Reportagens
#TBT: Memorial dos Povos Indígenas, um reduto de ancestralidade
Com acervo de mais de 2 mil artefatos, museu no Eixo Monumental inaugura série #TBTDoDF, especial que resgatará partes importantes da história do Distrito Federal

Catarina Loiola, da Agência Brasília | Edição: Vinicius Nader
O Memorial dos Povos Indígenas (MPI) é um ponto de valorização e fortalecimento da cultura dos povos originários. Mais de 2 mil artefatos estão dispostos no equipamento público, localizado no Eixo Monumental e mantido pela Secretaria de Cultura e Economia Criativa do DF (Secec). A visitação é gratuita e está disponível de terça a domingo, incluindo feriados.
A Agência Brasília conta a história por trás do Museu dos Povos Indígenas no #TBTDoDF – um especial de matérias que aproveita a sigla em inglês (Throwback Thursday) para mostrar episódios que marcaram o quadradinho.
A história do memorial começa na década de 1980, quando a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) planejava transferir o acervo do Museu do Índio do Rio de Janeiro para Brasília – o que, no entanto, não se concretizou. Por outro lado, a ideia de criar um espaço cultural indígena na capital federal prosseguiu, mas demorou a se tornar realidade.

Desenhado por Oscar Niemeyer, o MPI é inspirado em uma maloca yanomami. Teve a construção concluída em 1987 e está instalado em um ponto central de Brasília, ao lado do Memorial JK e próximo ao Palácio do Buriti e à Câmara Legislativa do Distrito Federal. O plano diretor foi elaborado pela antropóloga Berta Ribeiro, com a proposta de que o museu fosse um reduto de pesquisas e produção do conhecimento sobre as populações originárias.
Mas, apesar de ter sido pensado para os povos indígenas, o espaço só foi ocupado por eles 12 anos após a finalização da obra. O prédio chegou a ser destinado ao Museu de Arte Moderna de Brasília, ao Museu de Arte Moderna, a um Museu de Brasília e à sede da Câmara Distrital. Todas as tentativas não tiveram sucesso e foram veementemente contestadas pela população originária.

Em 1995, o MPI, finalmente, foi dedicado à causa indígena. Em abril daquele ano, lideranças karajá, kuikuro, terena e xavante promoveram a posse simbólica do espaço, reaberto oficialmente em 1999. O equipamento foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2007.
Imagens da construção do memorial estão armazenadas no Arquivo Público do Distrito Federal (ArPDF). “Nós nos orgulhamos de ter em nossos acervos registros da população indígena em diversos momentos históricos, bem como da construção e de celebrações realizadas no Memorial dos Povos Indígenas. Esse material, assim como outros, está à disposição dos interessados em conhecer um pouco mais sobre a história do DF”, afirma o superintendente do ArPDF, Adalberto Scigliano.
Conquista permanente
Hoje, o memorial é um ponto de encontro de indígenas e pesquisadores, sendo considerado uma importante atração turística. Mensalmente, cerca de 3 mil pessoas passam pelo MPI, em média. Grande parte do público é de estudantes de instituições públicas e privadas, que participam de visitas guiadas agendadas. Os encontros fazem parte do projeto Territórios Culturais, uma parceria da Secec com a Secretaria de Educação (SEE). Para saber mais, acesse este site.

O monumento conta com área de exposições, telecentro, local para eventos e jardim externo. Em 2019, o local passou por uma pequena reforma e ganhou dois banheiros novos, além de pintura externa e interna. Entre as obras em exposição, há peças representativas de vários povos brasileiros, com exemplares das etnias kayapó, xavante e karajás, entre outras, e itens da coleção da antropóloga Berta Ribeiro.
“Muitas vezes, as pessoas acham que um memorial é apenas para guardar lembranças dos que já foram. Mas este é um memorial dinâmico, lugar de ciência, lugar de índio, onde ele pode discutir seus problemas e apresentar sua cultura”, salienta o diretor do memorial, David de Oliveira. Segundo ele, além dos itens em exposição, há outras centenas armazenadas para pesquisa e restauração.
“Nós desejamos respeito e valorização, e o memorial é uma parte importante nesse processo”David de Oliveira, diretor do Memorial dos Povos Indígenas
Indígena da tribo terena, do Mato Grosso do Sul, David tem 83 anos e está à frente do equipamento cultural desde 2019. Trabalhou por 30 anos como indigenista da Funai e esteve presente em diversas lutas e conquistas dos povos originários. “Os terenas lutam para conseguir o melhor para eles, não importando se vão passar fome ou dormir no relento. Sabem que precisam chegar ao objetivo. Nós desejamos respeito e valorização, e o memorial é uma parte importante nesse processo”, frisa.
A professora do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB), Cristiane Portela, afirma que existem duas formas de designar territórios indígenas de acordo com a forma com a qual os povos se relacionam – útero e luta. “Os territórios útero são as localidades reconhecidas e propostas pelos próprios povos e que, portanto, reafirmam os laços de comunitarismo étnico-cultural. Como uma extensão desses espaços, há os territórios luta, que não necessariamente são territórios de comunidades tradicionais, mas que servem ao propósito de reafirmar essas identidades”, explica.

“O memorial não é um espaço de pertencimento dos próprios povos porque foi criado por outros, mas ao mesmo tempo é um espaço que foi retomado e que tem sido cada vez mais ocupado pelos povos indígenas”, acrescenta Cristiane, que é coordenadora do programa de pós-graduação em Sustentabilidade Junto a Povos e Territórios Tradicionais.
Valorização
No calendário, duas datas promovem a valorização dos cidadãos originários: o Dia Internacional dos Povos Indígenas, celebrado em 9 de agosto e criado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1994, e o Dia do Indígena, 19 de abril, criado em 1943 pelo governo federal.

Em ambos os momentos, o indígena Mirim Ju, 34 anos, aproveita o memorial para promover ações de reconhecimento das raízes originárias. Neste ano, ele e outros voluntários realizaram contação de histórias e sessões de conversa. Nascido em São Paulo, ele é da etnia guarani e chegou ao DF em 2016. Atualmente, estuda geografia na UnB. “É um lugar sagrado, de encontro, de visibilidade para nós”, pontua.
É um lugar sagrado, de encontro, de visibilidade para nós”Mirim Ju
Mirim Ju afirma que as datas comemorativas, bem como o MPI, são essenciais para difundir a importância dos povos para a sociedade. “Eles trazem a lembrança de que os povos indígenas já viviam aqui há milhares de anos, muito antes da construção das cidades. Temos mais de 5 mil indígenas no DF”, observa.
A estimativa de Mirim Ju foi confirmada pelo último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): 5.813 indígenas vivem em alguma das 35 regiões administrativas atualmente, o que equivale a 0,21% da população total. O Governo do Distrito Federal (GDF) promove uma série de políticas públicas específicas para essas pessoas.

Neste ano, a Secec abriu linhas de investimentos em projetos sobre a cultura indígena dentro do Edital FAC (Fundo de Apoio à Cultura) Multicultural 2. Há uma vaga para projeto educativo no Memorial dos Povos Indígenas com aporte de R$ 350 mil, dentro da categoria Cultura de Todo Jeito. O proponente precisa garantir a realização de atividades educativas com o público geral e escolas públicas e privadas, além de cumprir uma série de critérios para ser selecionado. Também há duas vagas em ações de formação para Cultura Indígena e/ou Afrobrasileira, cada uma com aporte de R$ 60 mil.
A Secretaria de Saúde do DF (SES) oferece quatro equipes de referência para a saúde indígena, instaladas na Unidade Básica de Saúde (UBS) 2 da Asa Norte, na UBS 1 de São Sebastião, na UBS Cariru da região do Café Sem Troco, na área rural do Paranoá, e na UBS 3 do Morro Azul, em São Sebastião. Regularmente, são atendidos 230 indígenas warao, 50 kariri-xokó e 130 guajajara – quantidade que varia, tendo em vista que as populações são itinerantes.
Já a Secretaria de Desenvolvimento Social do DF (Sedes) dispõe do Centro de Referência Especializado de Assistência Social Diversidade (Creas) Diversidade, na Asa Sul. A unidade é específica para públicos indígenas, quilombolas, membros da comunidade LGBTQIA+ e afins. Também há a equipe Imigrantes, que oferta serviços, benefícios, programas e projetos socioassistenciais a pessoas vindas de outros países, como os membros da etnia warao, indígenas provenientes da Venezuela, além do Cras Móvel, que leva assistência a comunidades mais afastadas.
No âmbito da geração de emprego e renda, a Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Renda (Sedet) oferta vagas para indígenas refugiados e migrantes venezuelanos nos programas de qualificação profissional. É o caso do 1º Ciclo de 2023 do RenovaDF, que tem a participação de 33 indígenas warao.
Serviço
Memorial dos Povos Indígenas
Horário de funcionamento: de terça a domingo, das 9h às 17h
Telefones: (61) 3344-1155 e 3344-1154, para dúvidas gerais, solicitação de visita guiada ou pauta espontânea
Agendamento de visitas escolares: _educativo.mpi@cultura.df.gov.br_
Reportagens
Ação educativa em bares orienta contra direção após consumo de álcool
Com o projeto Rolê Consciente, o Detran promove intervenções artísticas sobre os riscos de beber e dirigir; iniciativa acontece nesta sexta, na Asa Norte

Agência Brasília* I Edição: Débora Cronemberger
Na noite desta sexta-feira (29), acontece mais uma edição do projeto Rolê Consciente do Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran-DF). A ação educativa percorre bares e restaurantes levando conscientização ao público para não dirigir, se beber. A ação de hoje ocorre na Asa Norte, de 18h às 21h.

O Rolê Consciente é uma ação que envolve intervenções artísticas com bonecos, MCs do trânsito com suas rimas e, também, um papo sério com a entrega de material educativo e palestras dos professores de trânsito do Detran-DF. Toda a ação é voltada ao tema sobre os efeitos do álcool no organismo, orientações de segurança quanto à utilização de celular ao volante, a importância do respeito à velocidade máxima das vias, faixa de pedestre, respeito aos ciclistas e muito mais.
De acordo com o Código de Trânsito Brasileiro, dirigir após o consumo de álcool é infração gravíssima, com multa no valor de R$ 2.934,70 e suspensão do direito de dirigir por um ano. O Rolê Consciente acontece às quintas e sextas-feiras e, a partir de outubro, será aos sábados e domingos também.
*Com informações do Detran
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Parceria visa fortalecer o esporte inclusivo no DF
Secretarias de Esporte e Lazer e da Pessoa com Deficiência vão elaborar ações para ampliar o acesso das pessoas com deficiência à prática esportiva em todas as suas esferas e em todas as faixas etárias

Agência Brasília* | Edição: Igor Silveira
A Secretaria de Esporte e Lazer (SEL-DF) e a Secretaria da Pessoa com Deficiência (SEPD-DF) se uniram para potencializar o paradesporto e esporte inclusivo no DF. As ações serão efetivadas por meio do Programa de Esporte Inclusivo.
A SEL-DF tem trabalhado para fomentar a visibilidade e valorização do paradesporto na cidade. Para isso, a pasta vem realizando eventos com o objetivo de dar celeridade ao acesso das pessoas com deficiência à prática esportiva em todas as suas esferas e em todas as faixas etárias.

O secretário Julio Cesar Ribeiro explica que uma das principais prioridades da pasta tem sido criar ações para dar visibilidade ao paradesporto. “A valorização e o investimento no paradesporto são fundamentais para construir uma comunidade mais inclusiva, onde cada cidadão, independentemente de suas habilidades, encontre espaço e oportunidades no universo esportivo do Distrito Federal”, destaca. O esporte é uma ferramenta essencial para a superação de barreiras”, completa Ribeiro.
Para o secretário da Pessoa com Deficiência, Flávio Santos, as duas secretarias poderão estabelecer uma política pública específica e efetiva voltada para atender às pessoas com deficiência nessa área. “As ações já existiam, mas serão ampliadas e melhoradas por meio desse trabalho porque, aí sim, vai ser construído um programa de esporte inclusivo”, afirma.
As pastas já trabalhavam de forma conjunta em ações pontuais, com o apoio aos paratletas por meio dos programas Compete Brasília e Bolsa Atleta, além das atividades oferecidas nos Centros Olímpicos e Paralímpicos. “Eu, como secretário e como atleta, sempre evidenciei a importância do esporte como uma poderosa ferramenta de inclusão”, finaliza Flávio.
Inclusão
Em maio deste ano, o Centro Olímpico e Paralímpico do Gama, recebeu mais de 350 inscrições para o Festival Paralímpico, que, pela primeira vez, ocorreu em Brasília. O evento realizado pela SEL-DF proporcionou aos participantes a inclusão por meio da vivência lúdica nos esportes paralímpicos.
O Campeonato Regional Centro-Oeste de Bocha Paralímpica foi outro marco na capital federal. O evento, que recebeu o apoio inédito da pasta, serviu como etapa classificatória para o Campeonato Brasileiro de Bocha Paralímpica, além de ter proporcionado aos atletas a oportunidade de ter representado suas associações e região em uma competição de nível nacional.
Outro evento que contou com o apoio da pasta foi a etapa regional das Paralimpíadas Escolares, que fomentou a inclusão e o progresso dos jovens atletas com deficiência, reunindo a participação de mais de 900 competidores. Os jogos ocorreram entre os dias 31 de agosto e 1º de setembro.
Outras competições paradesportivas também foram apoiadas pela SEL, como o Brasileiro de Adestramento Paraequestre, Centro-oeste de Handebol de Surdos e o Campeonato Regional de Goalball.
*Com informações da Secretaria de Esporte e Lazer do Distrito Federal (SEL-DF)
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Poeta vencedora do Prêmio Jabuti transita do slam à literatura grega
Autora voltou à Estação Guilhermina para lançamento de seu livro

Foi na praça ao lado da Estação Guilhermina do Metrô, na zona norte paulistana, que Luiza Romão começou a declamar versos em público. Ali, acontece desde 2012, toda última sexta-feira do mês, a batalha de rimas conhecida como Slam da Guilhermina. Agora, dez anos depois desse encontro com a poesia falada, a autora retornou ao espaço para fazer um dos eventos de lançamento de Também Guardamos Pedras Aqui, seu livro que venceu o último Prêmio Jabuti.
“Quase pedir a benção”, resume a poeta sobre os sentimentos sobre esse momento que ela enxerga como o fechamento de um ciclo. “Acho que é bastante significativo, fazer isso bem antes de ganhar o mundo, assim, sabe? Antes de ir pro mundão”, comenta a respeito da turnê que se aproxima nos próximos dias. Até janeiro de 2024, a previsão é que Luiza tenha passado pela França, Argentina, México e Alemanha para divulgar o livro premiado, que já tem prontas traduções para o francês e espanhol.
Formada em artes cênicas, Luiza se aproximou da poesia atraída pelo modelo performático do slam, que começou a frequentar em 2013. As batalhas de rimas foram criadas por Marc Smith, nos Estados Unidos, na década de 1980. As competições, que atualmente acontecem em diversas partes do mundo, começaram, segundo a autora, como uma forma de tornar a leitura de poesia mais atraente nos saraus. “Em geral, em noites de cabaré, quando músico ia se apresentar, todo mundo prestava atenção. Quando ia uma pessoa do stand up, todo mundo prestava atenção. Na hora que o poeta ia declamar, era o momento que geral ia no banheiro, comprar cerveja, acender cigarro”, conta.
A performance da poesia falada, que compõe a cena cultural das periferias paulistanas, acabou atraindo Luiza, que tinha vindo em 2010 para a cidade, para estudar na Universidade de São Paulo. “Não estava no meu horizonte de vida virar poeta. Foi através do encontro com as batalhas de slam, com os microfones abertos, com o movimento saraus, que eu comecei a escrever”, lembra.
Uma estética que se relaciona com as temáticas que atravessam a juventude, especialmente a que vive fora dos bairros mais privilegiados. “Uma poesia muito engajada. Uma poesia que pensa o seu tempo histórico, que é fundamentada na dimensão coletiva da palavra. Toda essa partilha da performance”, enumera sobre as razões que a aproximaram dos versos e das rimas.
Atualmente com 31 anos, Luiza tem quatro livros publicados. O Também Guardamos Pedras Aqui é diretamente inspirado no épico grego Ilíada, de autoria atribuída a Homero, que retrata a conquista de Troia.
Veja os principais trechos da entrevista com a autora:
Vamos começar falando um pouco do livro Também Guardamos Pedras Aqui. Queria entender um pouco por que essa opção pela poesia grega e também o que isso significa na sua trajetória.
Eu sou formada em teatro. Tem algo que, de certa forma, eu discuto no livro, talvez de uma maneira não tão direta, que é essa obsessão nossa pelos gregos, que não diz respeito só a mim, Luiza, mas a nossa sociedade que passou por esse processo brutal de colonização e que ainda hoje continua referenciando de maneira tão intensa nos currículos escolares, nas produções culturais, esse imaginário cânone greco-latino. Então, na faculdade de artes cênicas, por exemplo, eu estudei dois anos de Grécia antiga.
Isso é algo que também se verifica nos cursos de letras e em muitos outros cursos. Você estuda tragédia grega. Você estuda comédia grega. Você estuda poética de Aristóteles, O Banquete do Platão. Uma tradição que é tão distante a nós. E, muitas vezes, a gente acaba não olhando para outras tradições e cosmovisões que estão mais próximas. As diferentes tradições latino-americanas andinas, maias e tudo mais ou as tradições africanas.
Quando eu termino [o curso universitário] eu vou fazer EAD, que a escola de artes dramáticas da USP, eu tenho que retomar essa galera [os gregos]. Eu estava lá, lendo pela segunda vez a mesma tradição, e faltava a Ilíada.
Então, eu estava indo viajar, fazer um mochilão pela Bolívia e pelo Chile. Eu falei: ‘Ah, vou pegar a Ilíada. Por que não? [risos]. É pesado, mas, pelo menos, é um volume só’. Meu irmão, Caetano, tinha uma edição que era leve, de papel bem fininho.
Foi onde eu li e fiquei muito chocada. Eu costumo dizer que o Pedras nasce um pouco desse horror a essa narrativa fundante da tradição ocidental, que é narrativa muito violenta. Eu sabia que era a história de uma guerra, que é como é contada, né? Mas, na verdade, não é a história de uma guerra, é a história de um massacre.
O que diferencia uma guerra de um massacre?
A guerra é quando, minimamente, você tem pé de igualdade. Você tem possibilidades reais dos dois lados ganharem. É algo que vai ser disputado na batalha. E, quando você lê a Ilíada, você vê que os troianos nunca tiveram chance de ganhar, porque os deuses eram gregos. Acho que foi a maior indignação para mim, porque isso eu não sabia antes de ler. Mas você tem o tempo inteiro a batalha acontecendo no campo terreno, entre gregos e troianos, e uma batalha acontecendo no plano divino, digamos assim, no Olimpo. Então, você tem os deuses que são pró-troianos e os deuses que são pró-gregos. E tem um momento que tem uma treta gigante, e Zeus [deus do trovão e líder do panteão grego] fala: ‘ninguém intervém na guerra, nenhum dos deuses’. E aí os troianos passam a ganhar a guerra.
Só que aí tem uma coisa que é muito doida, porque a gente tem essa ideia de perfeição atrelada à divindade, no catolicismo. No panteão dos gregos, na mitologia grega, são deuses que estupram, que têm inveja, que trapaceiam. Hera [esposa de Zeus] faz uma trapaça com Zeus. Ela vai até o fundo do oceano, pega um sonífero e Zeus dorme. Aí, ela e Atena [deusa associada a sabedoria] voltam para a guerra, quebram o pacto.
Os deuses são trapaceiros e Ulisses [herói grego] é trapaceiro também, porque é uma trapaça o que ele faz com cavalo. Não é fair play [jogo justo]. Eu acho que tem essa dimensão do massacre. Além de toda a devastação de um povo, das inúmeras formas de aniquilação, de tortura de subjugação, de estupro, de violência que estão no livro, tem isso de que é impossível esse povo ganhar. [Por orientação de Ulisses, os gregos fingem se retirar do campo de batalha e oferecem um cavalo gigante de madeira como presente aos troianos. Porém, uma parte dos soldados gregos se esconde dentro da escultura para, durante a noite, abrir os portões da cidade e provocar a derrota de Troia.]
No poema Homero, você diz que os gregos “foram capazes de” e traz uma lista, que seria de atrocidades, mas que está coberta por uma tarja preta, de censura, para em seguida dizer que, apesar desses horrores, eles, ao menos devolveram o corpo de Heitor, príncipe de Troia, ao contrário do que se fez, muitas vezes na ditadura militar brasileira. Você quer dizer que vivemos horrores maiores do que os troianos?
Isso tem muito a ver com dimensão quase que performativa da minha leitura. Eu estava lendo nessa viagem e passei pelo local onde Che Guevara [guerrilheiro que participou da revolução cubana] foi assassinado, no interior da Bolívia. Inclusive, tinha uma menina lá [parte do grupo], que era Tânia. Eles estavam tentando articular uma revolução comunista no coração da América Latina. A ideia seria sair do coração da Bolívia e se espalhar pelo continente inteiro. Eles são delatados, passam por uma emboscada e são assassinados.
O Che Guevara morre. A cabeça dele fica exposta em uma dessas vilas e o corpo fica desaparecido, por medo de que o local em que ele estivesse enterrado virasse um mausoléu de peregrinação comunista, um lugar de memória. O corpo dele só é encontrado 30 anos depois. Um dos militares disse que ele estava enterrado numa pista de pouso militar. Hoje você tem um museu do Che Guevara nesse local.
Eu queria aprofundar um pouco o uso desse recurso da censura, que aparece em outras partes do livro.
Eu acho que essa questão da censura ou do apagamento de arquivos é algo que também está muito presente quando a gente fala dessa história, dessa imposição de uma história única, dessa construção de um relato produzido pelo poder. Então, desses arquivos que são censurados, apagados e tudo mais.
Também, de certa forma propõe esse jogo com os leitores, da mesma forma que eu estou tentando reconstituir uma história que é muito apagada, vamos tentar reconstituir juntos. Talvez seja exercício imaginativo nosso também.
Você disse que Ulisses não jogava no fair play [jogo justo]. Tem um texto em que parece que você fala disso, invertendo a condição de herói e vilão, no poema Polifemo [gigante de um olho só que comia pessoas]. “Ninguém te cegou não/ não foi Ulisses/ aquela noite o policial não tinha identificação”
Ulisses, para mim, é um personagem que a gente, enquanto ocidente, vai emular como a inteligência. Primeiro, tudo que a gente sabe das viagens dele [narradas na Odisseia], é ele o que conta. Ou seja, ele pode estar mentindo, ele pode ter inventado tudo. Para mim, é um narrador nada confiável. Principalmente, porque do que a gente sabe, sim, de dados dele, é o personagem que faz o Cavalo de Tróia, que ganha na trapaça.
Então, Polifemo estava lá e, de repente, chegam esses homens, se metem [nos domínios dele] e ainda o cegam. E tem essa que a grande sabedoria do Ulisses é falar: “Eu não sou ninguém”. Então, Polifemo começa a gritar [após ter o olho furado]: “ninguém me cegou”.
Isso também foi uma chave de leitura para o caso do Sergio Silva [fotógrafo que perdeu o olho nas manifestações de 2013] e de vários e várias manifestantes que foram baleados com bala de borracha nos últimos anos, seja no Brasil, seja no Chile, onde a gente teve de fato uma forma sistemática da polícia de dilacerar o globo ocular de muitas pessoas.
E que ninguém cegou essas pessoas. É a mesma situação bastante recorrente quando a gente fala das ações das polícias militares, seja pelo não uso de identificação, seja porque cada vez mais são policiais que estão com balaclava ou com capacete.
Você fala em diversos momentos sobre violência (policial, contra a mulher), que é uma temática muito recorrente nos slams. Como o movimento dos slams atravessa a sua trajetória?
Minha trajetória é completamente atravessada pelo slam. Eu vim do teatro, sou das artes cênicas. Não estava no meu horizonte de vida virar poeta. Foi através do encontro com as batalhas de slam, com os microfones abertos, com o movimento saraus, que eu começo a escrever. Principalmente, por ser uma poesia muito engajada. Uma poesia que pensa o seu tempo histórico, que é fundamentada na dimensão coletiva da palavra. Toda essa partilha da performance é uma forma poética também de encarar esses temas.
O slam não dissocia política e poética. É óbvio que é indissociável. Mas tem alguns lugares que se tem ilusões que é possível dissociar disso. Então, eu começo a frequentar em 2013 e continuo, não mais como slammer. Já aposentei as chuteiras faz um tempo. Mas, de vez em quando, fazendo a parte de produção. Fui fazer um mestrado sobre isso.
Em que momento você se aposentou do slam?
Como slammer, é muito normal a gente ter ondas, né? É tipo jogador de futebol, a carreira é curta. A gente vai lá, batalha uma, batalha outra, brinca durante dois ou três anos. É muito normal. Assim, você tem uma renovação da cena muito constante. Então, eu comecei a frequentar em 2013, já tinha tido uma onda antes de mim. Eu sou dessa segunda geração e já estão na sexta geração, agora.
Então, eu fui fazer outras paradas em termos de artista, de criação artística. Mas, ao mesmo tempo, é um lugar que eu gosto muito de estar. Eu continuo frequentando muito nesses últimos anos.
De alguma forma, tentei elaborar bastante a reflexão sobre a cena na dissertação. Acho que é uma forma de agradecer também esses anos todos de trajetória. É um trabalho que é a primeira parte é bastante dedicada a pensar historiografia do slam nos Estados Unidos. Eu traduzi muita coisa que não está disponível em português.
Também analiso quatro poemas da Luz Ribeiro, de Pieta Poeta, do Beto Bellinati e da Ana Roxo. Pensando como que essas questões todas vão para o corpo do poema. Porque, muitas vezes, quando a gente fala de slam, a gente só faz uma abordagem antropológica ou socializante, sendo que a gente está falando de poesia. E eu acho que ler esses poemas também na sua potência estética, o que eles têm de disruptivo, no que eles propõem de linguagem, no que eles contestam em toda uma tradição literária brasileira, isso é muito potente também.
Edição: Sabrina Craide
ebc
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