [narradas na Odisseia], é ele o que conta. Ou seja, ele pode estar mentindo, ele pode ter inventado tudo. Para mim, é um narrador nada confiável. Principalmente, porque do que a gente sabe, sim, de dados dele, é o personagem que faz o Cavalo de Tróia, que ganha na trapaça.

Então, Polifemo estava lá e, de repente, chegam esses homens, se metem [nos domínios dele] e ainda o cegam. E tem essa que a grande sabedoria do Ulisses é falar: “Eu não sou ninguém”. Então, Polifemo começa a gritar [após ter o olho furado]: “ninguém me cegou”.

Isso também foi uma chave de leitura para o caso do Sergio Silva [fotógrafo que perdeu o olho nas manifestações de 2013] e de vários e várias manifestantes que foram baleados com bala de borracha nos últimos anos, seja no Brasil, seja no Chile, onde a gente teve de fato uma forma sistemática da polícia de dilacerar o globo ocular de muitas pessoas.

E que ninguém cegou essas pessoas. É a mesma situação bastante recorrente quando a gente fala das ações das polícias militares, seja pelo não uso de identificação, seja porque cada vez mais são policiais que estão com balaclava ou com capacete.

Você fala em diversos momentos sobre violência (policial, contra a mulher), que é uma temática muito recorrente nos slams. Como o movimento dos slams atravessa a sua trajetória?

Minha trajetória é completamente atravessada pelo slam. Eu vim do teatro, sou das artes cênicas. Não estava no meu horizonte de vida virar poeta. Foi através do encontro com as batalhas de slam, com os microfones abertos, com o movimento saraus, que eu começo a escrever. Principalmente, por ser uma poesia muito engajada. Uma poesia que pensa o seu tempo histórico, que é fundamentada na dimensão coletiva da palavra. Toda essa partilha da performance é uma forma poética também de encarar esses temas.

slam não dissocia política e poética. É óbvio que é indissociável. Mas tem alguns lugares que se tem ilusões que é possível dissociar disso. Então, eu começo a frequentar em 2013 e continuo, não mais como slammer. Já aposentei as chuteiras faz um tempo. Mas, de vez em quando, fazendo a parte de produção. Fui fazer um mestrado sobre isso.

Em que momento você se aposentou do slam?

Como slammer, é muito normal a gente ter ondas, né? É tipo jogador de futebol, a carreira é curta. A gente vai lá, batalha uma, batalha outra, brinca durante dois ou três anos. É muito normal. Assim, você tem uma renovação da cena muito constante. Então, eu comecei a frequentar em 2013, já tinha tido uma onda antes de mim. Eu sou dessa segunda geração e já estão na sexta geração, agora.

Então, eu fui fazer outras paradas em termos de artista, de criação artística. Mas, ao mesmo tempo, é um lugar que eu gosto muito de estar. Eu continuo frequentando muito nesses últimos anos.

De alguma forma, tentei elaborar bastante a reflexão sobre a cena na dissertação. Acho que é uma forma de agradecer também esses anos todos de trajetória. É um trabalho que é a primeira parte é bastante dedicada a pensar historiografia do slam nos Estados Unidos. Eu traduzi muita coisa que não está disponível em português.

Também analiso quatro poemas da Luz Ribeiro, de Pieta Poeta, do Beto Bellinati e da Ana Roxo. Pensando como que essas questões todas vão para o corpo do poema. Porque, muitas vezes, quando a gente fala de slam, a gente só faz uma abordagem antropológica ou socializante, sendo que a gente está falando de poesia. E eu acho que ler esses poemas também na sua potência estética, o que eles têm de disruptivo, no que eles propõem de linguagem, no que eles contestam em toda uma tradição literária brasileira, isso é muito potente também.

São Paulo SP 29/09/2023 Luiza Romão vencedora do Prêmio Jabuti  2022.  Foto Paulo Pinto/Agência Brasil
São Paulo SP 29/09/2023 Luiza Romão vencedora do Prêmio Jabuti 2022. Foto Paulo Pinto/Agência Brasil – Paulo Pinto/Agência Brasil

 

Edição: Sabrina Craide

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