Reportagens
Vítimas de tortura na ditadura pedem memória e providências
Dia Internacional de Apoio é celebrado nesta segunda-feira

A campainha tocou no apartamento 31. O estudante paulistano Adriano Diogo, de 23 anos, estava cansado. Estudante de geologia na Universidade de São Paulo (USP), ele, naquele dia, estava extenuado depois de cruzar a cidade e chegado de mais uma jornada como professor de ciências em uma escola secundarista. Andou até a porta. Ao abrir, encontrou o pesadelo. Ele não esperava o que aconteceria a partir daquele 17 de março de 1973. Histórias como a de Adriano têm mais um especial momento de reflexão e memória nesta segunda (26 de junho), Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura.
Tudo está nítido na memória de Adriano Diogo, hoje aos 74 anos de idade. “Primeiro, uma coronhada com o cabo da metralhadora no lado direito do olho”, lembrou em entrevista à Agência Brasil. Ele recorda que foi sendo arrastado aos gritos pela escada, por militares disfarçados. Haviam chegado em uma caminhonete com pintura falsa de um jornal da cidade. Saíram em um Opala verde. Adriano assustou-se com o ódio dos agentes.
“Nós vamos te matar, terrorista”. “Onde estão as armas?”. “Maldito”
Do apartamento na Mooca (zona leste de São Paulo), os militares levaram o universitário por 10 quilômetros, até o Complexo do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), na Vila Mariana, onde funcionava a Operação Bandeirante (Oban), um centro de repressão política que desembocou em um espaço de tortura e assassinatos durante a ditadura militar no Brasil.
90 dias na solitária
As diferentes violências que se seguiram àquele dia em que a campainha tocou, incluindo os 90 dias em uma solitária, depois 45 no prédio do Departamento de Ordem Política e Social (Deops), e mais um ano e meio no Presídio do Hipódromo, deixaram marcas profundas no homem. Mas não deixaram jamais os ideais e o ativismo. “Embora eu fosse bem jovem, desde o dia em que saí da cadeia, há 50 anos, eu fazia o que faço hoje. Vou em cadeias, em espaços de internação de menores, em delegacia. Quando pessoas de movimentos sociais são presas, busco saber o que aconteceu”.
Daqueles dias de dores diversas, ele se lembra com detalhes dos momentos. Inclusive que um dos algozes e dos mais violentos era um tal de major Tibiriçá, codinome do chefe do DOI-CODI à época, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o primeiro militar a ser reconhecido como torturador pela Justiça brasileira no ano de 2008.
Assista a depoimento de Adriano Diogo à Comissão Estadual da Verdade
Foi Ustra quem recebeu Adriano Diogo no complexo da Operação Bandeirante. Além de comandar a violência física, o militar, em diferentes ocasiões, mostrava fotos de amigos e colegas assassinados e autopsiados em demonstrações de violência psicológica. “Conte o que você viu aos seus amigos na cela”, provocava.
Adriano Diogo descobriu na cadeia a morte de um grande amigo, nos dias seguintes ao que chegou ao DOI/Codi o líder estudantil Alexandre Vannucchi Leme, aos 22 anos de idade, também estudante de geologia na USP. Para o amigo Adriano, Alexandre era o “Minhoca”, apelido dos tempos da faculdade. “Para tentar apagar as marcas de tortura contra o Minhoca, eles levaram o corpo para fora da Oban e simularam atropelamento com um caminhão”.
Ninguém acreditou na fraude. Tamanha foi a repercussão que o arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, organizou uma missa no dia 30 de março em memória do estudante. A repercussão foi grande. “O Ustra ficou muito nervoso. Levou todos os presos para o pátio e bateram na gente de todas as formas”, recorda Adriano Diogo.
Enquanto Ustra esteve na chefia, durante 40 meses, houve 40 mortes. Além disso, chegou, em média, uma denúncia de tortura a cada 60 horas, segundo registrou a Comissão da Verdade. Outro momento marcante, em 1973, foi aquele em que Gilberto Gil cantou a música Cálice (composta em parceria com Chico Buarque) na USP, em primeira mão, para dezenas de estudantes. “Ele teve muita coragem realmente”, considera.
Retomar a vida
Depois de quase dois anos, Adriano Diogo saiu da cadeia. “Fui buscar o diploma lá na geologia e retomar a vida”. Ele fez carreira como geólogo e pesquisador. Foi deputado e até presidiu a Comissão da Verdade na Assembleia Legislativa de São Paulo. Um problema, porém, foi que as recomendações do relatório ficaram apenas no papel. O relatório final foi entregue à sociedade em março de 2015. depois de três anos de trabalho.
Um dos capítulos é de “Mortos e Desaparecidos”, com 165 casos investigados, inclusive a do amigo Alexandre Vannucchi Leme . “Nós fizemos uma série de recomendações ao Estado brasileiro e não foram atendidas (confira aqui o relatório). Para você ter uma ideia, o Brasil é signatário do Protocolo de Istambul de combate à tortura. Sabe quantos comitês de combate à tortura têm no Brasil, além do nacional? Só um (no Rio de Janeiro)”, lamenta.
Na sexta (23), o atual governo reativou o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Uma reunião marcada para o dia 21 de agosto, data que marca os dez anos da lei que criou esse sistema, vai estabelecer um plano de trabalho e de atuação.
Marcas registradas
O relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) trouxe 29 recomendações e a maioria ficou também somente no papel, identificou um relatório do Instituto Wladimir Herzog.
Apenas duas recomendações foram atendidas pelo poder público, avaliou a entidade. A revogação da Lei de Segurança Nacional e a introdução da audiência de custódia, para prevenção da prática da tortura e de prisão ilegal, foram as exceções.
Para a coordenadora do relatório, a historiadora Gabrielle Abreu, o sentimento das pessoas torturadas no Brasil, é mesmo esse de impunidade. “A violência e a impunidade, infelizmente, são marcas registradas no Brasil. Vimos ocorrer no período da escravidão, por exemplo, quando milhões de homens e mulheres negros foram escravizados”, afirmou.
O relatório, segundo ela, tem a finalidade de estimular uma reflexão verdadeira e crítica sobre o que foi a ditadura e outros períodos de grave violação de direitos humanos. A busca por não deixar esquecidas essas histórias é fundamental, disse a historiadora. Além disso, há no entender dela, invisibilidade e apagamentos de torturas e mortes de diferentes grupos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, populações mais pobres submetidas aos desmandos.
“Há história desconhecidas da ditadura, como nas favelas. É uma montanha de violações de direitos humanos que foram apagadas”.
Os dados do relatório mostram não somente ter havido recomendações da CNV não realizadas (total de 14), mas também retrocessos (sete). Esse é o caso da recocomendação da “criação de mecanismos de prevenção e combate à tortura”.
Tortura aos 16 anos
Voltar ao passado, porém, é reconhecer histórias de violências inadmissíveis. No dia 16 de abril de 1971, Ivan Soares, com apenas 16 anos de idade, foi capturado junto com o pai, o operário Joaquim, e levado para as instalações do DOI-Codi, em São Paulo. Pai e filho participavam do Movimento Revolucionário Tiradentes.
“Eles nos torturaram durante dois dias seguidos. Eles mataram meu pai e eu continuei preso. Prenderam também a minha mãe (uma professora) e minhas irmãs. Elas foram espancadas, Uma delas foi estuprada”.
Menor de idade, Ivan ficou nas mãos da ditadura durante quase seis anos sem ser processado ou condenado. “Os militares anunciaram que ele tinha morrido em um suposto tiroteio com as forças de repressão”. Ivan era estudante do então ginásio. “A gente tinha a vida de trabalhadores pobres. Nasci numa favela em Porto Alegre onde não tinha nada. Não tinha água encanada, luz, ônibus,esgoto, escolas. Tudo era muito difícil”.
Confira depoimento à OAB-RJ
Ele explica que os moradores dessa comunidade de Vila Jardim lutavam por melhores condições de vida. “Desde que me entendi por gente eu vi as lutas das pessoas que são da classe trabalhadora, tentando sair da condição de ser pisado pelo sistema capitalista”.
Os últimos três anos de cadeia Ivan cumpriu em um presídio de segurança máxima, que foi a Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté. Ele era o único preso político e convivia com os presos e pacientes psiquiátricos.
Ivan saiu da prisão em agosto de 1976, disposto a recomeçar a vida. Mas as perseguições não cessaram. Uma vez por semana, ele precisava se apresentar na auditoria militar. “Eu era seguido todos os dias, 24 horas por dia. Eu ia estudar, trabalhar. Mas sempre com a presença dela, dessas figuras execráveis por perto”.
“Eu descia do ônibus e tinha que caminhar a pé até a escola. Em um carro, eles passavam me xingando fazendo piadinha. Diziam para eu correr para eles treinarem tiro”. A tortura era também do lado de fora. “Desde o momento em que eu estava sendo torturado, tinha absoluta noção de que vivia um processo histórico, Eu me mantive pelo fator ideológico”. Hoje, ele mora na cidade de Foz do Iguaçu (PR).
Hoje, ele considera fundamental a aplicação das recomendações da Comissão Nacional da Verdade. ”Nós revelamos os crimes da ditadura. E a gente vai continuar lutando”.
Edição: Graça Adjuto
Reportagens
Ação educativa em bares orienta contra direção após consumo de álcool
Com o projeto Rolê Consciente, o Detran promove intervenções artísticas sobre os riscos de beber e dirigir; iniciativa acontece nesta sexta, na Asa Norte

Agência Brasília* I Edição: Débora Cronemberger
Na noite desta sexta-feira (29), acontece mais uma edição do projeto Rolê Consciente do Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran-DF). A ação educativa percorre bares e restaurantes levando conscientização ao público para não dirigir, se beber. A ação de hoje ocorre na Asa Norte, de 18h às 21h.

O Rolê Consciente é uma ação que envolve intervenções artísticas com bonecos, MCs do trânsito com suas rimas e, também, um papo sério com a entrega de material educativo e palestras dos professores de trânsito do Detran-DF. Toda a ação é voltada ao tema sobre os efeitos do álcool no organismo, orientações de segurança quanto à utilização de celular ao volante, a importância do respeito à velocidade máxima das vias, faixa de pedestre, respeito aos ciclistas e muito mais.
De acordo com o Código de Trânsito Brasileiro, dirigir após o consumo de álcool é infração gravíssima, com multa no valor de R$ 2.934,70 e suspensão do direito de dirigir por um ano. O Rolê Consciente acontece às quintas e sextas-feiras e, a partir de outubro, será aos sábados e domingos também.
*Com informações do Detran
Reportagens
Parceria visa fortalecer o esporte inclusivo no DF
Secretarias de Esporte e Lazer e da Pessoa com Deficiência vão elaborar ações para ampliar o acesso das pessoas com deficiência à prática esportiva em todas as suas esferas e em todas as faixas etárias

Agência Brasília* | Edição: Igor Silveira
A Secretaria de Esporte e Lazer (SEL-DF) e a Secretaria da Pessoa com Deficiência (SEPD-DF) se uniram para potencializar o paradesporto e esporte inclusivo no DF. As ações serão efetivadas por meio do Programa de Esporte Inclusivo.
A SEL-DF tem trabalhado para fomentar a visibilidade e valorização do paradesporto na cidade. Para isso, a pasta vem realizando eventos com o objetivo de dar celeridade ao acesso das pessoas com deficiência à prática esportiva em todas as suas esferas e em todas as faixas etárias.

O secretário Julio Cesar Ribeiro explica que uma das principais prioridades da pasta tem sido criar ações para dar visibilidade ao paradesporto. “A valorização e o investimento no paradesporto são fundamentais para construir uma comunidade mais inclusiva, onde cada cidadão, independentemente de suas habilidades, encontre espaço e oportunidades no universo esportivo do Distrito Federal”, destaca. O esporte é uma ferramenta essencial para a superação de barreiras”, completa Ribeiro.
Para o secretário da Pessoa com Deficiência, Flávio Santos, as duas secretarias poderão estabelecer uma política pública específica e efetiva voltada para atender às pessoas com deficiência nessa área. “As ações já existiam, mas serão ampliadas e melhoradas por meio desse trabalho porque, aí sim, vai ser construído um programa de esporte inclusivo”, afirma.
As pastas já trabalhavam de forma conjunta em ações pontuais, com o apoio aos paratletas por meio dos programas Compete Brasília e Bolsa Atleta, além das atividades oferecidas nos Centros Olímpicos e Paralímpicos. “Eu, como secretário e como atleta, sempre evidenciei a importância do esporte como uma poderosa ferramenta de inclusão”, finaliza Flávio.
Inclusão
Em maio deste ano, o Centro Olímpico e Paralímpico do Gama, recebeu mais de 350 inscrições para o Festival Paralímpico, que, pela primeira vez, ocorreu em Brasília. O evento realizado pela SEL-DF proporcionou aos participantes a inclusão por meio da vivência lúdica nos esportes paralímpicos.
O Campeonato Regional Centro-Oeste de Bocha Paralímpica foi outro marco na capital federal. O evento, que recebeu o apoio inédito da pasta, serviu como etapa classificatória para o Campeonato Brasileiro de Bocha Paralímpica, além de ter proporcionado aos atletas a oportunidade de ter representado suas associações e região em uma competição de nível nacional.
Outro evento que contou com o apoio da pasta foi a etapa regional das Paralimpíadas Escolares, que fomentou a inclusão e o progresso dos jovens atletas com deficiência, reunindo a participação de mais de 900 competidores. Os jogos ocorreram entre os dias 31 de agosto e 1º de setembro.
Outras competições paradesportivas também foram apoiadas pela SEL, como o Brasileiro de Adestramento Paraequestre, Centro-oeste de Handebol de Surdos e o Campeonato Regional de Goalball.
*Com informações da Secretaria de Esporte e Lazer do Distrito Federal (SEL-DF)
Reportagens
Poeta vencedora do Prêmio Jabuti transita do slam à literatura grega
Autora voltou à Estação Guilhermina para lançamento de seu livro

Foi na praça ao lado da Estação Guilhermina do Metrô, na zona norte paulistana, que Luiza Romão começou a declamar versos em público. Ali, acontece desde 2012, toda última sexta-feira do mês, a batalha de rimas conhecida como Slam da Guilhermina. Agora, dez anos depois desse encontro com a poesia falada, a autora retornou ao espaço para fazer um dos eventos de lançamento de Também Guardamos Pedras Aqui, seu livro que venceu o último Prêmio Jabuti.
“Quase pedir a benção”, resume a poeta sobre os sentimentos sobre esse momento que ela enxerga como o fechamento de um ciclo. “Acho que é bastante significativo, fazer isso bem antes de ganhar o mundo, assim, sabe? Antes de ir pro mundão”, comenta a respeito da turnê que se aproxima nos próximos dias. Até janeiro de 2024, a previsão é que Luiza tenha passado pela França, Argentina, México e Alemanha para divulgar o livro premiado, que já tem prontas traduções para o francês e espanhol.
Formada em artes cênicas, Luiza se aproximou da poesia atraída pelo modelo performático do slam, que começou a frequentar em 2013. As batalhas de rimas foram criadas por Marc Smith, nos Estados Unidos, na década de 1980. As competições, que atualmente acontecem em diversas partes do mundo, começaram, segundo a autora, como uma forma de tornar a leitura de poesia mais atraente nos saraus. “Em geral, em noites de cabaré, quando músico ia se apresentar, todo mundo prestava atenção. Quando ia uma pessoa do stand up, todo mundo prestava atenção. Na hora que o poeta ia declamar, era o momento que geral ia no banheiro, comprar cerveja, acender cigarro”, conta.
A performance da poesia falada, que compõe a cena cultural das periferias paulistanas, acabou atraindo Luiza, que tinha vindo em 2010 para a cidade, para estudar na Universidade de São Paulo. “Não estava no meu horizonte de vida virar poeta. Foi através do encontro com as batalhas de slam, com os microfones abertos, com o movimento saraus, que eu comecei a escrever”, lembra.
Uma estética que se relaciona com as temáticas que atravessam a juventude, especialmente a que vive fora dos bairros mais privilegiados. “Uma poesia muito engajada. Uma poesia que pensa o seu tempo histórico, que é fundamentada na dimensão coletiva da palavra. Toda essa partilha da performance”, enumera sobre as razões que a aproximaram dos versos e das rimas.
Atualmente com 31 anos, Luiza tem quatro livros publicados. O Também Guardamos Pedras Aqui é diretamente inspirado no épico grego Ilíada, de autoria atribuída a Homero, que retrata a conquista de Troia.
Veja os principais trechos da entrevista com a autora:
Vamos começar falando um pouco do livro Também Guardamos Pedras Aqui. Queria entender um pouco por que essa opção pela poesia grega e também o que isso significa na sua trajetória.
Eu sou formada em teatro. Tem algo que, de certa forma, eu discuto no livro, talvez de uma maneira não tão direta, que é essa obsessão nossa pelos gregos, que não diz respeito só a mim, Luiza, mas a nossa sociedade que passou por esse processo brutal de colonização e que ainda hoje continua referenciando de maneira tão intensa nos currículos escolares, nas produções culturais, esse imaginário cânone greco-latino. Então, na faculdade de artes cênicas, por exemplo, eu estudei dois anos de Grécia antiga.
Isso é algo que também se verifica nos cursos de letras e em muitos outros cursos. Você estuda tragédia grega. Você estuda comédia grega. Você estuda poética de Aristóteles, O Banquete do Platão. Uma tradição que é tão distante a nós. E, muitas vezes, a gente acaba não olhando para outras tradições e cosmovisões que estão mais próximas. As diferentes tradições latino-americanas andinas, maias e tudo mais ou as tradições africanas.
Quando eu termino [o curso universitário] eu vou fazer EAD, que a escola de artes dramáticas da USP, eu tenho que retomar essa galera [os gregos]. Eu estava lá, lendo pela segunda vez a mesma tradição, e faltava a Ilíada.
Então, eu estava indo viajar, fazer um mochilão pela Bolívia e pelo Chile. Eu falei: ‘Ah, vou pegar a Ilíada. Por que não? [risos]. É pesado, mas, pelo menos, é um volume só’. Meu irmão, Caetano, tinha uma edição que era leve, de papel bem fininho.
Foi onde eu li e fiquei muito chocada. Eu costumo dizer que o Pedras nasce um pouco desse horror a essa narrativa fundante da tradição ocidental, que é narrativa muito violenta. Eu sabia que era a história de uma guerra, que é como é contada, né? Mas, na verdade, não é a história de uma guerra, é a história de um massacre.
O que diferencia uma guerra de um massacre?
A guerra é quando, minimamente, você tem pé de igualdade. Você tem possibilidades reais dos dois lados ganharem. É algo que vai ser disputado na batalha. E, quando você lê a Ilíada, você vê que os troianos nunca tiveram chance de ganhar, porque os deuses eram gregos. Acho que foi a maior indignação para mim, porque isso eu não sabia antes de ler. Mas você tem o tempo inteiro a batalha acontecendo no campo terreno, entre gregos e troianos, e uma batalha acontecendo no plano divino, digamos assim, no Olimpo. Então, você tem os deuses que são pró-troianos e os deuses que são pró-gregos. E tem um momento que tem uma treta gigante, e Zeus [deus do trovão e líder do panteão grego] fala: ‘ninguém intervém na guerra, nenhum dos deuses’. E aí os troianos passam a ganhar a guerra.
Só que aí tem uma coisa que é muito doida, porque a gente tem essa ideia de perfeição atrelada à divindade, no catolicismo. No panteão dos gregos, na mitologia grega, são deuses que estupram, que têm inveja, que trapaceiam. Hera [esposa de Zeus] faz uma trapaça com Zeus. Ela vai até o fundo do oceano, pega um sonífero e Zeus dorme. Aí, ela e Atena [deusa associada a sabedoria] voltam para a guerra, quebram o pacto.
Os deuses são trapaceiros e Ulisses [herói grego] é trapaceiro também, porque é uma trapaça o que ele faz com cavalo. Não é fair play [jogo justo]. Eu acho que tem essa dimensão do massacre. Além de toda a devastação de um povo, das inúmeras formas de aniquilação, de tortura de subjugação, de estupro, de violência que estão no livro, tem isso de que é impossível esse povo ganhar. [Por orientação de Ulisses, os gregos fingem se retirar do campo de batalha e oferecem um cavalo gigante de madeira como presente aos troianos. Porém, uma parte dos soldados gregos se esconde dentro da escultura para, durante a noite, abrir os portões da cidade e provocar a derrota de Troia.]
No poema Homero, você diz que os gregos “foram capazes de” e traz uma lista, que seria de atrocidades, mas que está coberta por uma tarja preta, de censura, para em seguida dizer que, apesar desses horrores, eles, ao menos devolveram o corpo de Heitor, príncipe de Troia, ao contrário do que se fez, muitas vezes na ditadura militar brasileira. Você quer dizer que vivemos horrores maiores do que os troianos?
Isso tem muito a ver com dimensão quase que performativa da minha leitura. Eu estava lendo nessa viagem e passei pelo local onde Che Guevara [guerrilheiro que participou da revolução cubana] foi assassinado, no interior da Bolívia. Inclusive, tinha uma menina lá [parte do grupo], que era Tânia. Eles estavam tentando articular uma revolução comunista no coração da América Latina. A ideia seria sair do coração da Bolívia e se espalhar pelo continente inteiro. Eles são delatados, passam por uma emboscada e são assassinados.
O Che Guevara morre. A cabeça dele fica exposta em uma dessas vilas e o corpo fica desaparecido, por medo de que o local em que ele estivesse enterrado virasse um mausoléu de peregrinação comunista, um lugar de memória. O corpo dele só é encontrado 30 anos depois. Um dos militares disse que ele estava enterrado numa pista de pouso militar. Hoje você tem um museu do Che Guevara nesse local.
Eu queria aprofundar um pouco o uso desse recurso da censura, que aparece em outras partes do livro.
Eu acho que essa questão da censura ou do apagamento de arquivos é algo que também está muito presente quando a gente fala dessa história, dessa imposição de uma história única, dessa construção de um relato produzido pelo poder. Então, desses arquivos que são censurados, apagados e tudo mais.
Também, de certa forma propõe esse jogo com os leitores, da mesma forma que eu estou tentando reconstituir uma história que é muito apagada, vamos tentar reconstituir juntos. Talvez seja exercício imaginativo nosso também.
Você disse que Ulisses não jogava no fair play [jogo justo]. Tem um texto em que parece que você fala disso, invertendo a condição de herói e vilão, no poema Polifemo [gigante de um olho só que comia pessoas]. “Ninguém te cegou não/ não foi Ulisses/ aquela noite o policial não tinha identificação”
Ulisses, para mim, é um personagem que a gente, enquanto ocidente, vai emular como a inteligência. Primeiro, tudo que a gente sabe das viagens dele [narradas na Odisseia], é ele o que conta. Ou seja, ele pode estar mentindo, ele pode ter inventado tudo. Para mim, é um narrador nada confiável. Principalmente, porque do que a gente sabe, sim, de dados dele, é o personagem que faz o Cavalo de Tróia, que ganha na trapaça.
Então, Polifemo estava lá e, de repente, chegam esses homens, se metem [nos domínios dele] e ainda o cegam. E tem essa que a grande sabedoria do Ulisses é falar: “Eu não sou ninguém”. Então, Polifemo começa a gritar [após ter o olho furado]: “ninguém me cegou”.
Isso também foi uma chave de leitura para o caso do Sergio Silva [fotógrafo que perdeu o olho nas manifestações de 2013] e de vários e várias manifestantes que foram baleados com bala de borracha nos últimos anos, seja no Brasil, seja no Chile, onde a gente teve de fato uma forma sistemática da polícia de dilacerar o globo ocular de muitas pessoas.
E que ninguém cegou essas pessoas. É a mesma situação bastante recorrente quando a gente fala das ações das polícias militares, seja pelo não uso de identificação, seja porque cada vez mais são policiais que estão com balaclava ou com capacete.
Você fala em diversos momentos sobre violência (policial, contra a mulher), que é uma temática muito recorrente nos slams. Como o movimento dos slams atravessa a sua trajetória?
Minha trajetória é completamente atravessada pelo slam. Eu vim do teatro, sou das artes cênicas. Não estava no meu horizonte de vida virar poeta. Foi através do encontro com as batalhas de slam, com os microfones abertos, com o movimento saraus, que eu começo a escrever. Principalmente, por ser uma poesia muito engajada. Uma poesia que pensa o seu tempo histórico, que é fundamentada na dimensão coletiva da palavra. Toda essa partilha da performance é uma forma poética também de encarar esses temas.
O slam não dissocia política e poética. É óbvio que é indissociável. Mas tem alguns lugares que se tem ilusões que é possível dissociar disso. Então, eu começo a frequentar em 2013 e continuo, não mais como slammer. Já aposentei as chuteiras faz um tempo. Mas, de vez em quando, fazendo a parte de produção. Fui fazer um mestrado sobre isso.
Em que momento você se aposentou do slam?
Como slammer, é muito normal a gente ter ondas, né? É tipo jogador de futebol, a carreira é curta. A gente vai lá, batalha uma, batalha outra, brinca durante dois ou três anos. É muito normal. Assim, você tem uma renovação da cena muito constante. Então, eu comecei a frequentar em 2013, já tinha tido uma onda antes de mim. Eu sou dessa segunda geração e já estão na sexta geração, agora.
Então, eu fui fazer outras paradas em termos de artista, de criação artística. Mas, ao mesmo tempo, é um lugar que eu gosto muito de estar. Eu continuo frequentando muito nesses últimos anos.
De alguma forma, tentei elaborar bastante a reflexão sobre a cena na dissertação. Acho que é uma forma de agradecer também esses anos todos de trajetória. É um trabalho que é a primeira parte é bastante dedicada a pensar historiografia do slam nos Estados Unidos. Eu traduzi muita coisa que não está disponível em português.
Também analiso quatro poemas da Luz Ribeiro, de Pieta Poeta, do Beto Bellinati e da Ana Roxo. Pensando como que essas questões todas vão para o corpo do poema. Porque, muitas vezes, quando a gente fala de slam, a gente só faz uma abordagem antropológica ou socializante, sendo que a gente está falando de poesia. E eu acho que ler esses poemas também na sua potência estética, o que eles têm de disruptivo, no que eles propõem de linguagem, no que eles contestam em toda uma tradição literária brasileira, isso é muito potente também.
Edição: Sabrina Craide
ebc
-
Reportagens2 semanas ago
Lula participa de reunião com empresários em Nova York
-
Artigos3 meses ago
ALYSSON PAOLINELLI PARTIU
-
Entrevistas3 meses ago
Kátia Queiroz Fenyves fala a respeito de sustentabilidade e meio ambiente
-
Reportagens3 meses ago
Cine Brasília recebe mostra latino-americana
-
Reportagens3 meses ago
Alerta do INPE: Inverno mais quente devido ao El Niño no Brasil
-
Reportagens3 meses ago
Escolas de samba fecham desfile e reforçam diversidade presente na capital
-
Artigos4 meses ago
A Sexta Onda da Tecnologia: Transformando o Futuro com Sustentabilidade e ESG
-
Reportagens2 meses ago
GDF elabora Plano Distrital pela Primeira Infância para 2024 a 2034