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Em Atalaia do Norte, população convive com desemprego e violência

Apenas 7% da população de 15 mil habitantes estava ocupada em 2020

 

Para ingressar no Vale do Javari, o visitante precisa percorrer algumas cidades do Amazonas. Depois de chegar a Tabatinga, onde fica o aeroporto mais próximo, é preciso pegar uma embarcação para Benjamin Constant e, de lá, um carro para Atalaia do Norte. Tudo isso em meio à imensidão da maior floresta tropical do mundo e próximo à Tríplice Fronteira Amazônica, região de intensos conflitos por conta do tráfico de drogas e de interesses fundiários.

A distância entre os municípios de Benjamin Constant e Atalaia do Norte, onde fica a sede da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), é de cerca de meia hora de carro, quando não há chuva para atrasar a viagem.

Nos arredores e na estrada que liga as duas cidades o que não faltam são símbolos de quem detém o poder: loja maçônica, unidade da Igreja Universal do Reino de Deus, da Assembleia de Deus e de outras congregações religiosas estão sempre presentes na paisagem.

Ainda na estrada, um tuk-tuk, espécie de triciclo motorizado, esmaga latinhas de refrigerante e cerveja, na pista de sentido contrário. Uma escavadeira revolve lixo jogado sobre a grama, a céu aberto, em meio a urubus. No extremo Norte do país, é possível constatar que Atalaia divide alguns dos problemas vistos em grandes centros urbanos.

A paisagem muda pouco, na comparação com Tabatinga, aonde chegam e de onde partem catraias, pequenas embarcações que parecem lanchas, rasgando o rio. Em Atalaia, a maioria de casas é de madeira. Algumas são de palafita, que ficam sobre uma água escura. Perto do porto, quando o comércio vai dando as caras, há mais imóveis com vidros nas janelas, o que, depois de uma caminhada para o interior da cidade, mostra-se uma raridade. Não há bueiros por onde se pode escoar a água das chuvas. E é grande o número de imóveis com construção pela metade.

Atalaia do Norte (AM), 29/02/2023 - Rua do centro da Atalaia do Norte, no Vale do Javari. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Atalaia do Norte (AM), 29/02/2023 – Rua do centro da Atalaia do Norte, no Vale do Javari. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil – Marcelo Camargo/Agência Brasil

Atalaia do Norte é a cidade natal das irmãs Karla* e Patrícia*, que vivem na pele alguns dos dramas que atingem o município. Karla é vítima de violência doméstica e conta que, quando convivia com o marido, era agredida de forma constante e impedida de trabalhar por ciúmes excessivos.

Depois de diversos episódios, ela decidiu denunciar o companheiro, que foi levado pela polícia à delegacia. Na unidade, ele cometeu suicídio. Karla conta que tem dificuldade de aceitar o fato e que sentiu um julgamento, por parte da sociedade local, pela morte do marido.

“No dia em que aconteceu, ele estava quebrando tudo dentro de casa, e as minhas duas crianças presenciando tudo. Foi quando eu falei que ia ligar para a polícia, porque ele não estava nem ouvindo a mãe dele, que tentou acalmá-lo. Foi quando vieram, ele estava detido”, relembra.

“Quando voltaram, me deram a notícia de que ele tinha se suicidado, sendo que ninguém viu. A gente saiu daqui [da cidade de Atalaia]. É como se eu tivesse matado ele. À noite, os policiais me levaram pra Benjamin, pelo rio, porque falaram que algumas famílias estavam atrás de mim, para me matar. Quando cheguei, minha tia me escondeu, como se eu realmente tivesse feito aquilo. Já iam me mandar para o Peru. Eu vi pouca coisa do velório dele”, relata.

Karla comenta que tinha intenções de se separar do marido, quando fez a denúncia, e que as agressões tiveram início durante a gravidez do primeiro filho, que tem 8 anos de idade, quatro de diferença do mais novo. Ela afirma também que, na época, não tinha noção da dimensão da violência a que o marido a sujeitava.

“Minha mãe sabia, mas eu ligava e ela falava que isso só ia aumentando. A gente se separava, eu acabava voltando. Ela falava que aquilo ali, uma hora, ia dar em tragédia”, acrescenta. “Aqui ainda acontece muito esse tipo de violência, por mais que seja inacreditável.”

Atalaia do Norte (AM), 28/02/2023 - Movimentação no porto de Atalaia do Norte, que recebe indígenas de comunidades do Vale do Javari. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Atalaia do Norte (AM), 28/02/2023 – Movimentação no porto de Atalaia do Norte, que recebe indígenas de comunidades do Vale do Javari. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil – Marcelo Camargo/Agência Brasil

Depois da morte do marido, que completou 3 anos, Karla decidiu fazer um curso técnico de enfermagem. Contudo, ainda enfrenta obstáculos para conseguir um emprego – que ela atribui, em parte, ao imaginário da sociedade local de que ela seria a culpada pela trágica morte do companheiro. Pesam também fatores como o índice de desemprego da região e a ocupação de vagas por indicações políticas.

No currículo de Karla, constam apenas bicos, nada de carteira assinada. Um retrato que também é visto nos dados oficiais do país. Em 2022, o número de pessoas sem carteira de trabalho assinada aumentou 14,9% em relação a 2021 e chegou a 12,9 milhões, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em Atalaia do Norte, apenas 7% da população de 15 mil habitantes estava ocupada em 2020, segundo o IBGE.

Para garantir comida na mesa aos dois filhos, ela recebe auxílio estadual. “Vontade de sair daqui, já tive”, desabafa. “Aqui é muito sobre política.”

Violência sexual

Atalaia do Norte (AM), 28/02/2023 - Movimentação no porto de Atalaia do Norte, que recebe indígenas de comunidades do Vale do Javari. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Atalaia do Norte (AM), 28/02/2023 – Movimentação no porto de Atalaia do Norte, que recebe indígenas de comunidades do Vale do Javari. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil – Marcelo Camargo/Agência Brasil

Enquanto aguarda um emprego para garantir autonomia financeira, Karla conta com o apoio da família. Sua irmã, um ano mais nova, é uma das pessoas que garantem esse suporte, mas que também enfrenta dificuldades para conseguir no mercado formal de trabalho.

Patrícia foi para o Peru duas vezes em busca de oportunidades de emprego.

A primeira vez, em 2014, durou pouco, por falta de uma rede de contatos no país vizinho. Na segunda tentativa, em 2019, ela conheceu o atual marido. Juntos, abriram uma confecção de roupas que foi à falência. Para tentar salvar o negócio, pegaram dinheiro emprestado de um agiota, mas não conseguiram ter sucesso.

Hoje, Patrícia tem como fonte de renda o dinheiro que junta com a venda de bolos. “É difícil ele [o marido] conseguir emprego aqui, ele não fala o idioma”, conta.

Além da semelhança com relação à falta de perspectiva profissional, as irmãs dividem um triste histórico: são vítimas de violência de gênero. Patrícia conta que começou a sofrer abuso sexual, por parte de um vizinho, aos 8 anos. Mas não consegue se lembrar de quando as agressões terminaram. Seu único filho, de 11 anos, é fruto de estupro.

Atalaia do Norte (AM), 29/02/2023 - Movimentação no porto de Atalaia do Norte, que recebe indígenas de comunidades do Vale do Javari. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Atalaia do Norte (AM), 29/02/2023 – Movimentação no porto de Atalaia do Norte, que recebe indígenas de comunidades do Vale do Javari. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil – Marcelo Camargo/Agência Brasil

Hoje, Patrícia faz acompanhamento psicológico. “Eu procurei ajuda porque chegou um tempo em que eu pensei em tirar a minha vida, por conta desse assunto, porque as pessoas sempre me fazem sentir culpada por isso.”

Para ela, políticas públicas de proteção a crianças e adolescentes são fundamentais para evitar que casos como o seu se repitam. “Às vezes, a pessoa não é presa, por falta de provas. Mas que provas? A pessoa está ali contando a história dela. Ninguém vai inventar isso”, acrescenta.

Ao longo da última década (2012 a 2021), 583,1 mil pessoas foram vítimas de estupro e estupro de vulnerável no Brasil, segundo os registros das polícias. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, apenas em 2021, 66.020 boletins de ocorrência de estupro e estupro de vulnerável foram registrados no Brasil, taxa de 30,9 por 100 mil e crescimento de 4,2% em relação ao ano anterior.

A violência sexual no Brasil é, na maioria das vezes, um crime perpetrado por algum conhecido da vítima, parente, colega ou mesmo o parceiro íntimo: 8 em cada 10 casos registrados no ano passado foram de autoria de um conhecido, segundo o Anuário. O fato de o autor ser conhecido da vítima torna o crime ainda mais complexo e a denúncia, um desafio para as vítimas.

No Brasil, 9 em cada 10 vítimas de estupro tinham no máximo 29 anos quando sofreram a violência sexual. Há ainda forte concentração desse crime na infância: 61,3% de todas as vítimas eram crianças e adolescentes entre 0 e 13 anos.

Agência Brasil pediu um posicionamento à prefeitura de Atalaia do Norte sobre as medidas de geração de emprego e de combate à violência de gênero. Também pediu resposta sobre as políticas voltadas a crianças e adolescentes e aguarda retorno.

 

 

*Nomes trocados para preservar a identidade das entrevistadas.

Edição: Lílian Beraldo

EBC

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DF entra em alerta com onda de calor e população deve manter cuidados

Capital registra temperatura 5ºC acima da média prevista para o mês de setembro. Especialistas recomendam muita água, roupas leves e pouco exercício físico ao ar livre nos períodos críticos

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Victor Fuzeira, da Agência Brasília I Edição: Débora Cronemberger

 

O Distrito Federal está em alerta laranja de perigo para baixa umidade relativa do ar e para altas temperaturas. Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), a capital federal vive uma onda de calor e tem registrado nos últimos dias temperaturas 5ºC acima da média prevista para o mês de setembro. A maior máxima do ano foi registrada nessa terça-feira (19): 34,5°C, no Gama.

Meteorologistas alertam que a próxima semana será ainda mais quente; população deve adotar cuidados como manter uma boa hidratação e não praticar esportes entre 10h e 16h | Foto: Paulo H. Carvalho/Agência Brasília

O aviso emitido pelo Inmet teve início às 11h desta quarta-feira (20) e está previsto para durar, pelo menos, até o domingo (24). No entanto, os meteorologistas acreditam que a próxima semana será ainda mais quente. “Estamos observando a possibilidade de estender esse alerta para a semana que vem. A expectativa é que tenhamos uma próxima semana ainda mais quente, com temperaturas acima de 35ºC”, explica Cleber Souza, do Inmet.

O especialista explica que o país está sob o domínio do fenômeno El Niño, que altera significativamente a distribuição da temperatura da superfície do Oceano Pacífico. “A atuação desse fenômeno favorece esse episódio de temperaturas mais elevadas. Estamos sofrendo com uma massa de ar seca e quente, atuando como um bloqueio para a formação de nuvens e, consequentemente, de chuvas, e intensificando a incidência de radiação solar”, prossegue.

Em função do calor intenso e da baixa umidade, é preciso que a população se atenha aos cuidados recomendados pela Subsecretaria de Proteção e Defesa Civil do Distrito Federal. “As orientações são as mesmas tanto para o calor quanto para baixa umidade: que as pessoas utilizem roupas leves e que façam refeições leves, sempre mantendo uma boa hidratação. Outra dica é umedecer com frequência a região dos olhos e das narinas”, enfatiza o tenente-coronel Ricardo Costa Ulhoa, coordenador de Planejamento, Monitoramento e Controle.

Ulhoa também afirma que não é recomendada a prática esportiva ao ar livre entre 10h e 16h. “Esse horário é característico das maiores temperaturas, por isso não é recomendado fazer exercícios no período. O ideal é sempre utilizar hidratantes, protetor solar e labial durante a prática esportiva e no próprio dia a dia”, completa.

A coordenadora de Atenção Primária à Saúde, Fabiana Fonseca, afirma que a população deve ficar atenta aos sinais de desidratação. “Alguns sintomas mais comuns são fraqueza, tontura, mal estar, aquela sensação de: ‘Não sei o que tenho, mas não estou bem’. Por isso, precisamos estar mais atentos; aumentar a ingestão de água, evitar exposição ao sol e redobrar cuidados com crianças, idosos e pessoas que têm doenças crônicas”.

 

 

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Arrendatário leva multa de R$ 8,7 mil após derrubar 29 árvores nativas para plantar soja em fazenda em Santo Anastácio

Homem, de 40 anos, só tinha autorização para o corte de 10 exemplares.

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Um homem, de 40 anos, arrendatário de uma fazenda em Santo Anastácio (SP), recebeu nesta quarta-feira (20) uma multa de R$ 8,7 mil em decorrência da derrubada irregular de árvores nativas na propriedade rural.

Ele tinha autorização para cortar apenas 10 árvores, mas no local a Polícia Militar Ambiental constatou a derrubada de 29 exemplares.

Os policiais compareceram à fazenda para realizar uma fiscalização em área onde houve a supressão de árvores nativas através da emissão de Via Rápida Ambiental (VRA).

Através da comparação de imagens via satélite, foi identificado o corte de 29 árvores nativas isoladas das espécies canafístula, ipê e farinha-seca, ou seja, em desacordo com a autorização obtida, que continha apenas 10.

Segundo a polícia, o homem alegou que havia arrendado a área para o cultivo de soja e ainda admitiu que tinha feito a retirada de “algumas” árvores para realizar o plantio.

Ele recebeu um auto de infração ambiental no valor de R$ 8,7 mil por explorar qualquer tipo de vegetação nativa, mediante supressão isolada de 29 árvores, em área fora de reserva legal, de domínio privado.

 

 

 

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Distritais divergem sobre análise do STF acerca da descriminalização do aborto

Foto: Renan Lisboa/ Agência CLDF

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A ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, colocou em pauta a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, que vai analisar a descriminalização do aborto até 12 semanas de gravidez. A decisão repercutiu na sessão ordinária da Câmara Legislativa desta quarta-feira (20) e dividiu a opinião dos deputados distritais.

O deputado Thiago Manzoni (PL) foi o primeiro a abordar o tema e informou que esteve na semana passada numa manifestação contra o aborto e em defesa da vida em frente ao STF, organizada por um grupo católico. Manzoni se manifestou contra a descriminalização e, na tribuna, exibiu pequeno boneco de um feto de 12 semanas. O deputado argumentou que o feto está em formação, mas “já é um ser vivo e está em desenvolvimento”. Manzoni se disse “embasbacado” com as pessoas que defendem o direito ao abordo. “Canalhas, assassinos e covardes” foram algumas palavras usadas pelo deputado para descrever os defensores do aborto.

Na mesma linha, o deputado Pastor Daniel de Castro (PP) destacou ato no qual participou da Frente Parlamentar Evangélica da Câmara dos Deputados e falou contra o aborto. O deputado também exibiu bonecos de fetos e ainda um vídeo, em que o médico e deputado federal Fernando Máximo relata o desenvolvimento do feto com 12 semanas. “Estamos diante da possibilidade da legalização do homicídio, com os homens decidindo quem pode viver ou não”, completou o deputado.

O deputado Iolando (MDB) também ocupou a tribuna e se alinhou aos colegas que o antecederam contra a possível legalização do aborto.

“Quem morre de aborto são as mulheres negras e pobres”

O deputado Fábio Félix (Psol) explicou que a ADPF 442 é uma ação de integrantes do seu partido e que tem como objetivo discutir a política pública do direito reprodutivo no País. Na opinião do deputado, o debate sobre o aborto é sempre polêmico porque a maioria das pessoas não estuda devidamente o tema. “Quando você descriminaliza o aborto, você não estimula uma prática. Você abre o debate sobre essa prática. Quem morre de aborto são as mulheres pobres, negras e periféricas”, argumentou. Para ele, a descriminalização vai possibilitar o acesso a políticas públicas e ao atendimento psicossocial.

O deputado Gabriel Magno (PT) disse que a decisão do STF sobre o tema é de fundamental importância para o País. Para ele, o que está se discutindo é o entendimento sobre normativas já existentes no Brasil. “Discutir o aborto é discutir a vida de meninas e mulheres. Em 2020, 48 meninas entre 10 e 14 anos entraram em trabalho de parto por dia neste País. O debate tem que passar pela vida dessas meninas. A maioria negras e pobres. Se acontecesse com pessoas com melhor condição, não chegaria a este ponto. A morte por aborto inseguro é a quarta causa de morte materna no Brasil”, assinalou.

Para a deputada Paula Belmonte (Cidadania) o tema é importante e “passa sim pelo viés religioso, mas principalmente pela questão educacional”. Para ela, crianças estão fazendo aborto porque existe uma sexualização precoce no País. “Não existe feto, se não houver relação sexual. Mas temos que discutir o que está acontecendo com a sexualização das jovens e a permissividade de muitos pais. Defendemos a vida dentro do ventre, mas também precisamos defender as crianças que nasceram e estão passando fome”, analisou.

Belmonte citou o caso de crianças contaminadas pelo Rio Melchior e outras que estão morrendo de fome e que não merecem a mesma atenção dos deputados. “Este debate é muito mais profundo do que um debate feminista ou religioso. É um debate da dignidade humana”, finalizou.

Luís Cláudio Alves – Agência CLDF

 

 

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