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Bahia revisa programa de proteção após assassinato de Mãe Bernadete

Estado tem 94 defensores dos direitos humanos sob proteção

 

O governo da Bahia está revisando todos os protocolos de proteção de defensores de direitos humanos, após o assassinato de Maria Bernadete Pacífico, Mãe Bernadete. A mãe de santo e liderança quilombola foi morta na última quinta-feira (17) dentro de casa no Quilombo Pitanga dos Palmares, no município Simões Filho (BA). 

De acordo com o secretário de Justiça e Direitos Humanos da Bahia, Felipe Freitas, equipes do governo estadual e do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania estão atuando juntos para discutir com os órgãos de segurança pública o aperfeiçoamento dos programas de proteção.

“A morte de uma defensora de direitos humanos é uma tragédia, ainda mais se ela já tenha sido ameaçada. O governo federal e o governo da Bahia estão revisando, obviamente não só na Bahia, como em todo o Brasil, todos os protocolos de proteção. Uma tragédia como essa precisa fazer com que a gente aprimore o programa, aprimore as medidas de proteção, aperfeiçoe as ações de policiamento em todo o país”, disse, neste domingo (20), em entrevista à Agência Brasil.

Segundo Freitas, as equipes estão em campo reforçando a segurança de ativistas da comunidade e da região. Familiares de Mãe Bernadete foram retirados do Quilombo Pitanga do Palmares como medida de proteção.

Em nota publicada neste sábado (19), o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania informou que, na próxima semana, a Coordenação-Geral do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos estará na Bahia para “cumprir agenda voltada ao fortalecimento do programa de proteção no estado”. Os representantes do governo federal farão visitas a comunidades ameaçadas e querem reunir informações para a reformulação dessa política pública.

No âmbito federal, fica a cargo da Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos a articulação entre os diversos órgãos e entidades. O programa, no entanto, é implementado por meio de convênios realizados com governos estaduais que, por sua vez, celebram parcerias com organizações da sociedade civil.

Na Bahia, o programa estadual é executado por meio da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos da Bahia, que conta com uma entidade da sociedade civil como equipe técnica para garantir os atendimentos.

“O mais importante, nesse momento, é a prioridade nas investigações. Porque o primeiro passo de uma profunda revisão dos programas de proteção passa por encontrar, efetivamente, quem foram os executores de Mãe Bernadete, toda a Polícia Civil está mobilizada. Nossa obrigação é oferecer uma resposta para esse caso e qualificar ainda mais a política de prevenção à violência e de proteção de pessoas que se acham ameaçadas”, disse o secretário Felipe Freitas.

Segurança no quilombo

Atualmente, na Bahia, estão sob proteção 94 defensores de direitos humanos como quilombolas, indígenas e trabalhadores rurais, e 25 estão sob análise.

“O Brasil é um país muito violento. Infelizmente, estados que têm riquezas naturais, ativos minerais importantes, eles são objetos de disputas muito intensas entre o poder econômico e comunidades tradicionais. A Bahia é um dos estados com maior número de comunidades indígenas e comunidades quilombolas e isso certamente faz com que haja, em torno dos direitos territoriais dessas comunidades, uma forte disputa”, explicou.

Levantamento da Rede de Observatórios de Segurança, realizado com apoio das secretarias de segurança pública estaduais e divulgado em junho deste ano, já apontava a Bahia como o segundo estado do Brasil com mais ocorrências de violência contra povos e comunidades tradicionais. Atrás apenas do Pará, a Bahia registrou 428 vítimas de violência no intervalo de 2017 a 2022.

Mãe Bernadete estava no programa de proteção desde 2017, quando seu filho, Binho do Quilombo, foi assassinado. Câmeras de segurança foram instaladas na casa da mãe de santo e a Polícia Militar fazia rondas no Quilombo Pitanga do Palmares. Segundo Freitas, ela recebia visitas diárias, às vezes mais de uma por dia, em diferentes horários, e tinha o contato telefônico dos comandantes da região.

Mãe Bernadete
Mãe Bernadete – Arte sobre foto de Walisson Braga/Conaq

“Além disso, ela foi atendida, em maio, por uma equipe interdisciplinar que fez uma entrevista em profundidade com ela para poder fazer uma atualização das avaliações de risco”, disse o secretário de Justiça e Direitos Humanos, explicando que não houve mudança de cenário que pedisse reforço na segurança de Mãe Bernadete recentemente.

“Em que pese, nas falas que ela fazia, referir-se ao tema da ameaça como um problema permanente nas comunidades e fosse muito enfática na manifestação pelo julgamento dos assassinos do seu filho, ela não relatou para as equipes, nos relatórios que nós temos, nos contatos diários com a polícia, algo específico que pudesse ensejar uma outra medida”, explicou.

Linhas de investigação

De acordo com o secretário de Justiça e Direitos Humanos da Bahia, existem várias linhas de investigação em curso e nada foi descartado ainda. “A gente não sabe de qual tipo de atuação de Mãe Bernadete decorreu a execução”, disse, explicando que a combatividade de defensores de direitos humanos é causa de incômodo “a certos poderes econômicos que querem, muitas vezes, violar direito dessas comunidades”.

A delegada-geral da Polícia Civil, Heloísa Brito, lidera pessoalmente as equipes na investigação sobre os executores e mandantes do crime.

“Não é possível afirmar a qual interesse Mãe Bernadete havia contrariado uma vez que ela era uma pessoa que, na sua posição de defender sua comunidade, podia estar incomodando muitas pessoas e grupos. Desde organizações como grupos ligados ao tráfico de drogas se sentiram, certamente, incomodados com liderança de Mãe Bernadete, grupos econômicos que tinha interesse na exploração do território, os responsáveis pela morte do filho dela também podem estar muito incomodados com a sua militância”, disse Felipe Freitas.

Há ainda, a conotação de racismo religioso para o crime. Para o secretário, o racismo e a exploração econômica de grupos de territórios tradicionais geram mais vulnerabilidade para essas lideranças. “Seja lá o que tenha sido motivação [para o crime], é inevitável reconhecer que o racismo e a intolerância religiosa e que os conflitos territoriais fazem parte do contexto da vida das comunidades tradicionais”, acrescentou o secretário.

Defensores da democracia

Com história de ativismo e produção acadêmica ligados ao movimento negro, Felipe Freitas conhecia Mãe Bernadete há mais de 16 anos e, segundo ele, o sentimento pessoal e coletivo é de consternação com o crime brutal. A líder quilombola foi executada com tiros no rosto enquanto via televisão com dois netos e mais duas crianças na sala de sua casa e terreiro religioso.

Simões Filho/ Bahia 19/08/2023 Casa da Mãe Bernadete, liderança do Quilombo Pitanga dos Palmares, assassinada na Bahia. Foto Janaína Neri.
Casa da Mãe Bernadete, liderança do Quilombo Pitanga dos Palmares, assassinada na Bahia. – Foto Janaína Neri.

“Nós não estamos aqui tratando apenas do nosso dever, da nossa obrigação de servidores públicos de investigar e elucidar a morte de uma cidadã baiana que foi vítima de uma violência brutal. Nós estamos também aqui investigando a morte de uma amiga, de uma pessoa que era aliada nossa, aliada dos nossos interesses comuns no campo dos direitos humano”, disse Freitas, contando que ela integrou conselhos de direitos do governo da Bahia e participou ativamente de iniciativas de programas governamentais.

Mãe Bernadete também era coordenadora da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) e ex-secretária de Promoção da Igualdade Racial de Simões Filho.

Para o secretário Felipe Freitas, defensores de direitos humanos e lutadores sociais compõem um papel fundamental na vida democrática. “Uma pessoa como Mãe Bernadete cumpria um papel importante na vida daquela comunidade, não só porque ela lutava por direito, mas porque ela, na prática, era alguém que lutava por serviços públicos muito práticos, que fazia acolhimento de famílias, que ouvia pessoas, que intermediava o acesso das pessoas aos serviços públicos, que favorecia a entrada do poder público no local. Isso é uma coisa que é fundamental para a vida democrática e é obrigação do Estado brasileiro reforçar, intensificar, qualificar e aprimorar as medidas de proteção de pessoas como ela”, destacou.

Edição: Aline Leal

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Ação educativa em bares orienta contra direção após consumo de álcool

Com o projeto Rolê Consciente, o Detran promove intervenções artísticas sobre os riscos de beber e dirigir; iniciativa acontece nesta sexta, na Asa Norte

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Agência Brasília* I Edição: Débora Cronemberger

 

Na noite desta sexta-feira (29), acontece mais uma edição do projeto Rolê Consciente do Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran-DF). A ação educativa percorre bares e restaurantes levando conscientização ao público para não dirigir, se beber. A ação de hoje ocorre na Asa Norte, de 18h às 21h.

Equipes do Detran percorrem bares e restaurantes para alertar sobre os riscos de dirigir após consumir bebida alcoólica | Foto: Divulgação/Detran

O Rolê Consciente é uma ação que envolve intervenções artísticas com bonecos, MCs do trânsito com suas rimas e, também, um papo sério com a entrega de material educativo e palestras dos professores de trânsito do Detran-DF. Toda a ação é voltada ao tema sobre os efeitos do álcool no organismo, orientações de segurança quanto à utilização de celular ao volante, a importância do respeito à velocidade máxima das vias, faixa de pedestre, respeito aos ciclistas e muito mais.

De acordo com o Código de Trânsito Brasileiro, dirigir após o consumo de álcool é infração gravíssima, com multa no valor de R$ 2.934,70 e suspensão do direito de dirigir por um ano. O Rolê Consciente acontece às quintas e sextas-feiras e, a partir de outubro, será aos sábados e domingos também.

*Com informações do Detran

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Parceria visa fortalecer o esporte inclusivo no DF

Secretarias de Esporte e Lazer e da Pessoa com Deficiência vão elaborar ações para ampliar o acesso das pessoas com deficiência à prática esportiva em todas as suas esferas e em todas as faixas etárias

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Agência Brasília* | Edição: Igor Silveira

 

A Secretaria de Esporte e Lazer (SEL-DF) e a Secretaria da Pessoa com Deficiência (SEPD-DF) se uniram para potencializar o paradesporto e esporte inclusivo no DF. As ações serão efetivadas por meio do Programa de Esporte Inclusivo.

A SEL-DF tem trabalhado para fomentar a visibilidade e valorização do paradesporto na cidade. Para isso, a pasta vem realizando eventos com o objetivo de dar celeridade ao acesso das pessoas com deficiência à prática esportiva em todas as suas esferas e em todas as faixas etárias.

As secretarias já trabalhavam de forma conjunta em ações pontuais, com o apoio aos paratletas por meio dos programas Compete Brasília e Bolsa Atleta, além das atividades oferecidas nos Centros Olímpicos e Paralímpicos | Foto: Divulgação/SEL-DF

O secretário Julio Cesar Ribeiro explica que uma das principais prioridades da pasta tem sido criar ações para dar visibilidade ao paradesporto. “A valorização e o investimento no paradesporto são fundamentais para construir uma comunidade mais inclusiva, onde cada cidadão, independentemente de suas habilidades, encontre espaço e oportunidades no universo esportivo do Distrito Federal”, destaca. O esporte é uma ferramenta essencial para a superação de barreiras”, completa Ribeiro.

Para o secretário da Pessoa com Deficiência, Flávio Santos, as duas secretarias poderão estabelecer uma política pública específica e efetiva voltada para atender às pessoas com deficiência nessa área. “As ações já existiam, mas serão ampliadas e melhoradas por meio desse trabalho porque, aí sim, vai ser construído um programa de esporte inclusivo”, afirma.

As pastas já trabalhavam de forma conjunta em ações pontuais, com o apoio aos paratletas por meio dos programas Compete Brasília e Bolsa Atleta, além das atividades oferecidas nos Centros Olímpicos e Paralímpicos. “Eu, como secretário e como atleta, sempre evidenciei a importância do esporte como uma poderosa ferramenta de inclusão”, finaliza Flávio.

Inclusão

Em maio deste ano, o Centro Olímpico e Paralímpico do Gama, recebeu mais de 350 inscrições para o Festival Paralímpico, que, pela primeira vez, ocorreu em Brasília. O evento realizado pela SEL-DF proporcionou aos participantes a inclusão por meio da vivência lúdica nos esportes paralímpicos.

O Campeonato Regional Centro-Oeste de Bocha Paralímpica foi outro marco na capital federal. O evento, que recebeu o apoio inédito da pasta, serviu como etapa classificatória para o Campeonato Brasileiro de Bocha Paralímpica, além de ter proporcionado aos atletas a oportunidade de ter representado suas associações e região em uma competição de nível nacional.

Outro evento que contou com o apoio da pasta foi a etapa regional das Paralimpíadas Escolares, que fomentou a inclusão e o progresso dos jovens atletas com deficiência, reunindo a participação de mais de 900 competidores. Os jogos ocorreram entre os dias 31 de agosto e 1º de setembro.

Outras competições paradesportivas também foram apoiadas pela SEL, como o Brasileiro de Adestramento Paraequestre, Centro-oeste de Handebol de Surdos e o Campeonato Regional de Goalball.

*Com informações da Secretaria de Esporte e Lazer do Distrito Federal (SEL-DF)

 

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Poeta vencedora do Prêmio Jabuti transita do slam à literatura grega

Autora voltou à Estação Guilhermina para lançamento de seu livro

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Foi na praça ao lado da Estação Guilhermina do Metrô, na zona norte paulistana, que Luiza Romão começou a declamar versos em público. Ali, acontece desde 2012, toda última sexta-feira do mês, a batalha de rimas conhecida como Slam da Guilhermina. Agora, dez anos depois desse encontro com a poesia falada, a autora retornou ao espaço para fazer um dos eventos de lançamento de Também Guardamos Pedras Aqui, seu livro que venceu o último Prêmio Jabuti.

“Quase pedir a benção”, resume a poeta sobre os sentimentos sobre esse momento que ela enxerga como o fechamento de um ciclo. “Acho que é bastante significativo, fazer isso bem antes de ganhar o mundo, assim, sabe? Antes de ir pro mundão”, comenta a respeito da turnê que se aproxima nos próximos dias. Até janeiro de 2024, a previsão é que Luiza tenha passado pela França, Argentina, México e Alemanha para divulgar o livro premiado, que já tem prontas traduções para o francês e espanhol.

Formada em artes cênicas, Luiza se aproximou da poesia atraída pelo modelo performático do slam, que começou a frequentar em 2013. As batalhas de rimas foram criadas por Marc Smith, nos Estados Unidos, na década de 1980. As competições, que atualmente acontecem em diversas partes do mundo, começaram, segundo a autora, como uma forma de tornar a leitura de poesia mais atraente nos saraus. “Em geral, em noites de cabaré, quando músico ia se apresentar, todo mundo prestava atenção. Quando ia uma pessoa do stand up, todo mundo prestava atenção. Na hora que o poeta ia declamar, era o momento que geral ia no banheiro, comprar cerveja, acender cigarro”, conta.

A performance da poesia falada, que compõe a cena cultural das periferias paulistanas, acabou atraindo Luiza, que tinha vindo em 2010 para a cidade, para estudar na Universidade de São Paulo. “Não estava no meu horizonte de vida virar poeta. Foi através do encontro com as batalhas de slam, com os microfones abertos, com o movimento saraus, que eu comecei a escrever”, lembra.

Uma estética que se relaciona com as temáticas que atravessam a juventude, especialmente a que vive fora dos bairros mais privilegiados. “Uma poesia muito engajada. Uma poesia que pensa o seu tempo histórico, que é fundamentada na dimensão coletiva da palavra. Toda essa partilha da performance”, enumera sobre as razões que a aproximaram dos versos e das rimas.

Atualmente com 31 anos, Luiza tem quatro livros publicados. O Também Guardamos Pedras Aqui é diretamente inspirado no épico grego Ilíada, de autoria atribuída a Homero, que retrata a conquista de Troia.

Veja os principais trechos da entrevista com a autora:

Vamos começar falando um pouco do livro Também Guardamos Pedras Aqui. Queria entender um pouco por que essa opção pela poesia grega e também o que isso significa na sua trajetória.

Eu sou formada em teatro. Tem algo que, de certa forma, eu discuto no livro, talvez de uma maneira não tão direta, que é essa obsessão nossa pelos gregos, que não diz respeito só a mim, Luiza, mas a nossa sociedade que passou por esse processo brutal de colonização e que ainda hoje continua referenciando de maneira tão intensa nos currículos escolares, nas produções culturais, esse imaginário cânone greco-latino. Então, na faculdade de artes cênicas, por exemplo, eu estudei dois anos de Grécia antiga.

Isso é algo que também se verifica nos cursos de letras e em muitos outros cursos. Você estuda tragédia grega. Você estuda comédia grega. Você estuda poética de Aristóteles, O Banquete do Platão. Uma tradição que é tão distante a nós. E, muitas vezes, a gente acaba não olhando para outras tradições e cosmovisões que estão mais próximas. As diferentes tradições latino-americanas andinas, maias e tudo mais ou as tradições africanas.

Quando eu termino [o curso universitário] eu vou fazer EAD, que a escola de artes dramáticas da USP, eu tenho que retomar essa galera [os gregos]. Eu estava lá, lendo pela segunda vez a mesma tradição, e faltava a Ilíada.

Então, eu estava indo viajar, fazer um mochilão pela Bolívia e pelo Chile. Eu falei: ‘Ah, vou pegar a Ilíada. Por que não? [risos]. É pesado, mas, pelo menos, é um volume só’. Meu irmão, Caetano, tinha uma edição que era leve, de papel bem fininho.

Foi onde eu li e fiquei muito chocada. Eu costumo dizer que o Pedras nasce um pouco desse horror a essa narrativa fundante da tradição ocidental, que é narrativa muito violenta. Eu sabia que era a história de uma guerra, que é como é contada, né? Mas, na verdade, não é a história de uma guerra, é a história de um massacre.

O que diferencia uma guerra de um massacre?

A guerra é quando, minimamente, você tem pé de igualdade. Você tem possibilidades reais dos dois lados ganharem. É algo que vai ser disputado na batalha. E, quando você lê a Ilíada, você vê que os troianos nunca tiveram chance de ganhar, porque os deuses eram gregos. Acho que foi a maior indignação para mim, porque isso eu não sabia antes de ler. Mas você tem o tempo inteiro a batalha acontecendo no campo terreno, entre gregos e troianos, e uma batalha acontecendo no plano divino, digamos assim, no Olimpo. Então, você tem os deuses que são pró-troianos e os deuses que são pró-gregos. E tem um momento que tem uma treta gigante, e Zeus [deus do trovão e líder do panteão grego] fala: ‘ninguém intervém na guerra, nenhum dos deuses’. E aí os troianos passam a ganhar a guerra.

Só que aí tem uma coisa que é muito doida, porque a gente tem essa ideia de perfeição atrelada à divindade, no catolicismo. No panteão dos gregos, na mitologia grega, são deuses que estupram, que têm inveja, que trapaceiam. Hera [esposa de Zeus] faz uma trapaça com Zeus. Ela vai até o fundo do oceano, pega um sonífero e Zeus dorme. Aí, ela e Atena [deusa associada a sabedoria] voltam para a guerra, quebram o pacto.

Os deuses são trapaceiros e Ulisses [herói grego] é trapaceiro também, porque é uma trapaça o que ele faz com cavalo. Não é fair play [jogo justo]. Eu acho que tem essa dimensão do massacre. Além de toda a devastação de um povo, das inúmeras formas de aniquilação, de tortura de subjugação, de estupro, de violência que estão no livro, tem isso de que é impossível esse povo ganhar. [Por orientação de Ulisses, os gregos fingem se retirar do campo de batalha e oferecem um cavalo gigante de madeira como presente aos troianos. Porém, uma parte dos soldados gregos se esconde dentro da escultura para, durante a noite, abrir os portões da cidade e provocar a derrota de Troia.]

No poema Homero, você diz que os gregos “foram capazes de” e traz uma lista, que seria de atrocidades, mas que está coberta por uma tarja preta, de censura, para em seguida dizer que, apesar desses horrores, eles, ao menos devolveram o corpo de Heitor, príncipe de Troia, ao contrário do que se fez, muitas vezes na ditadura militar brasileira. Você quer dizer que vivemos horrores maiores do que os troianos?

Isso tem muito a ver com dimensão quase que performativa da minha leitura. Eu estava lendo nessa viagem e passei pelo local onde Che Guevara [guerrilheiro que participou da revolução cubana] foi assassinado, no interior da Bolívia. Inclusive, tinha uma menina lá [parte do grupo], que era Tânia. Eles estavam tentando articular uma revolução comunista no coração da América Latina. A ideia seria sair do coração da Bolívia e se espalhar pelo continente inteiro. Eles são delatados, passam por uma emboscada e são assassinados.

O Che Guevara morre. A cabeça dele fica exposta em uma dessas vilas e o corpo fica desaparecido, por medo de que o local em que ele estivesse enterrado virasse um mausoléu de peregrinação comunista, um lugar de memória. O corpo dele só é encontrado 30 anos depois. Um dos militares disse que ele estava enterrado numa pista de pouso militar. Hoje você tem um museu do Che Guevara nesse local.

Eu queria aprofundar um pouco o uso desse recurso da censura, que aparece em outras partes do livro.

Eu acho que essa questão da censura ou do apagamento de arquivos é algo que também está muito presente quando a gente fala dessa história, dessa imposição de uma história única, dessa construção de um relato produzido pelo poder. Então, desses arquivos que são censurados, apagados e tudo mais.

Também, de certa forma propõe esse jogo com os leitores, da mesma forma que eu estou tentando reconstituir uma história que é muito apagada, vamos tentar reconstituir juntos. Talvez seja exercício imaginativo nosso também.

Você disse que Ulisses não jogava no fair play [jogo justo]. Tem um texto em que parece que você fala disso, invertendo a condição de herói e vilão, no poema Polifemo [gigante de um olho só que comia pessoas]. “Ninguém te cegou não/ não foi Ulisses/ aquela noite o policial não tinha identificação”

Ulisses, para mim, é um personagem que a gente, enquanto ocidente, vai emular como a inteligência. Primeiro, tudo que a gente sabe das viagens dele [narradas na Odisseia], é ele o que conta. Ou seja, ele pode estar mentindo, ele pode ter inventado tudo. Para mim, é um narrador nada confiável. Principalmente, porque do que a gente sabe, sim, de dados dele, é o personagem que faz o Cavalo de Tróia, que ganha na trapaça.

Então, Polifemo estava lá e, de repente, chegam esses homens, se metem [nos domínios dele] e ainda o cegam. E tem essa que a grande sabedoria do Ulisses é falar: “Eu não sou ninguém”. Então, Polifemo começa a gritar [após ter o olho furado]: “ninguém me cegou”.

Isso também foi uma chave de leitura para o caso do Sergio Silva [fotógrafo que perdeu o olho nas manifestações de 2013] e de vários e várias manifestantes que foram baleados com bala de borracha nos últimos anos, seja no Brasil, seja no Chile, onde a gente teve de fato uma forma sistemática da polícia de dilacerar o globo ocular de muitas pessoas.

E que ninguém cegou essas pessoas. É a mesma situação bastante recorrente quando a gente fala das ações das polícias militares, seja pelo não uso de identificação, seja porque cada vez mais são policiais que estão com balaclava ou com capacete.

Você fala em diversos momentos sobre violência (policial, contra a mulher), que é uma temática muito recorrente nos slams. Como o movimento dos slams atravessa a sua trajetória?

Minha trajetória é completamente atravessada pelo slam. Eu vim do teatro, sou das artes cênicas. Não estava no meu horizonte de vida virar poeta. Foi através do encontro com as batalhas de slam, com os microfones abertos, com o movimento saraus, que eu começo a escrever. Principalmente, por ser uma poesia muito engajada. Uma poesia que pensa o seu tempo histórico, que é fundamentada na dimensão coletiva da palavra. Toda essa partilha da performance é uma forma poética também de encarar esses temas.

slam não dissocia política e poética. É óbvio que é indissociável. Mas tem alguns lugares que se tem ilusões que é possível dissociar disso. Então, eu começo a frequentar em 2013 e continuo, não mais como slammer. Já aposentei as chuteiras faz um tempo. Mas, de vez em quando, fazendo a parte de produção. Fui fazer um mestrado sobre isso.

Em que momento você se aposentou do slam?

Como slammer, é muito normal a gente ter ondas, né? É tipo jogador de futebol, a carreira é curta. A gente vai lá, batalha uma, batalha outra, brinca durante dois ou três anos. É muito normal. Assim, você tem uma renovação da cena muito constante. Então, eu comecei a frequentar em 2013, já tinha tido uma onda antes de mim. Eu sou dessa segunda geração e já estão na sexta geração, agora.

Então, eu fui fazer outras paradas em termos de artista, de criação artística. Mas, ao mesmo tempo, é um lugar que eu gosto muito de estar. Eu continuo frequentando muito nesses últimos anos.

De alguma forma, tentei elaborar bastante a reflexão sobre a cena na dissertação. Acho que é uma forma de agradecer também esses anos todos de trajetória. É um trabalho que é a primeira parte é bastante dedicada a pensar historiografia do slam nos Estados Unidos. Eu traduzi muita coisa que não está disponível em português.

Também analiso quatro poemas da Luz Ribeiro, de Pieta Poeta, do Beto Bellinati e da Ana Roxo. Pensando como que essas questões todas vão para o corpo do poema. Porque, muitas vezes, quando a gente fala de slam, a gente só faz uma abordagem antropológica ou socializante, sendo que a gente está falando de poesia. E eu acho que ler esses poemas também na sua potência estética, o que eles têm de disruptivo, no que eles propõem de linguagem, no que eles contestam em toda uma tradição literária brasileira, isso é muito potente também.

São Paulo SP 29/09/2023 Luiza Romão vencedora do Prêmio Jabuti  2022.  Foto Paulo Pinto/Agência Brasil
São Paulo SP 29/09/2023 Luiza Romão vencedora do Prêmio Jabuti 2022. Foto Paulo Pinto/Agência Brasil – Paulo Pinto/Agência Brasil

 

Edição: Sabrina Craide

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