Entrevistas

Geni Alexandria

Belezas do ILUSTRANDO O CERRADO

Geni Alexandria – Entrevista


Como a veterinária Geni Alexandria prescreveu belíssimas e criativas receitas para a preservação do Cerrado


Silvestre Gorgulho


A vida profissional de Geni Alexandria começou literalmente no campo. Após concluir, em 1988, o curso de Medicina Veterinária na Universidade Federal de Goiás, Geni Alexandria embrenhou-se por terras goianas, desbravando o Cerrado para atender os produtores rurais. Assim, a jovem veterinária percorreu muitas regiões para levar sua assistência técnica: prestou orientação sobre uso de agrotóxicos, o destino de embalagens, o uso racional do solo e o valor dos recursos naturais, sobretudo das águas. Mapeou erosões e explicou como evitá-las. Também conheceu, analisou e recomendou áreas destinadas a reservas ambientais. Enfim, Geni Alexandria pesquisou o Cerrado, descobriu suas potencialidades e tomou consciência da realidade ambiental do bioma.


 Profissional dedicada, o trabalho de Geni Alexandria não parou aí. Depois das muitas incursões pelos campos e matas do Cerrado, ela passou a admirar e a respeitar ainda mais a natureza. Virou fotógrafa. Registrava em fotografia tudo de interessante que via. Tudo com uma finalidade: ilustrar a flora do Cer­rado. E veio a recompensa pelo trabalho. Um ano depois de iniciar nas ilustrações foi premiada em primeiro lugar pela Fundação Margaret Mee (1) no Concurso de Ilustração Botânica Philip Jenkins 2007 – Categoria Cores, realizado em parceria com a Sociedade Botânica do Brasil e o Jardim Botânico do Rio de Janeiro. E, agora, Geni Alexandria acaba de lançar seu primeiro livro: Ilustrando o Cerrado. O livro revela as belezas científicas das pesquisas e do trabalho desta veterinária de 46 anos, que nasceu paulista, se criou em Goiânia, mas fez do Cerrado sua referência de sonhos e de vida.


 



Capa do livro
ILUSTRANDO O CERRADO,
da pesquisadora
Geni Alexandria


 


 


 


 


Entrevista


GENI ALEXANDRIA


Veterinária, colecionadora de plantas, fotógrafa e ilustradora, Alexandria deixa o recado:”É importante estudar e ilustrar plantas que estão em risco de extinção. Este é um trabalho que exige rigor e urgência, pois é um registro histórico e científico que vai ajudar estudos no futuro”.


FOLHA DO MEIO – Antes da fotografia, compreende-se que todo botânico precisava ser um bom ilustrador. Hoje, com a evolução da fotografia, ainda é importante a ilustração?
GENI ALEXANDRIA – A ilustração é importante para dar os mínimos detalhes de uma planta. A fotografia tem seu valor, pois dá o sentido conjunto, mostra o ambiente natural. Mas com a fotografia não é possível que se obtenha nitidez de detalhes em todos os pontos da planta. O desenho científico registra de forma muito especial e detalhada tudo que se quer. Informações que dizem respeito à espécie são melhor retratadas e é possível evidenciar características que são de grande importância para sua identificação.


FMA – Como o ilustrador trabalha com uma espécie a ser ilustrada?
GA – Primeiramente o mais importante é estar em contato com o exemplar a campo, ou seja, no seu habitat natural. A observação tem que ser minuciosa para que não se deixe de perceber nenhum detalhe. A ilustração científica registra, portanto, toda informação que caracteriza a espécie. Anotações também são feitas e a coleta de matéria: folhas, flores sementes ou um galho, sempre tomando o cuidado de não prejudicar a planta e jamais arrancar o exemplar.


FMA – Após a coleta do material, como é finalizado o trabalho?
GA – Olha, a ilustração botânica exige muita dedicação, muito estudo e, sobretudo, muita paciência. E tem outro detalhe: muitas vezes o ilustrador espera meses para voltar ao mesmo local de coleta, pois tem que aguardar que a espécie esteja em outro estágio vegetativo, florescendo ou frutificando, por exemplo, para que se possa dar continuidade ao trabalho.


FMA – Você tem uma técnica especial?
GA – Evidente que cada ilustrador tem sua técnica. Eu, de minha parte, procuro trabalhar minhas ilustrações com a máxima perfeição e fidelidade. Para finalizá-los busco interagir meus sentidos com os que a natureza me transmitiu quando com as mãos senti a textura e a consistência. Tudo tem que ser informado através do desenho.


“Não sou eu que
digo: terminei! É
a ilustração que diz,
como se já
pudesse sair
do papel: estou
pronta!”



FMA – Quando considera um trabalho finalizado?
GA – Todo profissional fica feliz com a finalização de seu trabalho. Mas que mais me satisfaz é quando eu trabalho os detalhes, quando a textura se define e dá aquela vontade de tocar. Não sou eu que digo: terminei! É a ilustração que diz, como se já pudesse sair do papel: estou pronta!


FMA – Você é uma técnica muito consciente de seu trabalho. Qual a razão de tal dedicação com a natureza?
GA – Acredito que com o conhecimento passa-se a admirar e consequentemente a preservar. O plantio de variadas espécies nativas e exóticas e a ilustração de espécies nativas do cerrado, no decorrer dos anos, é produto de muito carinho e dedicação, com o intuito de contribuir para a difusão e a preservação do Cerrado. Ainda é cedo para resultados concretos, mas ainda que modestos, eles certamente vão existir para reconhecer tal dedicação.


FMA – E quando surgiu a oportunidade de mostrar esse seu trabalho em um livro?
GA – Foi quando o IPHAN na pessoa de Carlos Fernando de Moura Delphim, arquiteto e paisagista, e de Salma Saddi, superintendente regional de Goiás do IPHAN, tomou conhecimento do trabalho que eu vinha realizando. Como conhecedores deram importância e valor à qualidade do meu trabalho e me convidaram a produzir este livro.
 
E nasce uma ilustradora…


FMA – Como e por que você decidiu ir além da fotografia para a ilustração?
GA – Em 2006, iniciei um curso de ilustração em aquarela, onde aprendi a técnica dessa pintura com o mestre Tai Hsuan-an (2). Assim, eu descobri que era capaz de ilustrar. Por incentivo deste professor participei do curso. E já em 2007, fui premiada por uma das minhas produções. Isso me incentivou a dar continuidade às ilustrações, que hoje é parte principal do meu trabalho com a preservação do Cerrado.


FMA – O livro dá prestígio e visibilidade. Após sua publicação, alguma coisa muda em relação a seu trabalho? 
GA – É verdade, o trabalho passou a exigir um maior compromisso, porque minha responsabilidade com quem conhece e valoriza o trabalho aumentou muito. E tenho que dar continuidade a esse projeto, por isto estou cada vez mais empenhada.


FMA – Como foi o processo de produção do livro?
GA – Minha intenção neste livro foi apresentar um pouco do trabalho que realizo com as espécies do Cerrado. Me entreguei muito ao livro justamente porque  procurei mostrar todas as etapas do universo que envolve cada prancha, desde a coleta do material até a finalização da ilustração.
 
FMA – Quais são seus próximos projetos com a ilustração?
GA – Quando a gente começa um trabalho destes, parece não ter fim. Uma coisa puxa a outra. Como a diversidade do Cerrado é muito grande, no início me dediquei mais às palmeiras, depois passei a trabalhar por regiões, atualmente estou dando ênfase a espécies características de cerrado de altitude, assim estou ilustrando plantas de diversas localidades. O interessante é que quanto mais me aprofundo nos estudos, tanto mais sinto necessidade de orientar meu trabalho. Gosto de representar nas pranchas espécies que caracterizam certas regiões. E tem um dado fundamental: é importante estudar e ilustrar plantas que estão em risco de extinção. Este é um trabalho que exige rigor e urgência, pois é um registro histórico e científico que vai ajudar estudos no futuro.


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Cacho de Allagoptera campestris
Local de coleta: Cachoeira de Goiás – GO
 
Allagoptera campestris, (Mart.) Kuntze
Nomes populares: buri; ariri
Importância: potencial paisagístico e seus frutos são avidamente procurados pela fauna regional. Ocorrência e hábitat: solos secos e pobres dos campos e Cerrados do Centro-Oeste e parte da Região Nordeste. Sua presença é relativamente abundante, mesmo em solos degradados.
 Esta ilustração obteve o primeiro lugar na categoria Cores, no XV Concurso Philip Jenkins de Ilustrações Botânicas, realizado em 2007 pela Fundação Margareth Mee em parceria com Sociedade Botânica do Brasil.


Entrevista – GENI ALEXANDRIA


“É importante ilustrar plantas em risco de extinção”.


FMA – Como e por que você decidiu ir além da fotografia para a ilustração?
GA – Em 2006, iniciei um curso de ilustração em aquarela, onde aprendi a técnica dessa pintura com o mestre Tai Hsuan-an (2). Assim, eu descobri que era capaz de ilustrar. Por incentivo deste professor participei do curso. E já em 2007, fui premiada por uma das minhas produções. Isso me incentivou a dar continuidade às ilustrações, que hoje é parte principal do meu trabalho com a preservação do Cerrado.


FMA – O livro dá prestígio e visibilidade. Após sua publicação, alguma coisa muda em relação a seu traba­lho? 
GA – É verdade, o trabalho passou a exigir um maior compromisso, porque minha responsabilidade com quem conhece e valo­riza o trabalho aumentou muito. E tenho que dar continuidade a esse projeto, por isto estou cada vez mais empenhada.


FMA – Como foi o processo de produção do livro?
GA – Minha intenção neste livro foi apresentar um pouco do trabalho que realizo com as espécies do Cerrado. Me entreguei muito ao livro justamente porque  procurei mostrar todas as etapas do universo que envolve cada prancha, desde a coleta do material até a finalização da ilustração.
 
FMA – Quais são seus próximos projetos com a ilustração?
GA – Quando a gente começa um trabalho destes, parece não ter fim. Uma coisa puxa a outra. Como a diversidade do Cerrado é muito grande, no início me dediquei mais às palmeiras, depois passei a trabalhar por regiões, atualmente estou dando ênfase a espécies características de cerrado de altitude, assim estou ilustrando plantas de diversas localidades.
O interessante é que quanto mais me aprofundo nos estudos, tanto mais sinto necessidade de orientar meu trabalho. Gosto de representar nas pranchas espécies que caracterizam certas regiões.
E tem um dado fundamental: é importante estudar e ilustrar plantas que estão em risco de extinção. Este é um trabalho que exige rigor e urgência, pois é um registro histórico e científico que vai ajudar estudos no futuro.


 


Castiçal – Wunderlichia mirabilis
Local de coleta: Serra Dourada – Cidade
de Goiás – GO

Wunderlichia mirabilis, Riedel
& Baker
Nomes populares: castiçal; flor-do-pau
Importância: ornamental e preservação.
Ocorrência e hábitat: campos de altitude, em terrenos pedregosos (Serra Dourada e Pirenópolis).
Planta endêmica.


Esta ilustração faz parte de uma exposição em comemoração
ao centenário de Margaret Mee no Centro Cultural dos Correios – Rio de Janeiro no período de 11 de novembro a 20 de dezembro de 2009.


 


SUMMARY


ILLUSTRATING THE CERRADO


Veterinarian, Geni Alexandria prescribes a beautiful and creative cure for preserving the Cerrado


 The professional life of Geni Alexandria literally began in the field.  After graduating from the Universidade Federal de Goiás school of veterinary medicine in 1988, Geni Alexandria headed toward the lands in the state of Goiás and took on the Cerrado to work with farmers there.  In the course of her mission, the young veterinarian, traveled through a number of regions to offer her technical assistance: she provided guidance on the use of pesticides, final use/disposal of packaging, correct use of the soil and the importance of natural resources, especially water. She mapped out erosion and explained how to avoid it. She also visited, analyzed and recommended areas to be devoted to environmental preservation reserves. Geni Alexandria truly researched the Cerrado, discovered its potential and gained awareness of the biome environmental reality.


As a dedicated professional, the work of Geni Alexandria did not stop there.  After a number of incursions into the fields and woods of the Cerrado, she gained even greater admiration and respect for nature.  She became a photographer and recorded every interesting thing she saw, all for one purpose – to illustrate the plant life of the Cerrado. She has been rewarded for her work.  One year after she began the illustrations, she was awarded first place by the Fundação Margaret Mee. Geni Alexandria has also just released her first book:  “Ilustrando o Cerrado” (Illustrating the Cerrado). The book reveals the scientific beauty involved in the research and work this 46-year old veterinarian has performed.  Born in the state of São Paulo, she grew up in the city of Goiania, Goiás State, but made the Cerrado her dream and her life.


 


GENI ALEXANDRIA – Interview


 The importance of Illustration


Illustration is important to enable the smallest details to be seen of the plant.  Photography is invaluable because it gives a full picture and shows the natural environment.  However, photography cannot provide clarity of all the fine details of the points on a plant.  


 The work


Observation has to be minute so that no detail goes undetected.  Scientific illustration records therefore, all information that defines a species.  Notations are also made and the material is collected: leaves, flowers, seeds and branches, at all times taking care not to injure the plants and the specimens are never pulled out by their roots.  


 Dedication


Botanicalillustration requires a great deal of dedication and study and above all much patience.  Often the illustrator waits months to return to the same collection locale, because you have to wait until the species is in another stage of growth, flowering or bearing fruit.


 Awareness from illustration


Native species illustrations of the cerrado, over the years, are the product of much caring and dedication, for the purpose of contributing toward the discovery and preservation of it.


 An illustrator is born…


In 2006, I took up illustration in watercolors, where I learned this painting technique with the master, Tai Hsuan-an. That was when I learned I had a knack for illustration.  I took part in the course and by 2007 I had already won an award for one of my productions.  This encouraged me to continue with illustration.


 Book production


My intention for this book was to present a little of the work that I do with the Cerrado plant species. I gave myself over to the book because I was seeking to present all the stages of the universe that involves my work, ranging from the collection of material until the final illustration


When we take on an effort such as this, there seems to be no end in sight.  One thing leads to another. Since the diversity of the Cerrado is so immense, in the beginning I devoted my work more toward palm trees, afterword I began working by region and currently I have stressed species that are characteristic of the high altitude cerrado, thereby illustrating plants from a range of locations.


 


 



 

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Entrevistas

Kátia Queiroz Fenyves fala a respeito de sustentabilidade e meio ambiente

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Kátia Fenyves é Mestre em Políticas Públicas e Governança pela Sciences Po Paris e formada em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo. Ao longo de sua trajetória profissional, acumulou experiências em cooperação internacional para o desenvolvimento sustentável no terceiro setor e na filantropia. Atualmente é Gerente do Programa de Finanças Verdes da Missão Diplomática do Reino Unido no Brasil.

 

1. Você estudou e tem trabalhado com a questão de sustentabilidade e o meio ambiente. Pode nos falar um pouco a respeito desses temas?
Meio ambiente é um tema basilar. Toda a vida do planeta depende de seu equilíbrio. A economia, da mesma forma, só se sustenta a partir dos recursos naturais e de como são utilizados. Sustentabilidade, portanto, foi o conceito que integrou as considerações aos aspectos ambientais, sociais e econômicos, revelando de forma mais sistêmica esta inter-relação e, sobretudo, colocando o meio ambiente como eixo estratégico do desenvolvimento, para além de seu valor intrínseco.

2. Quando se fala em sustentabilidade, pensa-se no tripé social, ambiental e econômico. Como você definiria esses princípios? Qual deles merece maior atenção, ou todos são interligados e afetam nossa qualidade de vida integralmente?
Exatamente, sustentabilidade é o conceito que revela as interligações entre os três pilares – social, ambiental e econômico e, portanto, são princípios interdependentes e insuficientes se tomados individualmente. Talvez, o ambiental seja realmente o único que escapa a isso. A natureza não depende da economia ou da sociedade para subsistir, mas, por outro lado, é impactada por ambos. Por isso, sustentabilidade é um conceito antrópico, ou seja, é uma noção que tem como referencial a presença humana no planeta.

3. Questões relacionadas à sustentabilidade, preservação do meio ambiente e consumo consciente são discutidas nas escolas e universidades?
Há entre as Diretrizes Curriculares Nacionais estabelecidas pelo Conselho Nacional de Educação, que são normas obrigatórias, as específicas para Educação Ambiental que devem ser observadas pelos sistemas de ensino e suas instituições de Educação Básica e de Educação Superior a partir da Política Nacional de Educação Ambiental. Estas contemplam todos os temas citados na pergunta. Não sou especialista na área então é mais difícil avaliar a implementação, mas em termos de marco institucional o Brasil está bem posicionado.

4. Quando se fala em preservação do meio ambiente, pensa-se também nos modelos de descarte que causam tantos danos ao meio ambiente. Existe alguma política de incentivo ao descarte consciente?
Mais uma vez, o Brasil tem um marco legal bastante consistente para o incentivo ao descarte consciente que é a Política Nacional de Resíduos Sólidos de 2010, que é inclusive uma referência internacionalmente. Na verdade, mais que um incentivo ela é um desincentivo ao descarte inconsciente por meio do estabelecimento da responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos e a logística reversa. Isso significa que a PNRS obriga as empresas a aceitarem o retorno de seus produtos descartados, além de as responsabilizar pelo destino ambientalmente adequado destes. A inovação fica sobretudo na inclusão de catadoras e catadores de materiais recicláveis e reutilizáveis tanto na logística reversa como na coleta seletiva, algo essencial para um país com nosso contexto social.

5. Você acha que os modelos de descarte atuais serão substituídos por novos modelos no pós-pandemia? O que fazer, por exemplo, para incentivar as pessoas a descartar de forma consciente as máscaras antivírus?
Sempre é preciso se repensar e certamente a pandemia deu destaque a certas fragilidades da implementação da PNRS. Grande parte dos hospitais brasileiros ainda não praticam efetivamente a separação e adequada destinação de seus resíduos e, na pandemia, este problema é agravado tanto pela maior quantidade de resíduos de serviços de saúde gerados como por uma maior quantidade de geradores, uma vez que a população também começa a produzir este tipo de resíduo em escala. Falta ainda muita circulação da informação, então talvez este seja o primeiro passo: uma campanha de conscientização séria que jogue luz nesta questão.

6. Na sua opinião, o mundo está mais consciente das necessidades de preservação do meio ambiente e dos recursos naturais para que gerações futuras possam deles usufruir?
Acredito que tenhamos passado do ponto em que estas necessidades de preservação eram uma questão de consciência e chegamos a um patamar de sobrevivência. Também não se trata apenas das gerações futuras, já estamos sofrendo as consequências do desequilíbrio ambiental provocado pela ação humana e do esgotamento dos recursos naturais desde já. A própria pandemia é resultado de relações danosas entre o ser humano e o meio ambiente e os conflitos por fontes de água, por exemplo, são uma realidade.

7. Quais as ações que mais comprometem e degradam o meio ambiente?
Nosso modelo produtivo e de consumo como um todo é baseado em uma relação predatória com o meio ambiente: retiramos mais do que necessitamos, sem respeitar os ciclos naturais de reposição e, além disso, quando descartamos os resíduos e rejeitos não cumprimos com os padrões adequados estabelecidos. Já temos conhecimento suficiente para evitar grande parte dos problemas, mas ainda não conseguimos integrá-lo nas nossas práticas efetiva e definitivamente.

8. O que na sua opinião precisa ser feito para que as sociedades conheçam mais a respeito de sustentabilidade, preservação do meio ambiente e consumo consciente?
Acredito que para avançarmos como sociedade precisamos tratar a questão das desigualdades socioeconômicas que estão intrinsicamente relacionadas a desigualdades ambientais, inclusive no que diz respeito às informações, ao conhecimento. A educação é, portanto, um componente estratégico para este avanço, mas é preciso ter um entendimento amplo que traga também os saberes tradicionais para esta equação. Além disso é preciso cada dia mais abordar o tema da perspectiva das oportunidades, pois a transição para modos de vida mais sustentáveis, que preservam o meio ambiente e que se baseiem em consumo conscientes alavancam inúmeras delas; por exemplo, um maior potencial de geração de empregos de qualidade e menos gastos com saúde.

9. A questão climática está relacionada com a sustentabilidade? Como?
A mudança do clima intensificada pela ação antrópica tem relação com nossos padrões de produção e consumo em desequilíbrio com o meio ambiente: por um lado, vimos emitindo uma quantidade de gases de efeito estufa muito significativa e, por outro, vimos degradando ecossistemas que absorvem estes gases, diminuindo a capacidade natural do planeta de equilibrar as emissões. Assim, a questão climática está relacionada com um modo de vida insustentável. A notícia boa é que práticas sustentáveis geram diretamente um impacto positivo no equilíbrio climático do planeta. Por exemplo, o Brasil tem potencial para gerar mais de 25 mil gigawatts em energia solar, aproveitando sua excelente localização geográfica com abundância de luz solar, uma medida sustentável que, ao mesmo tempo, é considerada uma das melhores alternativas para a diminuição das emissões de CO2 na atmosfera, que é um dos principais gases intensificadores do efeito estufa.

 

 

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Entrevistas

MARCOS TERENA

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De filho pródigo à liderança internacional, o índio, piloto e cacique Marcos Terena, tornou-se um líder respeitado e o ponto de equilíbrio entre autoridades brancas e os povos indígenas.

O índio, piloto e cacique Marcos Terena é uma liderança respeitada internacionalmente e o ponto de equilíbrio autoridades brancas e os povos indígenas. Terena tem uma de luta, de diálogos e de fé.
Voltemos no tempo. Em 1990, o jornalista Zózimo Barroso do Amaral deu em sua coluna do Jornal do Brasil uma nota, com o título “Procura-se” dizendo que o líder indígena Marcos Terena acabara de ser demitido da Funai, onde era piloto – mesmo tendo entrado em avião só como passageiro e morrendo de medo.
Foi na resposta de Marcos Terena ao JB, que se conheceu o valor, a grandeza, a altivez e a dignidade de um índio. Escreveu ele ao JB:
“Sou um dos 240 mil índios brasileiros e um dos seus interlocutores junto ao homem branco. Quando ainda tinha nove anos, fui levado a conhecer o mundo. Era preciso ler, escrever e falar o português. Um dia a professora me pôs de castigo, não sabia por quê, mas obedeci. Fiquei de frente para o quadro negro, de costas para a sala. Quando meus colegas entraram, morreram de rir. Não sabia o motivo, mas sentia-se orgulhoso por fazê-los rir. Eles riam porque descobriram meu segredo: meu sapato não tinha sola, apenas um buraco, amarrado por arame. Naquele momento, sem querer, acabei descobrindo o segredo do homem civilizado: suas crianças não eram apenas crianças. Apenas uma palavra as separava das outras crianças: pobreza.” 
E Terena continua sua carta:
“Um dia me chamaram de “japonês”. Decidi adotar essa identidade. E fiz isso por 14 anos.” 
Foi passando por japonês que Marcos Terena conseguiu estudar, entrar para a FAB, aprender a pilotar. Veio para Brasília. Deixou de ser japonês para voltar a ser índio. Ai descobriu que era “tutelado”. Mais: como tinha estudo, começou a explicar a lei para seus companheiros de selva. “Expliquei – diz ele – e fui acorrentado. Pelos índios, como irmãos. Pela Funai, como subversivo da ordem e dos costumes”. Veio o drama: continuar sendo branco-japonês e exercer sua profissão de piloto, ou voltar a ser índio, mesmo sendo subversivo. Marcos Terena era o próprio filho pródigo. Sabia ler, escrever, analisar o mundo, entender outras línguas. Mas, como índio, recebeu um castigo dos tutores da Funai: não podia exercer sua profissão, pilotar. Só depois de muita luta, recebeu seu brevê do Ministério da Aeronáutica. A carta de Terena ao JB continua. É linda. Uma lição! Quando publicada, mereceu uma crônica especial da Acadêmica Rachel de Queiroz.
E Terena, ao concluir sua carta, lembrou ao jornalista: “Não guardo rancores pela nota. Foi mais uma oportunidade de fazer valer a nossa voz como índio. Gostaria apenas que o jornalista inteirasse dessas informações todas e soubesse de minha vontade em tê-lo como amigo”. 
Respeitado por índios e brancos, sulmatogrossense de Taunay, Marcos Terena, 66 anos, maior líder do Movimento Indigenista Brasileiro – é um exemplo. Seu nome, sua obra e sua luta se confundem com a própria natureza: rica, dadivosa, exuberante, amiga e fiel.
CINCO BRANCOS E CINCO ÍNDIOS DE VALOR
1 – CINCO HOMENS BRANCOS QUE SOUBERAM OU SABEM VALORIZAR A CULTURA INDIGENISTA?
TERENA – O Marechal Cândido Rondon, o antropólogo Darcy Ribeiro, o escritor Antônio Callado, o cantor Milton Nascimento e o sertanista Orlando Villas Boas.
2 – QUAIS OS CINCO ÍNDIOS MAIS IMPORTANTES NA HISTÓRIA BRASILEIRA?
TERENA – Cacique Cunhambebe, da Conferência dos Tamoios; Cacique Mário Juruna, dos Xavantes; Cacique Raoni, dos Txucarramãe, Cacique Quitéria Pankararue; e Cacique Marcolino Lili, dos Terena.
3 – A POLÍTICA É UMA ARMA PARA SE FAZER JUSTIÇA OU UM CAMINHO MAIS FÁCIL PARA ENCOBRIR INJUSTIÇAS?
TERENA – O poder legislativo é um pêndulo necessário entre os três poderes. Mas a única participação que tivemos foi do Deputado Mario Juruna, eleito pelo voto do RJ. O ideal seria assegurar algumas cadeiras no Senado e na Câmara aos diversos setores sociais, como uma verdadeira “assembleia do povo brasileiro” e não somente aos sindicatos organizados ou aos cartéis dos ricos e poderosos.
POPULAÇÃO INDÍGENA HOJE
4 – NAS SUAS CONTAS, QUAL A POPULAÇÃO INDÍGENA HOJE NO BRASIL?
TERENA –  Já fomos mais de 5 milhões, com 900 povos. Hoje estamos em fase de reorganização e crescimento já beirando os 530 mil em aldeias, e depois dos eventos nacionais e internacionais de afirmação outros 500 mil em centros urbanos, com mais de 300 sociedades e 200 línguas vivas em todo o Brasil.
5 – AS MISSÕES RELIGIOSAS QUE ATUAM NAS ÁREAS INDÍGENAS SÃO BOAS OU RUINS?
TERENA – As missões religiosas sempre foram a parte a abençoar os primeiros contatos com os indígenas. Elas foram criadas para gerenciar os mandamentos bíblicos e cristãos, mas no caso indígena cometeram um grande pecado. Consideraram os índios como pecadores e sem almas por não usarem roupas e não terem a mesma fé dos brancos. Isso foi ruim pois sempre respeitamos de forma sagrado o Grande Espírito.
6 – OS ÍNDIOS JÁ SERVIRAM COMO MARKETING PARA OS PORTUGUESES (MOTIVO DE FINANCIAMENTO DE NOVAS EXPEDIÇÕES, POIS O MUNDO CATÓLICO TINHA QUE SALVAR ALMAS) JÁ SERVIRAM COMO MARKETING PARA CANTORES DE ROCK, PARA ONGS, PARA CANDIDATOS E PARA GOVERNOS. ÍNDIO É UM BOM MARKETING?
TERENA – Índio é uma marca muito boa, porque índio é terra, é ecologia, é bem viver. Isso não foi usado só por artistas da mídia, mas por fabricantes de joias, de produtos de beleza, de comida e medicina alternativas. Geralmente isso não traz nenhum retorno para nossa causa, basta ver o descaso como a Funai é tratada dentro do Governo e, com ela, os índios.
7 – QUEM PENSA GRANDE E QUEM PENSA PEQUENO NA FUNAI?
TERENA – Os índios pensam de forma ampla porque pensam nas suas terras, nos seus ecossistemas como fonte para o futuro do país. Em compensação os últimos presidentes da Funai foram passivos, paternalistas e incompetentes para a promoção dos valores indígenas e da própria instituição como empoderamento étnico, institucional e fonte de respostas para o País e para o mundo.
SONHO: DEMARCAÇÃO E CÁTEDRA ÍNDÍGENA
8 – JURUNA FOI UM LÍDER ELEITO PELO HOMEM BRANCO. VALEU, PARA OS ÍNDIOS, ESSA EXPERIÊNCIA PARLAMENTAR?
TERENA – A lembrança de Mário Juruna é um marco na história dos Povos Indígenas. Como Cacique foi o maior dos últimos tempos, sendo respeitado pelas autoridades brasileiras por sua forma de ser, mas como Parlamentar não foi bem assim. Houve falta de assessoria suficientemente hábil, para sua reeleição por exemplo, para abrir portas para novos valores indígenas, até hoje…
9 – QUAL O GRANDE SONHO DA FAMÍLIA INDIGENISTA PARA O ANO 2020?
TERENA – A demarcação de todas as terras. Cumprir a Constituição e não rasgá-la como querem alguns parlamentares como a bancada ruralista; eleger o maior número de vereadores e prefeitos índios; criar uma Cátedra Indígena com um perfil de Universidade Intercultural, e transformar a Funai num Ministério do Índio, e inovar nas relações com os poderes públicos, nomeando indígenas para esses cargos, pois eles existem.
10 – RELIGIÃO: O HOMEM BRANCO NÃO RESOLVEU SEUS PROBLEMAS COM A RELIGIÃO QUE TEM, MAS ACHA QUE DEVE LEVAR SUA RELIGIÃO PARA OS ÍNDIOS. O QUE ACHA DISSO?
TERENA – Os índios creem em Deus, o grande Criador. Muitas aldeias já aderiram aos costumes cristãos, tendo inclusive pastores e sacerdotes indígenas, que rezam e cantam na língua nativa. Acho que acima de tudo, Deus tem um plano para os índios. Ajudar o homem branco a conhecer o verdadeiro Deus, que fez os céus, a terra e a água, onde estão as fontes de sabedoria, de respeito às crianças e aos velhos, e dos alimentos e medicamentos do futuro. Lamentamos muito que em nome da Paz e do seu Deus, o homem branco continue matando.
11 – O QUE O ÍNDIO ESPERA DA CIVILIZAÇÃO, DO HOMEM BRANCO DE HOJE?
TERENA – Na verdade, agora estamos mais especializados em assuntos do branco, percebemos uma grande carência de metas e ideais que não dependem apenas de dinheiro ou poder. A sociedade do novo Milênio se perdeu entre as novas tecnologias e está gerando uma sociedade sem velhos e jovens, onde a Mulher por ser Mulher, poderá ser o equilíbrio, a tábua de salvação dos valores sociais, interétnicos, econômicos e religiosos. Um governo que defende o armamento de sua sociedade não está a favor do bem estar de seu Povo e sim dos interesses das indústrias de armas e guerras. O índio brasileiro não aceita ser parte da pobreza, mas quer mostrar que podemos ajudar, contribuir, mas dentro de um respeito mútuo.
“POSSO SER O QUE VOCÊ É, SEM DEIXAR DE SER QUEM SOU!”
12 – SUA LUTA É PROVAR QUE A DIFERENÇA CULTURAL É FATOR DE DISCRIMINAÇÃO QUANDO DEVERIA SER FATOR DE UNIÃO PELA PLURALIDADE ÉTNICA. VOCÊ CONSEGUE PASSAR ESSA MENSAGEM?
TERENA – Eu tive oportunidade de nascer em uma pequena aldeia, de estudar sem qualquer apoio ou cotas, e mesmo com a discriminação poder chegar a fazer um curso de aviadores na FAB. Aprendi muito com os valores militares. Tenho uma profissão rara, que é pilotar aviões. Outros índios não tiveram essa oportunidade. Muitos cansados, desiludidos voltaram para suas Aldeias para formar um novo espírito de lideranças tradicionais, religiosas e políticas. Mas no novo Milênio é impossível aceitar quaisquer argumentos que nos isolem das oportunidades, por isso quando começamos o movimento indígena nos anos 80, buscamos aliados para trocas de ideias dos nossos valores e da sociedade como um todo, organizando os índios, debatendo com mestres da Antropologia, da CNBB, da OAB, da SBPC, envolvendo artistas e personalidades – tudo isso ajudou a sermos melhores compreendidos. Ajudou-nos a levar uma nova mensagem aos brasileiros: “Posso ser o que você é, sem deixar de ser quem sou!”
CULTURA FORTE, MAS ECONOMIA FORTE
13 – OS ÍNDIOS PARECIS SÃO HOJE GRANDE PRODUTORES RURAIS. FAZEM DUAS SAFRAS POR ANO DE SOJA, MILHO, GIRASSOL E OUTROS PRODUTOS. TRÊS MIL ÍNDIOS FAZEM MAIS DE R$ 50 MILHÕES COM O AGRONEGÓCIO. TEM ÍNDIO PILOTO DE COLHEITADEIRA, AGRÔNOMO E TEM ÍNDIO ESPECIALISTA EM MERCADO. FUNAI E IBAMA CRIAM TODAS AS DIFICULDADES BUROCRÁTICAS A ELES. O QUE VOCÊ ACHA DISSO?
TERENA – Temos que olhar com desconfiança tudo que é mágico. Se todos os agricultores fossem plantar soja para ficarem ricos, não haveria pobreza e fazendeiros endividados com bancos e credores. Teríamos condições de plantar soja, mas também seguir os princípios indígenas de gerar a segurança alimentar familiar. O Agronegócio não funciona assim. Por outro lado, os irmãos indígenas estão se empenhando em fazer a sua parte, que é demonstrar sua inteligência no manejo com a terra e sua força de trabalho. Ainda não sabemos como foram feitos os acordos financeiros das partes envolvidas.
14 – VOCÊ ACHA QUE O GOVERNO ESTÁ MEIO INDECISO?
TERENA – O Ministério da Agricultura do governo Bolsonaro tem demonstrado sua contradição interna. Alguns assessores de alto nível emitem sons de discriminação histórica e até de ódio. Então como acreditar fielmente que esse Ministério é um aliado. Seria um marketing ou seria a reformulação do Anhanguera quando mentiu para os antigos donos dessas terras, ao ameaçar por fogo em todos os rios, ao acender um fogo com aguardente? O mais estranho é que os órgãos de fiscalização e controle e defesa dos povos indígenas como a FUNAI e o IBAMA, estão sendo descontruídos como tais, mas felizmente isso não acontece com o Ministério Público Federal, que certamente dará um norte nos encaminhamentos futuro.
De toda forma, sempre defendo a livre determinação dos Povos Indígenas, a começar pela demarcação territorial, com cultura forte, mas economia forte também.
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Entrevistas

Volney Garrafa – Entrevista sobre ética e transgênicos

Transgênicos: o nó não está na tecnologia, mas no seu controle

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 Transgênicos: o nó não está na tecnologia,

mas no seu controle

Uma coisa é certa: as mudanças genéticas possíveis – vegetais, animais e
humanas – já alteraram irreversivelmente o curso da história.

Silvestre Gorgulho, de Brasília

  Na edição de abril, a Folha do Meio Ambiente fez uma longa matéria sobre os chçãoamados OGMs e transgênicos, mostrando justamente que a revolu causada por eles é irreversível. E mais: que eles são, sem dúvida, um dos principais e mais polêmicos assuntos do momento. A verdade é que a questão sobre os chaar algo sólido, verdadeiro e ao alcance de sua compreensão. E qual o desafio que se apresenta à sociedade do Século 21,mados OGMs e transgênicos divide cientistas, ambientalistas e, no meio do tiroteio, fica a opinião do consumidor, tentando agarr quando o mundo usufrui dos transgênicos de segunda geração e assiste à terceira revolução econômica mundial? Sim, porque, apesar da polêmica, um fato sobressai: a revolução provocada pelos OGMs e transgênicos é irreversível e está embutida num mundo de economia cada vez mais globalizada. Nesse quadro, qual o próximo passo? Evidente que o desafio maior fica na segurança e na certeza de que os transgênicos vão chegar apenas para fazer o bem.

O professor Volnei Garrafa, Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Bioética da Universidade de Brasília e Vice-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética, foi um dos primeiros no Brasil a se preocupar com os aspectos éticos da atividade científica voltada para a biologia, assunto que na Europa e nos Estados Unidos surgiu paralelamente com os questionamentos sobre a segurança dos inventos e descobertas na área da genética. Criaram-se neologismos para definir essas novas preocupações como biotecnologia. biossegurança e bioética. E foi com essa última que Volnei Garrafa se identificou. Nesta entrevista, ele analisa os conflitos gerados por essa revolução científica e explica até onde vai essa liberdade que está na dificuldade em trabalhar a relação entre a certeza do que é benéfico e a dúvida sobre os “limites”.

Inicialmente, professor, o que, exatamente, significa bioética?
Volnei Garrafa –
Real-mente, é indispensável fazer um esclarecimento sobre o estatuto epistemológico da bioética, uma vez que grande parte daqueles que têm utilizado esta expressão no Brasil, o tem feito de forma errônea. A bioética não chegou pautada em proibições, limites ou vetos. E muito menos na necessidade imperiosa que muitos vêem de que tudo seja regulamentado, codificado, legalizado. Pelo contrário, baseada no respeito ao pluralismo moral, para ela o que vale é o desejo livre, soberano e consciente dos indivíduos e das sociedades humanas, desde que as decisões não invadam a liberdade e os direitos de outros indivíduos e de outras sociedades.

A modernidade da bioética está, exatamente, em libertar-se dos paternalismos que se confundem com beneficência. Historicamente, a humanidade vem carregando o peso do maniqueísmo entre o “certo” e o “errado”, entre o “bem” e o “mal”, entre o “justo” e o “injusto”. Para a bioética laica, o que é bem, certo ou justo para uma comunidade moral, pode não ser para outra, já que suas moralidades, ou costumes, podem ser diversas. Desta maneira, ao invés de pautar-se em proibições, vetos, limitações, normatizações ou mesmo em mandamentos, ela atua afirmativamente, de forma positiva. Para ela, portanto, a essência é a liberdade, porém com compromisso, com responsabilidade.

E quando a posição é inconciliável, como o caso do aborto?
VG –
Bem, aí há que caracterizar-se por proceder à analise processual dos conflitos de modo a proporcionar – na medida do possível – a mediação e a solução pacífica das diferenças. Em situações nas quais “estranhos morais” cheguem a posições inconciliáveis no contexto de temas situados nas últimas fronteiras do diálogo, como é o caso do aborto e em alguns momentos o tema dos transgênicos. Nesses casos, provavelmente, durante um bom tempo estaremos trabalhando para a construção de um consenso universal. As únicas saídas parecem ser o diálogo e a tolerância, exercidos com responsabilidade.

A ciência tem que avançar. E como fica a vida humana?
VG –
A ciência e a técnica não podem prescindir da ética.

  Como aplicar a bioética no caso específico dos transgênicos?
VG –
É impossível imaginar a atual estrutura biológica e societária como eterna e imutável. Como disse o rabino Henry Sobel na reunião do grupo de estudos sobre “bioética” desenvolvido durante o Encontro Internacional sobre Clonagem e Transgênicos promovido em Brasília pelo Senado Federal em junho de 1999: “a natureza é imperfeita, cria imperfeições biológicas nos campos vegetal, animal e humano. É papel da ciência, pois, consertar essas imperfeições”.

Um dos compromissos da ciência, portanto, é gestar o futuro, antecipando-se a ele por meio das descobertas que venham realmente proporcionar benefícios e segurança à espécie humana. A mutabi-lidade da sociedade e do mundo é uma certeza. A dúvida reside em estabelecer o limite ou ponto concreto até onde (e em que momento) os avanços da ciência devam acontecer.

Como o senhor vê a posição do Brasil face aos avanços científicos?
VG –
Durante os Encontros Malraux, realizados em 1997, em Brasília, o francês Jacques Rigaud pronunciou as seguintes palavras , que talvez possam ajudar na nossa reflexão: “Nós marcamos um encontro com o Brasil e o Brasil faltou… outros chegaram. Nossa geração, nos anos 30, acostumou-se à idéia de que a América Latina e o Brasil eram a terra do futuro… amávamos tudo aqui. Mas o encontro não foi possível. Nós vos esperamos no século XXI”.

Realmente, no presente momento histórico, enfrentamos um paradoxo ético insustentável: ao mesmo tempo em que, por exemplo, hospitais dos centros desenvolvidos do país estão capacitados a realizar transplantes múltiplos de órgãos humanos, milhares de crianças e idosos morrem todos os anos completamente desassistidos nos campos e nas cidades.

Quanto aos transgênicos, podemos acreditar na ciência?
VG –
Este parece-me um dos pontos mais cruciais a serem debatidos com a chegada dos transgênicos ao Brasil. Com tantos e tão agudos problemas remanescentes a resolver, não devemos abdicar ao futuro. Mas com que grau de certeza podemos acreditar na segurança que nos é oferecida por grandes empresas internacionais, que baseiam suas ações exclusivamente no lucro? E na ciência brasileira que, apesar de episódios pontuais de bravura, detém uma parcela de contribuição abaixo de 1% na produção mundial? Apesar do brilho inquestionável de algumas poucas estrelas nacionais e da luta diuturna de pesquisadores das nossas universidades e de algumas empresas públicas, em que pese seus magros recursos e salários, também nesse setor o Brasil é um país periférico e dependente. Já faz um bom tempo que ciência e tecnologia, juntamente com saúde e educação, não são prioridades brasileiras, seja no campo político ou orçamentário. As palavras de segurança, no que se refere ao plantio e ao consumo de transgênicos, são provenientes de alguns setores acadêmicos brasileiros. Portanto, apesar de singelas e provavelmente sinceras, são frágeis, inconsistentes no sentido de pensamento próprio. E, por isso mesmo, merecem ser consideradas com evidentes reservas.

E o futuro?
VG –
A ciência tem que avançar. Mas é bom perguntar: a quanto chegará o preço da vida humana? Não se pode prever. A questão é como a maior parte dos habitantes do planeta vão ter condições de acesso aos benefícios dos avanços da ciência e, assim, prolongar e melhorar a qualidade de suas vidas. Mas a ciência precisa continuar avançando, com criatividade, prudência e sob controle.

Summary

Transgenic Products: the issue is not in the technology, but in its control
One thing is certain: the possible genetic changes – in vegetal, animal and human life forms – have already irreversibly modified the course of History.

In the April edition, the Folha do Meio shared a long article on the MGOs and transgenic products, showing that the revolution caused by them is irreversible. And more: that they are, without a doubt, one of the main and more controversial topics of the moment. The truth is that the issue on the MGOs and transgenic products divides scientists, environmentalists and, somewhere in this mess, is the opinion of the consumer, trying to grasp something solid, true and within the reach of his knowledge. So which is the challenge that is presented to 21st Century society, when the world makes use of second-generation transgenic products and attends the third world economic revolution? Because, despite the controversy, a fact clearly appears: the revolution provoked by the MGOs and transgenic products is irreversible and is inlaid in an economy world that further globalizes by the minute. In this context, which is the next step? Evidently the biggest challenge is in the security and the certainty that transgenic products will arrive only to perform good deeds.

Professor Volney Garrafa, Coordinator of the Study and Research Center in Bioethics of the University of Brasilia and Vice-president of the Brazilian Bioethics Society, was one of the first people in Brazil to worry about the ethical aspects of the scientific activity regarding biology, a matter that appeared simultaneously in Europe and the United States with the questionings on the security of inventions and discoveries in the field of genetic research. Neologisms were created to define these new concerns such as biotecnology. biosecurity and bioethics. Volney Garrafa has been working mostly on the last one in the list: bioethics. In this interview, he analyzes the conflicts generated by this scientific revolution and explains up to where this freedom can go that is in the difficulty in working the relation between the certainty of what is beneficial and the doubt on the ” limits “.

It is indispensable to make a clear statement on the epistemologic laws of bioethics, since most people that have used this expression in Brazil, used it incorrectly. The bioethics was not brought up surrounded by prohibitions, limits or vetoes. And even less in the imperious necessity that many people feel in regulating, codifying and legalizing everything. Actually, it is based on the respect to moral pluralism, valuing the free, sovereign and conscientious desire of individuals and human societies, as long as the decisions do not invade the freedom and the rights of other individuals and other societies.

The modern aspect of bioethics is, accurately, in freeing itself from the paternal control that is mistaken by charity. Historicaly, humanity has carried the burden of believing in the eternal fight between ” right ” and ” wrong ” , between ” good ” and ” evil “, between ” justice ” and ” injustice ,”. For the secular bioethics, what is good, right or fair for a moral community, may not be for another community, since their moralities, or customs, can be diverse. This way, instead of being caged by prohibitions, vetoes, limitations, procedures or even laws, it acts affirmatively, in a positive manner. For it, therefore, the essence is freedom itself, nonetheless with commitment and responsibility.

 

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