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CAVALOS-MARINHOS
REVISITANDO O PROJETO HIPPOCAMPUS

A beleza e o fascínio dos cavalos-marinhos, uma espécie em extinção.
Marcelo Vidal: “As interações turísticas com a fauna silvestre, quando ordenadas, regulamentadas e monitoradas, têm o potencial de auxiliar na conservação das espécies, satisfazer as expectativas do visitante e promover a geração de renda nas comunidades receptoras”.
Eles são peixes que nadam em vertical. A cabeça pode ser semelhante a um cavalo, mas cada cavalo-marinho, mesmo de uma mesma espécie, tem aparência própria. Dizem os estudos que são mais de 45 espécies habitando as águas costeiras do Planeta. O cavalo-marinho tem cores diferentes e elas variam de acordo com a sua bagagem genética e a influência do ambiente para a camuflagem. Eles não têm escamas, mas placas ósseas cobertas de tecidos cutâneos. São lindos, místicos e lendários. Vamos conhecer mais sobre os cavalos-marinhos e revisitar o Projeto Hippocampus, hoje Instituto Hippocampus, que tem a sede, desde 2020, no Porto de Suape a 40 km de Recife-PE.
ROSANA BEATRIZ SILVEIRA – ENTREVISTA
A bióloga Rosana Beatriz Silveira, Coordenadora do Projeto Hippocampus, fala sobre as espécies de cavalos-marinhos, explica as pesquisas e o monitoramento em estuários, onde se verifica a ocorrência de espécies e o estado de conservação na Costa Brasileira.
FOLHA DO MEIO – O que são cavalos-marinhos e onde ocorrem. Quantas espécies existem no Brasil?
Rosana Silveira – Os cavalos-marinhos são peixes de osso (literalmente: possuem uma armadura de placas ósseas que revestem todo o seu corpo). Estão globalmente ameaçados de extinção. No Brasil existem 3 espécies: Hippocampus reidi, o cavalo-marinho do focinho longo. Hippocampus patagonicus, o do focinho curto. Hippocampus erectus, o cavalo-marinho raiado, que tem um tamanho de focinho intermediário entre as outras duas espécies. Todas as três espécies ocorrem no mar, porém H. reidi habita também, estuários e manguezais. Temos H. reidi e H. erectus com registros em toda costa do Brasil, sendo que H. patagonicus é restrito às regiões sudeste e sul do Brasil.
FMA – O que é “passeio do cavalo-marinho”?
Rosana – O “passeio do cavalo-marinho” é uma atividade turística que envolve interação com os cavalos-marinhos (Hippocampus reidi) durante um passeio realizado de jangada ou canoa pelos manguezais, onde o animal é capturado e colocado em vidros para observação e registro de imagens. Após a observação, o animal é solto no mesmo local onde foi capturado. Existem três locais principais onde tradicionalmente isto acontece: manguezal de Maracaípe, PE. No manguezal de Barra Grande, PI e em Mangue Seco, e na praia de Jericoacoara, Ceará. Os dois últimos, dentro de áreas protegidas federais, que são a APA Delta do Parnaíba e Parque Nacional de Jericoacoara, respectivamente. Em Maracaípe, as atividades ocorrem dentro de uma unidade de conservação estadual, a APA dos Rios Sirinhaém e Maracaípe.
FMA – A captura dos cavalos-marinhos durante os passeios turísticos afeta a espécie?
Rosana – Infelizmente sim. Nós trabalhamos monitorando as populações envolvidas nas interações turísticas por longos anos. Desde 2001 a 2021 em Maracaípe, Pernanbuco. De 2011 a 2015 em Jericoacoara, no Ceará. E de 2014 a 2015 no Delta do Parnaíba. Embora, e com certeza, esta não seja a única pressão sofrida pelos cavalos-marinhos, sem dúvida ela impactou na dinâmica populacional da espécie. Nossos resultados mostraram que no Parque Nacional de Jericoacoara houve significativa redução da população de cavalos-marinhos expostas às atividades turísticas. Este foi o primeiro estudo a identificar essas fragilidades e, serviu de apoio à decisão da gestão do Parque Nacional de Jericoacoara de proibir, desde 2023, a captura dos animais durante o passeio turístico. Na APA Delta do Parnaíba, além da diminuição populacional, houve grande desestruturação da população, aliás o que não ocorreu em Jericoacoara. A gestão da APA está consciente da questão e decidiu por um período de transição para que os canoeiros possam se adaptar à nova situação de não captura. Detalhes deste trabalho podem ser lidos em Silveira et al. (2022b). Em Maracaípe, a situação é a mais delicada de todas. A população desses animais estaria criticamente ameaçada, pois há muitos anos são emitidos relatórios e notas técnicas ao Município que, aliás ajudou a financiar a pesquisa de monitoramento. Mas não houve nenhuma ação para a conservação da espécie. No momento, estamos publicando os 20 anos de monitoramento dessa população.
FMA – Quando sai a publicação e qual a principal mensagem que ela traz?
Rosana – Nossa perspectiva é para este semestre. A publicação mostra a importância dos monitoramentos de longo tempo e a necessidade de ordenamento e fiscalização das atividades que envolvem interação coma fauna silvestre. E que a conservação dos cavalos-marinhos não implica em negligenciar as atividades de subsistência dos jangadeiros, existe um equilíbrio, como mostrado em Jericoacara.
“Passeio do cavalo-marinho” no Parque nacional de Jericoacoara. Foto: Marcelo Vidal
FMA – Pelo jeito, então, os trabalhos nos “passeios de cavalo-marinho” vão acabar…
Rosana – Não, não! Longe disso. Os passeios são totalmente sustentáveis, preparados com muito cuidado e tem um valor educacional imenso. Pelos passeios nossa equipe ajuda a conscientizar crianças e adultos. São muito importantes. Atualmente seguimos colaborando no projeto “Pesquisa e manejo do turismo interativo com cavalos-marinhos no litoral nordeste brasileiro” coordenado pelo analista ambiental Marcelo Vidal do CNPT/ICMBio e inserida no Plano Estratégico de Pesquisa e Gestão da Informação sobre Biodiversidade (PEP-ICMBio/2023) ou em Plano Específico de Pesquisa de Unidade de Conservação. Marcelo Derzi Vidal, doutor em Biodiversidade e Conservação, ministra palestra sobre “Turismo com fauna em Unidades de Conservação para estudantes de programa de Pós-graduação em Ecoturismo e Conservação em universidades, escolas públicas e eventos turísticos. Ele sempre diz que as interações turísticas com a fauna silvestre, quando ordenadas, regulamentadas e monitoradas, têm o potencial de auxiliar na conservação das espécies, satisfazer as expectativas do visitante e promover a geração de renda nas comunidades receptoras.
FMA – Tem um artigo científico sobre a pesca incidental de arrasto que ocorre sobre os cavalos-marinhos no estado do Rio de Janeiro. Mostra a gravidade da pesca. O que você pode falar sobre isso?
Rosana – Olha, é um estudo muito importante. A pesquisa de campo foi realizada entre 2016 e 2018 em toda a costa do Rio de Janeiro. Este estudo teve a colaboração efetiva de 10 pescadores em cinco portos, o de Angra dos Reis, Niterói, São Gonçalo, Cabo Frio e Macaé. O estudo mostra que foram coletados dados e materiais importantíssimos. Os pescadores, além de coletar os cavalos-marinhos presos nas redes, preenchiam o mapa de bordo, feito especialmente para os cavalos-marinhos, onde era possível obter informações de extensão e profundidade de ocorrência dos animais e quais espécies estavam envolvidas nesta retirada incidental. Muitos cavalos-marinhos já chegavam mortos pela pressão sofrida nas redes, seus órgãos eram evertidos para fora do corpo, outros morriam asfixiados. O estudo é base para muitos de nossos trabalhos. Um verdadeiro alerta!
Esquerda: Hippocampus patagonicus com seus órgãos evertidos pela pressão sofrida nas redes de arrasto (seta vermelha). Direita: Macho grávido morto com a bolsa incubadora aberta mostrando os embriões também mortos. Somente na amostra deste estudo, estimou-se mais de 81 mil embriões perdidos.
FMA – E que espécies seriam estas, elas são muito capturadas pelas redes de arrasto?
Rosana – Sim, basicamente estamos falando de uma espécie capturada, Hippocampus patagonicus. Foram 2.041 indivíduos coletados nas redes de arrasto e apenas 6 indivíduos de H. reidi durante todo o período de estudo. Nenhum H. erectus, a terceira espécie brasileira, foi capturado. Com base nesta amostra e considerando o tamanho da frota pesqueira de arrasto que atua nas regiões sudeste e sul do Brasil, estimamos que mais de 2 milhões de H. patagonicus são retirados anualmente por essa prática. Sem contar que muitos são machos grávidos podendo-se considerar a perda de milhares e milhares de embriões que não vão nascer para compor o estoque natural. Esta espécie, que tem preferência por profundidades entre 40 e 60 m, e cuja única área brasileira de ocorrência é justamente as regiões piscosas do sudeste e sul. A região necessita de mais proteção e as áreas protegidas marinhas ainda são raras no sul do Brasil. Há necessidade de atender melhor essas espécies, pois as UCs que existem no RS não abrangem a área de ocorrência de H. patagonicus. Detalhes deste trabalho podem lidos em Silveira et al. (2023).
FMA – Você sempre cita ‘Silveira et al’. Quem é este tal de Silveira?
Rosana – Desculpe, é a forma resumida que se convencionou citar em textos científicos sobre os trabalhos já realizados: é o sobrenome do primeiro autor seguido de “et al.” (abreviação em latim que significa “e outros”) que são os coautores ou colaboradores. No caso, este tal Silveira é meu sobrenome e o “et al.” são os vários companheiros de pesquisa com quem trabalhei nas respectivas publicações, cujos nomes completos e afiliações podem ser conferidos nas mesmas.
FMA – Conte-nos sobre o trabalho atualmente realizado pelo Instituto Hippocampus em Pernambuco.
Rosana – Nosso trabalho está realizando o monitoramento em estuários e verificando a ocorrência de espécies e o estado de conservação delas nestes locais. Nosso resultado mais recente publicado (Silveira et al. 2024), aborda cavalos-marinhos em área impactadas por catástrofes ambientais, como o derrame de petróleo ocorrido em 2019 na costa brasileira. Avaliamos duas populações de locais próximos: a ilha de Cocaia e o estuário do rio Massangana, ambas dentro da área portuária de Suape, onde atualmente mantemos nossa sede. O derrame de petróleo de 2019 que tem origem desconhecida, afetou fortemente a costa brasileira, do nordeste ao sudeste, porém somente o estado de Pernambuco recebeu 30% de todo petróleo vazado, sendo Ipojuca e o Cabo de Santo Agostinho, dos municípios mais afetados e onde se desenvolveu este trabalho. Na ilha de Cocaia, exposta diretamente ao mar e altamente impactada pelo petróleo, os cavalos-marinhos coletados deram origem às proles malformadas, enquanto em Massangana, ponto mais interno do Porto e aparentemente saudável, não se observou as malformações. Este foi o primeiro registro de malformações em cavalos-marinhos oriundas de contaminantes ambientais em todo o mundo. Foi muito importante observar que os cavalos-marinhos adultos que foram coletados nestes manguezais eram perfeitos, de aparência saldável e muito bonitos. Jamais saberíamos que a população estava impactada se não tivéssemos levados os machos grávidos ao laboratório para estimar a fertilidade natural. Enquanto continuamos o trabalho, estamos sugerindo estes resultados como uma nova metodologia acurada de monitoramento ambiental.
As figuras A e B são recém-nascido e embrião com morfologia normal. As demais são todos malformados. Entre as principais malformações podemos identificar a escoliose severa, onde o peixe tem sua cauda voltada para trás e para cima, o que impede sua natação, promovendo sua morte, mesmo na ausência de outras malformações. Muito comum também, o focinho e crânio alterados, o formato dos olhos alterado e, frequentemente a falta deles, entre muitas outras anomalias.
Locais de coleta de H. reidi: Ilha de Cocaia (área afetada) e estuário do Rio Massangana (área aparentemente saudável). Informações sobre a extensão do litoral impactado e quantidade (t) de óleo derramado adaptadas de Magalhães et al. (2021). A e B, detalhes do derrame na Ilha de CocaiaM (Fotos governo de Pernambuco).
FMA – Em 2004, eu estive em Ipojuca, mais precisamente e Porto de Galinhas, e fiz uma matéria sobre o Projeto Hippocampus. Lá se vão 20 anos. O que mudou?
Rosana – Muita coisa aconteceu neste período. De lá para cá tivemos muitas parcerias fundamentais para o crescimento do Projeto Hippocampus, como a Refinaria Abreu & Lima (PE) de 2008 a 2013 (foram três convênios); a Petrobras Socioambiental de 2014 a 2016 (um patrocínio); Funbio de 2016 a 2018 (um convênio); Município do Ipojuca (três convênios em várias ocasiões). Desde 2020, quando tivemos que fechar a sede de visitação e entregar a casa por conta da covid-19, estamos com sede temporária no Porto de Suape que numa ação voluntária, conhecendo nossa trajetória, acolheu nossos laboratórios na área do complexo portuário e tem prestado apoio aos nossos trabalhos desde então. Atualmente contamos com novos parceiros, como a TECON, a DISLUB e o escritório de Morais Amaral Arquitetura.
SAIBA MAIS
BOX 1
O QUE É O PROJETO HIPPOCAMPUS?
O Projeto Hippocampus, desenvolvido pelo Instituto Hippocampus, existe desde 1994, oriundo do Rio Grande do Sul. O Projeto pesquisa a biologia dos cavalos-marinhos brasileiros em laboratório e em ambientes naturais em apoio aos programas de manejo e conservação para as espécies. Em março de 2001, esse Projeto foi transferido para o município de Ipojuca, em Pernambuco, onde teve sede em Porto de Galinhas até 2020. Desde julho de 2020, o Instituto Hippocampus está sediado no Porto de Suape, próximo a Recife, e é mantido por meio de doações e parcerias. O Porto de Suape cedeu um espaço no Centro de Treinamento (Cetreino) para que o Instituto mantenha suas atividades de pesquisa de campo e laboratório. O Instituto Hippocampus conta a parceria de pesquisadores em várias universidades e áreas do conhecimento.
CURIOSIDADES SOBRE CAVALO-MARINHO
O nome do gênero dos cavalos-marinhos Hippocampus significa, em grego, “monstro marinho semelhante a um cavalo” ou, segundo outra tradução, “lagarta semelhante a um cavalo”.
O hipocampo no cérebro humano leva o nome do cavalo-marinho (gênero Hippocampus) devido a seu formato semelhante ao peixe.
A bolsa incubadora de um cavalo-marinho macho pode conter simultaneamente mais de mil embriões.
Durante o desenvolvimento dos filhotes na bolsa do cavalo-marinho macho, ele os nutre através de uma falsa placenta, um epitélio altamente vascularizado que passa aos embriões cálcio para formação do esqueleto, vitaminas e fatores de crescimento, assim como regula a concentração salina dentro da bolsa evitando choque osmótico aos embriões enquanto o macho move-se entre salinidades distintas. Também protege a prole de choques mecânicos.
MANUAL de PROTEÇÃO
Três lembretes importantes para quem quiser ajudar na preservação dos cavalos-marinhos:
1 – Não comercialize, não compre e não use cavalos-marinhos como remédio e como decoração, pelo menos até que este animal sai da lista de espécies em extinção.
2 – Cuide das águas estuarinas, dos manques e da água do mar. Eles precisam de muita qualidade de água para sobreviverem, assim como nós.
3 – Não retire estes animais de seus habitats e denuncie o uso ilegal ao IBAMA, ICMBio e MPF.
DESMISTIFICANDO
Não existe nenhuma comprovação científica, mas a cultura popular diz que os cavalos-marinhos são afrodisíacos, bons para saúde humana, para curar unha encravada, câncer e muitas outras doenças. E é aí que está o perigo, porque atraídos por estas fantasias farmacêuticas e pela fama de curadores, os cavalos-marinhos são caçados aos montes e vendidos como peças secas nos mercados pesqueiros por míseros R$ 10,00. Chegam a estar ameaçados de extinção. Evidente que além do comércio para remédios e simpatias, têm um outro comércio forte: peixes ornamentais para aquários. No exterior existem empresas fazendo o cultivo de cavalos-marinhos para venda como peixes ornamentais.
MAIS INFORMAÇÕES: o Projeto tem apoio socioambiental do Complexo Industrial Portuário de Suape, Tecon, Dislub e Morais Amaral Arquitetura. Os artigos científicos referentes aos trabalhos citados nesta matéria podem ser baixados do site: www.projetohippocampus.org ou solicitados pelo e-mail: labaquac@yahoo.com – @projetohippocampus
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A VOLTA DE JEAN DE LÉRY PARA A FRANÇA
O naturalista que entrou de gaiato no navio, veio para o Rio de Janeiro e deixou um relato precioso do Brasil de 1557. Sua volta para a França coincidiu com o fim da colônia francesa no Brasil.

Naturalistas Viajantes – JEAN DE LÉRY (Parte 16)
“Uma vez em terra, caminhei ao longo da Avenida Rio Branco,
onde uma vez existiram as aldeias tupinambás;
no meu bolso havia aquele breviário do antropólogo, Jean de Léry.
Ele chegou ao Rio 378 anos antes, quase no mesmo dia”.
Claude Lévi-Strauss em ‘Tristes Trópicos’, ao chegar ao Rio de Janeiro em 1934.
A volta de Jean de Léry para a França também marca o fim da colônia francesa no Brasil. Após a expulsão dos franceses da Guanabara, os padres jesuítas José de Anchieta e Manuel da Nóbrega teriam instigado o Governador-Geral Mem de Sá a prender Jacques Le Balleur, e a condená-lo à morte por professar “heresias protestantes”. Quanto à viagem de volta, Jean de Léry conta em detalhes como, por milagre, se salvou de uma grande tempestade em alto mar.
Lévi-Strauss assim se refere a Léry: “A leitura de Léry me ajuda a escapar de meu século, a retomar contato com o que eu chamaria de ‘sobre-realidade’, não aquele de que falam os surrealistas, mas uma realidade ainda mais real do que aquela que testemunhei. Léry viu coisas que não têm preço, porque era a primeira vez que eram vistas e porque foi a mais de quatrocentos anos”.
O FIM DA COLÔNIA FRANCESA NO BRASIL
Após a expulsão dos franceses da Guanabara, os padres jesuítas José de Anchieta e Manuel da Nóbrega teriam instigado o Governador-Geral Mem de Sá a prender Jacques Le Balleur, e a condená-lo à morte por professar “heresias protestantes”. O jornalista e historiador paranaense José Francisco da Rocha Pombo (1857-1933), em sua ‘História do Brasil’ publicada em 1935, recupera parte da história dos religiosos franceses: “Jacques Le Balleur foi poupado, pois era ferreiro. Isto praticamente marcou o fim da colônia francesa, e encerrou a tragédia da Guanabara”.
Em nota de rodapé, explica: “Após conseguir viver escondido, Jacques Le Balleur foi preso pelos portugueses nas cercanias de Bertioga. Ele foi enviado para Salvador, na Bahia, que era a sede do governo colonial, onde foi julgado pelo crime de “invasão” e “heresia”, isso em 1559. Em abril de 1567, foi queimado, sendo auxiliar do carrasco José de Anchieta, para consternação dos católicos”.
A VIAGEM DE VOLTA E SALVOS POR MILAGRE
“Prosseguindo na narração dos extremos perigos de que Deus nos livrou no mar, durante o nosso regresso, contarei um deles, proveniente de uma disputa surgida entre o nosso contramestre e o nosso piloto, em virtude da qual, por despeito, nenhum deles desempenhou desde então os deveres do cargo. A 26 de março, fazendo o piloto o seu quarto, conservou abertas todas as velas sem perceber a aproximação de um furacão que se preparava e que desabou com tal ímpeto que adernou o navio a ponto de mergulharem os cestos de gávea e a ponta dos mastros no mar, atirando à água cabos, gaiolas e todos os objetos que não estavam bem amarrados, pouco faltando para que virássemos completamente. Todavia, cortadas com rapidez as enxárcias e escotas da vela grande, aprumou-se o navio pouco a pouco. Pode-se dizer que só por um milagre nos salvamos, mas nem por isso concordaram os causadores do mal em reconciliar-se, não obstante os rogos de todos; muito ao contrário, apenas passado o perigo engalfinharam-se e com tal fúria se bateram que julgamos se matassem na luta.
‘ESTAMOS PERDIDOS, ESTAMOS PERDIDOS’
Por outro perigo passamos dias depois. Estando o mar calmo, pensaram o carpinteiro e outros marinheiros em aliviar-nos do trabalho de bombear, procurando tapar melhor as fendas por onde entrava a água. Aconteceu que mexendo em um deles para consertá-lo, despregou-se uma peça de madeira de quase um pé quadrado e a água entrou com tal abundância e rapidez que forçou os marinheiros a subirem para o convés abandonando o carpinteiro. E sem sequer contar-nos o fato, berravam: ‘Estamos perdidos, estamos perdidos’.
Diante disso, o capitão, o mestre e o piloto trataram de pôr ao mar a toda a pressa o escaler, mandando também lançar à água os toldos do navio, grande quantidade de pau-brasil e outras mercadorias num valor total de mil francos, decididos a abandonar a embarcação e a salvar-se no bote. Mas temendo o piloto que o grande número de pessoas que tentavam embarcar tornasse a carga excessiva, saltou do bote com um cutelo na mão, ameaçando romper os braços do primeiro que tentasse entrar.
Vendo-nos assim desamparados à mercê das ondas, lembramo-nos do primeiro naufrágio de que Deus nos livrara e, resolvidos a lutar pela vida, empregamos todas as nossas forças em bombear a água a fim de que o navio não afundasse; e tanto trabalhamos que o conseguimos. Nem todos, porém se mostraram corajosos. Os marinheiros, em sua maioria, estavam desatinados e tão temerosos se mostravam da morte que já não se importavam com coisa alguma a não ser em beber à farta. Estou certo de que os rabelesianos, escarnecedores e desprezadores de Deus, que em terra tagarelam sentados à mesa e comentam com motejos os naufrágios e perigos em que se encontram muitas vezes os navegantes, teriam seus gracejos mudados em pavor se nesta situação se encontrassem. E creio também que muitos leitores desta narrativa e dos perigos por que passamos dirão com o provérbio: ‘Muito melhor é plantar couves ou ouvir discorrer do mar e dos selvagens do que tentar tais aventuras’. (…)
O nosso carpinteiro, rapaz animoso, não abandonara o porão como os marinheiros, mas enfiara o seu capote de marujo no buraco, comprimindo-o com os pés para quebrar o impulso da água, a qual, como depois nos disse, por várias vezes o desalojou, tal a sua impetuosidade. Assim nessa posição gritou ele quanto pôde para que os de cima, do convés, lhe levassem roupas, redes de algodão e outras coisas com que pudesse deter o jorro d’água enquanto consertava a peça. Graças a esse esforço fomos salvos”.
PÓLVORA E FOGO
“Como temíamos encontrar piratas nessas paragens, ao sair desse mar de ervas não só assestamos quatro ou cinco peças de artilharia que havia no navio, mas ainda preparamos as necessárias munições para nos defendermos oportunamente. Entretanto, com isso novo perigo tivemos que vencer. Quando o nosso artilheiro secava a pólvora em uma panela de ferro, esqueceu-a ao fogo até tornar-se incandescente e a pólvora se inflamou, correndo a chama de uma à outra extremidade do navio, de forma que inutilizou velas e massame e por pouco não incendiou o breu de que o navio estava untado, queimando-nos todos em pelo mar. Aliás, um grumete e dois marujos foram tão maltratados pelo fogo que um deles morreu poucos dias depois. Por minha parte, se não tivesse rapidamente levado ao rosto o boné de bordo, ter-me-ia queimado seriamente; escapei chamuscando apenas a ponta das orelhas e os cabelos”.
PRÓXIMA EDIÇÃO 376 – JULHO DE 2025 – PARTE 17.
TRÁGICA VOLTA – O erro do piloto em calcular a posição do navio “fez com que em fins de abril já estivéssemos inteiramente desfalcados de todos os víveres; já varríamos o paiol, cubículo caiado e gessado onde se guarda a bolacha nos navios, mas encontrávamos mais vermes e excrementos de ratos do que migalhas de pão. Quando havia, repartíamos às colheradas esse farelo e com ele fazíamos uma papa preta e amarga como fuligem. Os que ainda tinham bugios e
papagaios, a que ensinavam a falar, comeram-nos. E vindo a faltar por completo os víveres, em princípio de maio, dois marinheiros morreram de hidrofobia da fome, sendo sepultados no mar como de praxe”.
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