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Show no Rio marca 90 anos do cantor e compositor Monarco

Sambas de sua autoria contam parte da história da Portela

 

“Dedico esse DVD a você, minha companheira, que me levanta para eu cantar por aí, porque tive época em que estava desanimado e essa mulher dizia: você vai cantar, você precisa cantar, precisa sair, não fica deitado nessa cama, vai compor. Quando faço um samba novo, ela é a primeira a ouvir. Diz: vai em frente meu filho, vai produzir. Obrigado, meu amor, por tudo, minha companheira!”.

A dedicatória de Hildemar Diniz para Olinda da Silva Diniz foi feita em 2011, na gravação de um DVD, no Teatro Oi Casa Grande, no Leblon, zona sul do Rio. E não foi a única nos 27 anos de relacionamento do casal. Hildemar é o grande compositor e cantor Monarco, baluarte e ex-presidente de honra da Portela, que se fosse vivo completaria 90 anos nesta quinta-feira (17). Nos anos em que viveram juntos também não faltaram composições em homenagem a ela. “Nós vivemos um grande amor. Nós vivemos uma vida linda”, disse Olinda em entrevista à Agência Brasil.

Em outra dedicatória, numa foto que deu para a mulher, escreveu: “Linda eternamente, Olinda. Sonho que se realizou em minha vida. Você é o grande amor que Deus me deu. Beijos do seu querido amor. Monarco. 17/12/96”.

“Eu guardo essa foto que ele me deu de presente. Fora os bilhetinhos muito amorosos que guardo com muito carinho”, contou Olinda, para quem Monarco estava muito “lindinho, parecia um menininho” na foto.

O início do namoro demorou uns dois anos porque Olinda resistia, achando que não daria certo. Afinal, já tinha três filhas e um casamento desfeito. A persistência de Monarco acabou mostrando que estava errada. “Nós começamos a namorar no Jacarezinho [comunidade da zona norte do Rio], na Rua Santa Laura. Me lembro bem que ele me roubou um beijo”, disse, acrescentando que uma amiga deu força para ela aceitar o namoro, antevendo que seria muito feliz com Monarco.

Matéria 90 anos de Monarco.  O texto faz referência a esta foto e à dedicatória. Foto: Arquivo Pessoal
Matéria 90 anos de Monarco. O texto faz referência a esta foto e à dedicatória. Foto: Arquivo Pessoal – Arquivo pessoal

Casamento

Ainda assim, namoraram durante dez anos, até que se casaram na quadra da Portela, com direito a participações do cantor e compositor Paulinho da Viola, da cantora Beth Carvalho, do cartunista Lan e do compositor Guilherme de Brito. “Ele me disse: você é a mulher da minha vida. Vamos casar? Eu falei: agora, só se for agora”, comentou, sorrindo, sobre o pedido feito pelo companheiro.

Monarco morreu no dia 11 de dezembro de 2021, em consequência de complicações após uma cirurgia de intestino. “Eu me emociono a cada vez que falo nele. Um ano e oito meses fez agora, dia 11, que a gente se despediu com lágrimas nos olhos e eu dizendo para ele o quanto o amava e o quanto era importante na minha vida. Era não, é”, afirmou.

“Ele dizia toda manhã: pretinha eu já te disse hoje o quanto te amo? Como sinto saudade de ouvir isso todos os dias. E eu dizia para ele: meu filho, eu sou a mulher mais feliz, porque amo você também. Eu pude dar a ele a alegria de ser amado”.

Compositor

A carreira começou cedo. Aos 8 anos, compôs o primeiro samba. Numa entrevista em janeiro de 2016 à Agência Brasil, Monarco contou que tinha 12 anos quando se mudou de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, para Oswaldo Cruz, na zona norte do Rio. A casa ficava bem perto da quadra da escola, conhecida atualmente como Portelão. “Era só descer, e em cinco minutos estava dentro da Portela”, lembrou, na época.

Antes de se mudar para Oswaldo Cruz, morava em Nova Iguaçu onde já ouvia, pelo rádio, músicas que se referiam à escola e que despertaram o seu amor pela azul e branco. “Quando cheguei a Oswaldo Cruz, disse aos meus irmãos que ali era a Portela. Fui com a minha família. Eu era o menor”.

Compositor da Velha Guarda da Portela, Monarco está na escola de Madureira desde os 12 anos
Compositor da Velha Guarda da Portela, Monarco está na escola de Madureira desde os 12 anos – Divulgação/Arquivo pessoal

Parte da história da Portela pode ser contada também pelos sambas de Monarco, que enaltecem a escola e o bairro de Oswaldo Cruz. O primeiro foi em 1952. O compositor fazia questão de destacar que embora se fale da azul e branco como escola de Madureira, a origem é outra. “Oswaldo Cruz foi onde ela nasceu. Queira ou não queira, não se pode renegar o lugar em que nasceu. Eu gosto muito de Madureira, mas ela tem as raízes fincadas em Oswaldo Cruz”, afirmou, acrescentando que os dois bairros cresceram muito e se misturaram.

Surpresa

Quando se conheceram, Olinda não sabia que ele era um compositor de destaque no mundo do samba. Ficou surpresa ao saber que a música Fim de Sofrimento, da qual gostava muito e pensava ser de Beth Carvalho, tinha sido composta por ele. “Eu quase caí dura e fiquei com a cara vermelha”, comentou, destacando que na gravação do DVD ele a surpreendeu cantando a música e ainda dedicando a ela.

Homenagens

A lista de definições de Monarco mostra o quanto o artista é reverenciado. “Esse homem é de um caráter imensurável, de dignidade, carinho, amor, respeito. Eu não tenho mais adjetivos para qualificar essa pessoa linda chamada Hildemar Diniz, o Monarco da Portela, o meu grande amor”, disse Olinda.

“Monarco é matéria obrigatória para quem trabalha com samba, na qualidade musical e de letras fantásticas. Era uma pessoa extraordinária, fantástica e muito generosa. Além de tudo era um grande cantor, com uma extensão vocal muito marcante. Era completo. Realmente dá saudade. Estou feliz de ir lá para homenageá-lo”, disse a cantora Nilze Carvalho à reportagem, destacando que as letras tinham simplicidade porque falavam direto ao coração, mas as melodias tinham certa complexidade.

“Pessoa de um talento incrível”, disse a pesquisadora da Música Popular Brasileira, compositora e escritora Marília Trindade Barboza.

“O legado que ele deixou marca não só pela questão musical, mas de conduta pessoal. A humildade, a personalidade dele, não se fazia humilde, era humilde. As pessoas dizem que a unanimidade é burrice, mas ele era unânime. Todos gostavam dele”, disse o compositor e produtor musical Mauro Diniz, filho de Monarco.

A pesquisadora contou ainda que quando se preparava para fazer a biografia de Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela, fundador da azul e branco, foi à quadra da escola e conheceu a Velha Guarda, que tinha Monarco como líder. “Ele me ajudou a conduzir o trabalho, me apresentou às pessoas certas e, de lá pra cá, tivemos uma troca muito grande”, afirmou, lembrando que Monarco tinha em Paulo da Portela um ídolo.

A importância das obras deixadas por Monarco é também unanimidade. “E fico feliz de as pessoas não deixarem esse legado morrer. Aquela voz maravilhosa, aquele timbre, aquele grave na voz que ninguém tem”, observou Olinda.

90 anos

Para marcar os 90 anos de Monarco, amigos, parentes e admiradores se reúnem nesta quinta-feira (17) em um show. O espetáculo, marcado para começar às 18h30, será no auditório do 9º andar da sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no centro do Rio. A organização é do ex-presidente da Portela e diretor cultural da Liga das Escolas de Samba do Rio (Liesa) e da Federação Nacional das Escolas de Samba (Fenasamba), Luiz Carlos Magalhães, da pesquisadora Marília Trindade Barboza, de Olinda e de um grupo de amigos do compositor portelense.

Rio de Janeiro (RJ), 25/07/2023 - Esculturas de Cartola e Monarco no Museu do Samba, na Mangueira. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Museu do Samba, na Mangueira, por Fernando Frazão/Agência Brasil

A direção musical é do produtor e compositor Mauro Diniz e do músico Paulão 7 Cordas. “A gente tem uma expectativa muito boa de que seja uma homenagem por tudo aquilo que ele plantou e deixou pra gente”, disse o filho.

Ele contou que se tornou músico por influência do pai, apesar de preferir que o filho “fosse doutor”. “Quando viu, eu já estava tocando um pouco, estava escrevendo uma coisinha e depois nos tornamos parceiros. Uma coisa muito bonita. Temos vários sambas inéditos”, relatou.

Marília Barboza lembrou que, coincidentemente, a ABI foi o primeiro emprego de carteira assinada de Monarco, quando tinha 15 anos. “Ele teve lá um dos momentos mais felizes, porque era criança, tinha 15 anos e ali teve chances maravilhosas. A ABI era uma coisa efervescente naquele tempo, os jornalistas e intelectuais iam para lá e ele arrumava a mesa para [Heitor] Villa-Lobos jogar bilhar. Ele conheceu os grandes ícones do jornalismo, o pessoal da Academia Brasileira de Letras”, comentou a pesquisadora.

Já estão confirmadas as apresentações da Velha Guarda da Portela, de Nilze Carvalho, Dorina, Toninho Geraes, Tânia Machado, Didu Nogueira, Marquinhos Diniz, Eliane Farias, Iracema Monteiro, Léo Russo e Pedro Paulo Malta, entre outros. O encerramento será com a escola de samba mirim da Portela, Filhos da Águia. “A ideia é mandar a música do Monarco para o futuro”, afirmou Marília.

“Estou cultivando a memória dele. Isso está me fazendo feliz. Não quero que esse legado, que ele deixou para nós e para o universo, se apague. O sonho de Monarco era ver um jovem cantando um samba dele”, disse Olinda.

A entrada é franca e quem não for ao local, poderá assistir o show ao vivo pelo canal ABITV no YouTube.

Edição: Graça Adjuto

ebc

 

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Ação educativa em bares orienta contra direção após consumo de álcool

Com o projeto Rolê Consciente, o Detran promove intervenções artísticas sobre os riscos de beber e dirigir; iniciativa acontece nesta sexta, na Asa Norte

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Agência Brasília* I Edição: Débora Cronemberger

 

Na noite desta sexta-feira (29), acontece mais uma edição do projeto Rolê Consciente do Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran-DF). A ação educativa percorre bares e restaurantes levando conscientização ao público para não dirigir, se beber. A ação de hoje ocorre na Asa Norte, de 18h às 21h.

Equipes do Detran percorrem bares e restaurantes para alertar sobre os riscos de dirigir após consumir bebida alcoólica | Foto: Divulgação/Detran

O Rolê Consciente é uma ação que envolve intervenções artísticas com bonecos, MCs do trânsito com suas rimas e, também, um papo sério com a entrega de material educativo e palestras dos professores de trânsito do Detran-DF. Toda a ação é voltada ao tema sobre os efeitos do álcool no organismo, orientações de segurança quanto à utilização de celular ao volante, a importância do respeito à velocidade máxima das vias, faixa de pedestre, respeito aos ciclistas e muito mais.

De acordo com o Código de Trânsito Brasileiro, dirigir após o consumo de álcool é infração gravíssima, com multa no valor de R$ 2.934,70 e suspensão do direito de dirigir por um ano. O Rolê Consciente acontece às quintas e sextas-feiras e, a partir de outubro, será aos sábados e domingos também.

*Com informações do Detran

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Parceria visa fortalecer o esporte inclusivo no DF

Secretarias de Esporte e Lazer e da Pessoa com Deficiência vão elaborar ações para ampliar o acesso das pessoas com deficiência à prática esportiva em todas as suas esferas e em todas as faixas etárias

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Agência Brasília* | Edição: Igor Silveira

 

A Secretaria de Esporte e Lazer (SEL-DF) e a Secretaria da Pessoa com Deficiência (SEPD-DF) se uniram para potencializar o paradesporto e esporte inclusivo no DF. As ações serão efetivadas por meio do Programa de Esporte Inclusivo.

A SEL-DF tem trabalhado para fomentar a visibilidade e valorização do paradesporto na cidade. Para isso, a pasta vem realizando eventos com o objetivo de dar celeridade ao acesso das pessoas com deficiência à prática esportiva em todas as suas esferas e em todas as faixas etárias.

As secretarias já trabalhavam de forma conjunta em ações pontuais, com o apoio aos paratletas por meio dos programas Compete Brasília e Bolsa Atleta, além das atividades oferecidas nos Centros Olímpicos e Paralímpicos | Foto: Divulgação/SEL-DF

O secretário Julio Cesar Ribeiro explica que uma das principais prioridades da pasta tem sido criar ações para dar visibilidade ao paradesporto. “A valorização e o investimento no paradesporto são fundamentais para construir uma comunidade mais inclusiva, onde cada cidadão, independentemente de suas habilidades, encontre espaço e oportunidades no universo esportivo do Distrito Federal”, destaca. O esporte é uma ferramenta essencial para a superação de barreiras”, completa Ribeiro.

Para o secretário da Pessoa com Deficiência, Flávio Santos, as duas secretarias poderão estabelecer uma política pública específica e efetiva voltada para atender às pessoas com deficiência nessa área. “As ações já existiam, mas serão ampliadas e melhoradas por meio desse trabalho porque, aí sim, vai ser construído um programa de esporte inclusivo”, afirma.

As pastas já trabalhavam de forma conjunta em ações pontuais, com o apoio aos paratletas por meio dos programas Compete Brasília e Bolsa Atleta, além das atividades oferecidas nos Centros Olímpicos e Paralímpicos. “Eu, como secretário e como atleta, sempre evidenciei a importância do esporte como uma poderosa ferramenta de inclusão”, finaliza Flávio.

Inclusão

Em maio deste ano, o Centro Olímpico e Paralímpico do Gama, recebeu mais de 350 inscrições para o Festival Paralímpico, que, pela primeira vez, ocorreu em Brasília. O evento realizado pela SEL-DF proporcionou aos participantes a inclusão por meio da vivência lúdica nos esportes paralímpicos.

O Campeonato Regional Centro-Oeste de Bocha Paralímpica foi outro marco na capital federal. O evento, que recebeu o apoio inédito da pasta, serviu como etapa classificatória para o Campeonato Brasileiro de Bocha Paralímpica, além de ter proporcionado aos atletas a oportunidade de ter representado suas associações e região em uma competição de nível nacional.

Outro evento que contou com o apoio da pasta foi a etapa regional das Paralimpíadas Escolares, que fomentou a inclusão e o progresso dos jovens atletas com deficiência, reunindo a participação de mais de 900 competidores. Os jogos ocorreram entre os dias 31 de agosto e 1º de setembro.

Outras competições paradesportivas também foram apoiadas pela SEL, como o Brasileiro de Adestramento Paraequestre, Centro-oeste de Handebol de Surdos e o Campeonato Regional de Goalball.

*Com informações da Secretaria de Esporte e Lazer do Distrito Federal (SEL-DF)

 

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Poeta vencedora do Prêmio Jabuti transita do slam à literatura grega

Autora voltou à Estação Guilhermina para lançamento de seu livro

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Foi na praça ao lado da Estação Guilhermina do Metrô, na zona norte paulistana, que Luiza Romão começou a declamar versos em público. Ali, acontece desde 2012, toda última sexta-feira do mês, a batalha de rimas conhecida como Slam da Guilhermina. Agora, dez anos depois desse encontro com a poesia falada, a autora retornou ao espaço para fazer um dos eventos de lançamento de Também Guardamos Pedras Aqui, seu livro que venceu o último Prêmio Jabuti.

“Quase pedir a benção”, resume a poeta sobre os sentimentos sobre esse momento que ela enxerga como o fechamento de um ciclo. “Acho que é bastante significativo, fazer isso bem antes de ganhar o mundo, assim, sabe? Antes de ir pro mundão”, comenta a respeito da turnê que se aproxima nos próximos dias. Até janeiro de 2024, a previsão é que Luiza tenha passado pela França, Argentina, México e Alemanha para divulgar o livro premiado, que já tem prontas traduções para o francês e espanhol.

Formada em artes cênicas, Luiza se aproximou da poesia atraída pelo modelo performático do slam, que começou a frequentar em 2013. As batalhas de rimas foram criadas por Marc Smith, nos Estados Unidos, na década de 1980. As competições, que atualmente acontecem em diversas partes do mundo, começaram, segundo a autora, como uma forma de tornar a leitura de poesia mais atraente nos saraus. “Em geral, em noites de cabaré, quando músico ia se apresentar, todo mundo prestava atenção. Quando ia uma pessoa do stand up, todo mundo prestava atenção. Na hora que o poeta ia declamar, era o momento que geral ia no banheiro, comprar cerveja, acender cigarro”, conta.

A performance da poesia falada, que compõe a cena cultural das periferias paulistanas, acabou atraindo Luiza, que tinha vindo em 2010 para a cidade, para estudar na Universidade de São Paulo. “Não estava no meu horizonte de vida virar poeta. Foi através do encontro com as batalhas de slam, com os microfones abertos, com o movimento saraus, que eu comecei a escrever”, lembra.

Uma estética que se relaciona com as temáticas que atravessam a juventude, especialmente a que vive fora dos bairros mais privilegiados. “Uma poesia muito engajada. Uma poesia que pensa o seu tempo histórico, que é fundamentada na dimensão coletiva da palavra. Toda essa partilha da performance”, enumera sobre as razões que a aproximaram dos versos e das rimas.

Atualmente com 31 anos, Luiza tem quatro livros publicados. O Também Guardamos Pedras Aqui é diretamente inspirado no épico grego Ilíada, de autoria atribuída a Homero, que retrata a conquista de Troia.

Veja os principais trechos da entrevista com a autora:

Vamos começar falando um pouco do livro Também Guardamos Pedras Aqui. Queria entender um pouco por que essa opção pela poesia grega e também o que isso significa na sua trajetória.

Eu sou formada em teatro. Tem algo que, de certa forma, eu discuto no livro, talvez de uma maneira não tão direta, que é essa obsessão nossa pelos gregos, que não diz respeito só a mim, Luiza, mas a nossa sociedade que passou por esse processo brutal de colonização e que ainda hoje continua referenciando de maneira tão intensa nos currículos escolares, nas produções culturais, esse imaginário cânone greco-latino. Então, na faculdade de artes cênicas, por exemplo, eu estudei dois anos de Grécia antiga.

Isso é algo que também se verifica nos cursos de letras e em muitos outros cursos. Você estuda tragédia grega. Você estuda comédia grega. Você estuda poética de Aristóteles, O Banquete do Platão. Uma tradição que é tão distante a nós. E, muitas vezes, a gente acaba não olhando para outras tradições e cosmovisões que estão mais próximas. As diferentes tradições latino-americanas andinas, maias e tudo mais ou as tradições africanas.

Quando eu termino [o curso universitário] eu vou fazer EAD, que a escola de artes dramáticas da USP, eu tenho que retomar essa galera [os gregos]. Eu estava lá, lendo pela segunda vez a mesma tradição, e faltava a Ilíada.

Então, eu estava indo viajar, fazer um mochilão pela Bolívia e pelo Chile. Eu falei: ‘Ah, vou pegar a Ilíada. Por que não? [risos]. É pesado, mas, pelo menos, é um volume só’. Meu irmão, Caetano, tinha uma edição que era leve, de papel bem fininho.

Foi onde eu li e fiquei muito chocada. Eu costumo dizer que o Pedras nasce um pouco desse horror a essa narrativa fundante da tradição ocidental, que é narrativa muito violenta. Eu sabia que era a história de uma guerra, que é como é contada, né? Mas, na verdade, não é a história de uma guerra, é a história de um massacre.

O que diferencia uma guerra de um massacre?

A guerra é quando, minimamente, você tem pé de igualdade. Você tem possibilidades reais dos dois lados ganharem. É algo que vai ser disputado na batalha. E, quando você lê a Ilíada, você vê que os troianos nunca tiveram chance de ganhar, porque os deuses eram gregos. Acho que foi a maior indignação para mim, porque isso eu não sabia antes de ler. Mas você tem o tempo inteiro a batalha acontecendo no campo terreno, entre gregos e troianos, e uma batalha acontecendo no plano divino, digamos assim, no Olimpo. Então, você tem os deuses que são pró-troianos e os deuses que são pró-gregos. E tem um momento que tem uma treta gigante, e Zeus [deus do trovão e líder do panteão grego] fala: ‘ninguém intervém na guerra, nenhum dos deuses’. E aí os troianos passam a ganhar a guerra.

Só que aí tem uma coisa que é muito doida, porque a gente tem essa ideia de perfeição atrelada à divindade, no catolicismo. No panteão dos gregos, na mitologia grega, são deuses que estupram, que têm inveja, que trapaceiam. Hera [esposa de Zeus] faz uma trapaça com Zeus. Ela vai até o fundo do oceano, pega um sonífero e Zeus dorme. Aí, ela e Atena [deusa associada a sabedoria] voltam para a guerra, quebram o pacto.

Os deuses são trapaceiros e Ulisses [herói grego] é trapaceiro também, porque é uma trapaça o que ele faz com cavalo. Não é fair play [jogo justo]. Eu acho que tem essa dimensão do massacre. Além de toda a devastação de um povo, das inúmeras formas de aniquilação, de tortura de subjugação, de estupro, de violência que estão no livro, tem isso de que é impossível esse povo ganhar. [Por orientação de Ulisses, os gregos fingem se retirar do campo de batalha e oferecem um cavalo gigante de madeira como presente aos troianos. Porém, uma parte dos soldados gregos se esconde dentro da escultura para, durante a noite, abrir os portões da cidade e provocar a derrota de Troia.]

No poema Homero, você diz que os gregos “foram capazes de” e traz uma lista, que seria de atrocidades, mas que está coberta por uma tarja preta, de censura, para em seguida dizer que, apesar desses horrores, eles, ao menos devolveram o corpo de Heitor, príncipe de Troia, ao contrário do que se fez, muitas vezes na ditadura militar brasileira. Você quer dizer que vivemos horrores maiores do que os troianos?

Isso tem muito a ver com dimensão quase que performativa da minha leitura. Eu estava lendo nessa viagem e passei pelo local onde Che Guevara [guerrilheiro que participou da revolução cubana] foi assassinado, no interior da Bolívia. Inclusive, tinha uma menina lá [parte do grupo], que era Tânia. Eles estavam tentando articular uma revolução comunista no coração da América Latina. A ideia seria sair do coração da Bolívia e se espalhar pelo continente inteiro. Eles são delatados, passam por uma emboscada e são assassinados.

O Che Guevara morre. A cabeça dele fica exposta em uma dessas vilas e o corpo fica desaparecido, por medo de que o local em que ele estivesse enterrado virasse um mausoléu de peregrinação comunista, um lugar de memória. O corpo dele só é encontrado 30 anos depois. Um dos militares disse que ele estava enterrado numa pista de pouso militar. Hoje você tem um museu do Che Guevara nesse local.

Eu queria aprofundar um pouco o uso desse recurso da censura, que aparece em outras partes do livro.

Eu acho que essa questão da censura ou do apagamento de arquivos é algo que também está muito presente quando a gente fala dessa história, dessa imposição de uma história única, dessa construção de um relato produzido pelo poder. Então, desses arquivos que são censurados, apagados e tudo mais.

Também, de certa forma propõe esse jogo com os leitores, da mesma forma que eu estou tentando reconstituir uma história que é muito apagada, vamos tentar reconstituir juntos. Talvez seja exercício imaginativo nosso também.

Você disse que Ulisses não jogava no fair play [jogo justo]. Tem um texto em que parece que você fala disso, invertendo a condição de herói e vilão, no poema Polifemo [gigante de um olho só que comia pessoas]. “Ninguém te cegou não/ não foi Ulisses/ aquela noite o policial não tinha identificação”

Ulisses, para mim, é um personagem que a gente, enquanto ocidente, vai emular como a inteligência. Primeiro, tudo que a gente sabe das viagens dele [narradas na Odisseia], é ele o que conta. Ou seja, ele pode estar mentindo, ele pode ter inventado tudo. Para mim, é um narrador nada confiável. Principalmente, porque do que a gente sabe, sim, de dados dele, é o personagem que faz o Cavalo de Tróia, que ganha na trapaça.

Então, Polifemo estava lá e, de repente, chegam esses homens, se metem [nos domínios dele] e ainda o cegam. E tem essa que a grande sabedoria do Ulisses é falar: “Eu não sou ninguém”. Então, Polifemo começa a gritar [após ter o olho furado]: “ninguém me cegou”.

Isso também foi uma chave de leitura para o caso do Sergio Silva [fotógrafo que perdeu o olho nas manifestações de 2013] e de vários e várias manifestantes que foram baleados com bala de borracha nos últimos anos, seja no Brasil, seja no Chile, onde a gente teve de fato uma forma sistemática da polícia de dilacerar o globo ocular de muitas pessoas.

E que ninguém cegou essas pessoas. É a mesma situação bastante recorrente quando a gente fala das ações das polícias militares, seja pelo não uso de identificação, seja porque cada vez mais são policiais que estão com balaclava ou com capacete.

Você fala em diversos momentos sobre violência (policial, contra a mulher), que é uma temática muito recorrente nos slams. Como o movimento dos slams atravessa a sua trajetória?

Minha trajetória é completamente atravessada pelo slam. Eu vim do teatro, sou das artes cênicas. Não estava no meu horizonte de vida virar poeta. Foi através do encontro com as batalhas de slam, com os microfones abertos, com o movimento saraus, que eu começo a escrever. Principalmente, por ser uma poesia muito engajada. Uma poesia que pensa o seu tempo histórico, que é fundamentada na dimensão coletiva da palavra. Toda essa partilha da performance é uma forma poética também de encarar esses temas.

slam não dissocia política e poética. É óbvio que é indissociável. Mas tem alguns lugares que se tem ilusões que é possível dissociar disso. Então, eu começo a frequentar em 2013 e continuo, não mais como slammer. Já aposentei as chuteiras faz um tempo. Mas, de vez em quando, fazendo a parte de produção. Fui fazer um mestrado sobre isso.

Em que momento você se aposentou do slam?

Como slammer, é muito normal a gente ter ondas, né? É tipo jogador de futebol, a carreira é curta. A gente vai lá, batalha uma, batalha outra, brinca durante dois ou três anos. É muito normal. Assim, você tem uma renovação da cena muito constante. Então, eu comecei a frequentar em 2013, já tinha tido uma onda antes de mim. Eu sou dessa segunda geração e já estão na sexta geração, agora.

Então, eu fui fazer outras paradas em termos de artista, de criação artística. Mas, ao mesmo tempo, é um lugar que eu gosto muito de estar. Eu continuo frequentando muito nesses últimos anos.

De alguma forma, tentei elaborar bastante a reflexão sobre a cena na dissertação. Acho que é uma forma de agradecer também esses anos todos de trajetória. É um trabalho que é a primeira parte é bastante dedicada a pensar historiografia do slam nos Estados Unidos. Eu traduzi muita coisa que não está disponível em português.

Também analiso quatro poemas da Luz Ribeiro, de Pieta Poeta, do Beto Bellinati e da Ana Roxo. Pensando como que essas questões todas vão para o corpo do poema. Porque, muitas vezes, quando a gente fala de slam, a gente só faz uma abordagem antropológica ou socializante, sendo que a gente está falando de poesia. E eu acho que ler esses poemas também na sua potência estética, o que eles têm de disruptivo, no que eles propõem de linguagem, no que eles contestam em toda uma tradição literária brasileira, isso é muito potente também.

São Paulo SP 29/09/2023 Luiza Romão vencedora do Prêmio Jabuti  2022.  Foto Paulo Pinto/Agência Brasil
São Paulo SP 29/09/2023 Luiza Romão vencedora do Prêmio Jabuti 2022. Foto Paulo Pinto/Agência Brasil – Paulo Pinto/Agência Brasil

 

Edição: Sabrina Craide

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