Reportagens
Paisagem Cultural
A importância deste patrimônio para a humanidade
PAISAGEM CULTURAL
Silvestre Gorgulho
Como as pessoas, cada pedacinho da Terra é um ser também único. É esta sensação que nos faz sentir longe ou perto de casa. Assim, a Terra é cheia destes “pedacinhos” que se convencionou chamar de paisagem. O passado, o presente, o futuro e a história de um país passam pela paisagem cultural. O Brasil precisa se preocupar com a preservação de suas paisagens. São lugares especiais pela beleza exótica ou onde os seres humanos deixaram suas marcas. Mais do que uma natureza livre, a paisagem cultural pode ser uma área mística, um vale cultivado, um ambiente preparado para reverências ou mesmo alguma coisa que o ser humano fez para anunciar suas conquistas e marcar sua passagem.
É hora do brasil preservar suas paisagens culturais
Passado, presente, futuro e a História passam pela paisagem cultural
A Terra tem um diâmetro de 12.735 quilômetros. Tem muito mais água do que terra. O ponto mais alto é o Everest, com 8.850 metros de altura, no Himalaia. O mais profundo é a Fossa das Marianas com 11.000 metros de fundura, no Pacífico. Mas se a superfície da Terra fosse plana como uma bola de bilhar, o planeta seria recoberto inteiramente por um oceano de cerca de três mil metros de profundidade. É justamente tantas irregularidades no relevo com oceanos, ilhas, montanhas, vales, rios, depressões, planaltos e planícies que possibilitaram este sistema ecológico fascinante com sua fantástica biodiversidade. À medida que o homem ocupou tantos espaços e desenvolveu atividades nas mais variadas regiões, cada área passou a identificar peculiaridades especiais. Como as próprias pessoas, cada pedacinho da Terra passou a ser único. É esta sensação que nos faz sentir longe ou perto de casa. Assim, a Terra é cheia destes pedacinhos que se convencionou chamar de paisagem.
Fotos: André Pessoa
Paisagem é o resultado material de todas as mudanças – sejam elas sociais, naturais, artificiais – que ocorrem em determinada região.
As civilizações pré-históricas, os eventos extremos (maremotos, vulcões, tsunamis, terremotos) as ações humanas na ocupação dos espaços terrestres, o processo de desenvolvimento, a agricultura, a construção de barragens e a urbanização foram moldando as paisagens no decorrer de milhares de anos.
Em resumo, paisagem é um processo evolutivo simples, mas de uma complexidade viva pela dinâmica dos diferentes fatores naturais e culturais que interagem e evoluem em conjunto. Modernamente, nasceu o novo conceito de Paisagem Cultural. É onde os seres humanos entraram em ação. Deixando de ser uma natureza livre, a paisagem cultural pode ser uma área mística, um vale cultivado, um ambiente preparado para reverências ou mesmo alguma coisa que o ser humano fez para anunciar suas conquistas e marcar sua passagem.
Casca dAnta, nascente histórica do rio São Francisco: ostentação deslumbrante da cachoeira, do montanhoso com o céu.
A paisagem singular de Serra Vermelha, no Piauí
ENTREVISTA – Carlos Fernando de Moura Delphim
PAISAGEM CULTURAL
“Tudo o que é natural pode ser percebido e reconhecido pelo homem como cultural”
Folha do Meio – O que é uma paisagem cultural?
Carlos Fernando – No Iphan, definimos a Paisagem Cultural Brasileira como sendo uma porção peculiar do território nacional, representativa do processo de interação do homem com o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou atribuíram valores. Aprendi com a ambientalista Judith Cortesão que tudo o que é natural é também cultural. Um sítio onde o homem nunca tenha pisado, somente o saber humano, a cultura, poderá organizar, compreender e dele fazer uso. Apenas o homem pode conferir valores a um recurso natural, a uma paisagem.
“Enquanto a legislação ambiental protege as unidades de conservação, as feições mais significativas da relação do homem com o mundo natural, competência dos órgãos culturais, ficam totalmente desguarnecidas”.
Folha do Meio – O Brasil se preocupa com suas paisagens culturais?
CF – No momento, sim. Eu, particularmente, sempre me preocupei com a não existência nos órgãos culturais de uma preocupação com a preservação de paisagens, como os órgãos ambientais demonstraram com a conservação da natureza. Uma preservação conjunta do homem e de um meio natural que, embora significativamente alterado sob o ponto de vista do meio ambiente, ainda assim constituem uma unidade com importantes significados ou valores culturais. Enquanto a legislação ambiental protege as unidades de conservação, as feições mais significativas da relação do homem com o mundo natural ficam totalmente desguarnecidas. Por exemplo, unidades como a floresta atlântica são protegidas por uma infinidade de leis, enquanto exemplos de relação equilibrada do homem com a natureza, como ocorre nos Pampas e no Cerrado, não gozam do menor reconhecimento. Será que não são igualmente dignas de esforços para o reconhecimento de seu valor e de medidas para sua proteção as paisagens rurais como um vinhedo no Sul ou as velhas fazendas de café no Sudeste? Uma fazenda de cacau no sul da Bahia ou engenhos de açúcar no Nordeste com todo o patrimônio tecnológico ainda preservado, será que não devem compor uma paisagem cultural?
FMA – Há outros exemplos que correm risco de degradação?
CF – Há sim. Existem muitas outras regiões, onde a marca do homem convive em perfeita harmonia com a natureza, que precisam ser preservadas.
A verdade é que os pampas, caatinga, cerrado e a floresta amazônica apresentam incontáveis modelos de convivência harmoniosa e sustentável entre homem e natureza. E estes modelos vêm sendo ameaçados de destruição. O plantio de árvores para produção de celulose e de cana-de-açúcar para combustível transforma em lixo ou gases poluentes, a riquíssima biodiversidade de um planeta quase agonizante.
Carlos Fernando é arquiteto e paisagista formado pela UFMG. Técnico do Iphan e membro da Comissão de Patrimônio Mundial da Unesco, Moura Delphim trabalha com projetos e planejamento para manejo e preservação de sítios de valor paisagístico, histórico, natural, paleontológico e arqueológico. É discípulo de Burle Marx e, hoje, o paisagista favorito do mestre Oscar Niemeyer. Já fez para Oscar vários projetos paisagísticos como o do Memorial da América Latina, em São Paulo, do STJ, em Brasília, e da Universidade Norte Fluminense. Hoje ajuda no restauro dos jardins do Palácio do Planalto.
Pioneiro da restauração de jardins históricos no Brasil, é autor do primeiro manual de intervenções em jardins históricos no mundo. Além disto, emite pareceres sobre sítios propostos para Patrimônio Mundial da Unesco. Graças a um parecer seu, as Florestas Tropicais Úmidas de Queensland, na Oceania, foram declaradas como patrimônio mundial. Seu mais recente estudo é uma nova e vanguardista proposta para a preservação de paisagens culturais no Brasil, no sul do Ceará, onde participou da implantação do Geopark do Araripe.
FMA – Mas qual a importância imaterial?
CF – É preciso ficar claro que juntamente com o patrimônio genético e material, com o legado da natureza, desaparecem as formas de saber e de fazer característicos de cada um desses ecossistemas. Isso constitui a dimensão humana e imaterial do patrimônio, resultado da tão diversificada pluralidade cultural que é o Brasil. A biodiversidade e essa pluralidade, eis o nosso verdadeiro e mais valioso patrimônio.
FMA – O Brasil adota o mesmo conceito de paisagem da Unesco?
CF – Sim, para compor a lista indicativa de bens propostos para Patrimônio Mundial da Unesco, o Brasil adota os critérios exigidos pela Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, da Unesco.
Segundo a convenção, para serem incluídos na Lista do Patrimônio Mundial, os sítios naturais devem satisfazer alguns critérios de seleção. Esses critérios existem para os bens que vão compor uma lista da mais elevada excepcionalidade. No entanto, nós brasileiros, não precisamos olhar para tão longe. Existem bem pertinho de nós, paisagens totalmente insignificantes para os padrões da Unesco mas nas quais reconhecemos indiscutíveis valores nacionais. Aliás, a comissão da Unesco nos procurou para examinar a proposta de declarar o Rio como Patrimônio Natural na categoria paisagem cultural.
FMA – Pode dar um exemplo?
CF – Vou dar um exemplo bem simplório. Todo brasileiro sabe que nossa terra foi chamada, originalmente, pelos primeiros habitantes, de Pindorama, terra das palmeiras.
Por quê? Justamente porque depois de colonizada pelo branco e impregnada pela forte influência negra, uma casinha pequenina com um coqueiro do lado é uma imagem arquetipal (1).
Ninguém desejaria perder a possibilidade de contemplar essa feliz reunião do homem com a planta eleita pelo primitivo habitante do País para dar nome a nossa terra.
Uma casinha e um butiá no Sul, um jerivá no sudeste, uma guariroba ou buriti no centro-oeste, os coqueirais litorâneos em todo o nordeste, o babaçu, a carnaúba e mais uma infinidade de espécies em toda a Amazônia são, sob um ponto de vista afetivo de nosso povo algo digno de perdurar no tempo e de ser transmitido como um legado, um patrimônio.
“Tudo o que é cultural tem como fundamento o natural. E tudo o que é natural somente pode ser percebido e reconhecido pelo homem, por meio do que é cultural”.
FMA – Quando nasceram as discussões sobre Paisagem Cultural?
CF – Esta discussão sobre paisagem cultural nasceu após a Convenção para Proteção do Patrimônio Cultural, Natural da Unesco, em 1972. A Convenção produziu uma Carta Internacional, exprimindo uma visão dicotômica, senão antagônica, entre cultura e natureza.
Mais tarde, ao reconhecer o equívoco, a Unesco passou a adotar apenas uma denominação simplificada para a Convenção, retirando-lhe o Cultural e Natural e passando a considerar a indissociabilidade dos dois conceitos. Porque tudo o que é cultural tem como fundamento o natural. E tudo o que é natural somente pode ser percebido e reconhecido pelo homem, por meio do que é cultural.
FMA – 1972 foi quando a ONU organizou a primeira Cúpula da Terra sobre meio ambiente, em Estocolmo…
CF – Isso mesmo, e após a segunda grande cúpula da Terra, em 1992, no Rio, a ECO 92, alguns especialistas se reuniram na França, a convite do International Council on Sites and Monuments – Icomos e do Comitê do Patrimônio Mundial da Unesco para pensar as questões sobre paisagem cultural.
A legislação de proteção do patrimônio cultural, no Brasil, surgiu com a promulgação de um decreto-lei em 1937, organizando o patrimônio histórico e artístico brasileiro e criando o conselho consultivo que delibera sobre esse patrimônio.
Na década de 30 surgiram as primeiras leis de proteção à natureza brasileira, expressas em códigos pioneiros como os códigos florestal, de Águas, de Minas e de proteção aos animais.
É bom lembrar que, modernamente, os parques nacionais brasileiros, sem excluir valores cênicos, enfatizam a preservação de processos ecológicos, de espécies vegetais ou animais ou de ecossistemas.
FMA – Mas a constituição de 1988 abordou a questão de maneira bem pormenorizada…
CF – Sim, a Constituinte de 88 definiu, de forma ampla e pormenorizada, o interesse pelo patrimônio natural e cultural do Brasil, em dois diferentes capítulos.
O Capítulo sobre o Meio Ambiente trata da conservação da natureza sob um ponto de vista biológico, sendo a responsabilidade legal e administrativa pelo meio ambiente ecologicamente equilibrado, pela preservação e restauração de processos ecológicos essenciais, pela biodiversidade e pela integridade do patrimônio genético, atribuição de órgãos ambientais.
O capítulo da Cultura declara como patrimônio cultural brasileiro alguns conjuntos urbanos e sítios naturais, sendo a gestão atribuída a órgãos culturais.
FMA – Mas houve evolução?
CF – Sob a ótica cultural, a legislação pouco evoluiu após 1988, salvo a contribuição prestada pela Lei da Ação Civil Pública do Ministério Público, que considera o patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico paisagem como bem difuso. É importante equiparar a paisagem cultural à proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica e à livre concorrência.
Pedra da Galinha Choca:
atrativo natural de Quixadá, no Ceará
Os sítios arqueológicos da Pedra Furada, o cartão postal do Parque Nacional da Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato, no Piauí, onde está o Museu do Homem Americano
FMA – Uma paisagem preservada não bate de frente com o desenvolvimento?
CF – A paisagem cultural não é uma declaração compulsória efetuada por órgãos do poder público. É uma decisão democrática da população. Expressa, de forma perfeitamente democrática, a vontade que tem cada grupo de proteger os cenários mais valiosos de sua sociedade. Respondendo à sua pergunta, a declaração de Paisagem Cultural convive com as transformações inerentes ao desenvolvimento econômico e social sustentáveis. Aliás, valoriza a motivação responsável pela preservação do patrimônio.
FMA – E quais são as providências já tomadas?
CF – Inicialmente, o presidente do Iphan, Luiz Fernando de Almeida, assinou a criação de um grupo de trabalho para reconhecimento de partes do território brasileiro como Paisagem Cultural. O grupo analisou pedidos de reconhecimento de paisagens tais como os céus de Brasília, a paisagem do Vale do Ribeira, em São Paulo e do Parque Histórico das Missões, no Rio Grande do Sul, entre outras.
O objetivo da declaração de paisagem cultural é conferir um selo de reconhecimento de porções singulares dos territórios, onde a inter-relação entre a cultura humana e o ambiente natural conferem à paisagem uma identidade singular.
FMA – Seria um certificado, uma certificação?
CF – A finalidade é proteger a paisagem cultural. Não se trata de um ato de proteção, mas de uma chancela. Algo como certificação, semelhante ao ISO 14000. O pacto firmado é definir normas para uso e gestão da paisagem, tendo em vista sua defesa e cuidando para que sua qualidade seja sempre melhorada. Não é como um tombamento. Quem não cumprir os compromissos assumidos em um pacto comum, perderá a chancela de valor e qualidade como paisagem Cultural Brasileira, quando declarada por órgãos federais, estaduais ou municipais.
FMA – Voltando à pergunta anterior, como está o Grupo de Trabalho?
CF – O grupo de trabalho já terminou a versão da portaria criando a paisagem cultural, que foi encaminhada à Jurídica do Iphan para aprovação e subseqüente publicação no Diário Oficial.
FMA – Como declarar uma paisagem cultural?
CF – Segundo a Portaria, toda pessoa física ou jurídica poderá provocar, mediante requerimento, a instauração do processo de chancela da Paisagem Cultural Brasileira. O requerimento para a chancela da Paisagem Cultural Brasileira, acompanhado da documentação adequada, deve ser encaminhado às Superintendências Regionais do IPHAN, em cujas áreas de jurisdição o bem se situar. Evidente que o processo pode, também, ter início na presidência nacional do IPHAN ou no próprio gabinete do ministro da Cultura. Daí para frente são procedimentos internos para instrução do processo administrativo, celebração de um pacto de gestão da Paisagem Cultural e publicação no Diário Oficial.
FMA – Quais as vantagens para uma área ser declaração paisagem cultural?
CF – São várias. A começa: uma Paisagem Cultural propõe uma ação sistêmica e abrangente, integrada e articulada, envolvendo não apenas órgãos da administração pública como também de toda a sociedade civil. A Paisagem Cultural é um instrumento que exige novas formas de ação para a proteção dos diferentes elementos que compõem este patrimônio, envolvendo e convocando à participação as liberdades públicas e individuais. Supõe-se que cada órgão público ali passe a exercer sua fiscalização de forma mais rigorosa. Por se preocupar com a sustentabilidade, os produtos regionais poderão ostentar um selo de qualidade com a chancela do órgão cultural o que, certamente irá valorizá-lo.
FMA – No seu ponto de vista, quais as mais expressivas paisagens culturais que deveriam ter prioridade para declaração?
CF – De fato, existem paisagens significativas tanto sob o valor histórico, como artístico, geológico, geomorfológico, científico, paleontológico, espeleológico, hidrológico, arqueológico, rural, religioso e simbólico. Tudo isto e muito mais como sítios de valor florístico, faunístico, ecossistêmico, edáfico, legendário, mítico, sagrado, étnico, ambiental, industrial…
O espetáculo de cores da Gruta Azul, na Chapada Diamantina, é uma paisagem imperdível para turistas e amantes da natureza
As mais significativas paisagens culturais
FMA – Podia dar exemplos?
CF – Evidente. Vamos a eles:
Histórico: o sítio do Descobrimento, as margens plácidas do Ipiranga, o sítio da casa de José de Alencar em Fortaleza.
Artístico: seria qualquer paisagem retratada desde a chegada dos viajantes europeus no século XIX, como os jardins de Glaziou e de Burle Marx. Geológico: os penhascos do Rio de Janeiro, o Vale do Cariri, a Ilha do Bananal, em Goiás, e o deserto do Jalapão, em Tocantins.
Científico: dentre os muitos sítios de valor geológico e paleontológico, o que me ocorre mais imediatamente é a Pedra do Letreiro, em Souza, Paraíba. Trata-se de, um sítio de icnofósseis, com pegadas petrificadas de um dinossauro, o primeiro documento científico do Brasil.
Geomorfológico podem ser as impressionantes formações rochosas com efeitos pareidólicos (2) que são os inselbergs (3) de Quixadá, no Ceará ou a Pedra do Lagarto e o Frade e a Freira no Espírito Santo ou a Pedra da Boca Na Paraíba;
Espeleológico são as cavernas tombadas pelo Iphan como as grutas Azul, de N. S. Aparecida, em Bonito (MS), Terra Ronca (GO)s e outras. Vale lembrar que a responsabilidade pelo patrimônio espeleológico nacional é atribuição legal conferida exclusivamente ao Ibama, salvo quando protegidas pelo tombamento.
Hidrológico como as Águas Emendadas no Distrito Federal ou o encontro de águas de diferentes cores em rios na Amazônia, ou todo o percurso do Rio São Francisco.
Arqueológico, como São Raimundo Nonato no Piauí, Sete Cidade no Piauí. Aí se registra uma das mais comoventes cenas familiares de um cotidiano perdido há milênios: um pai pré-histórico grava a forma de sua mão colocando-a contra uma parede de pedra e pulverizando todo o redor com um pigmento terroso. Em uma pedra bem mais baixa, vê-se a mesma inscrição, de uma mãozinha infantil, certamente do filho copiando o que estava sendo feito pelo pai. Mortos há mais de mil anos podem continuar tocando nossos corações com gestos de amor e ternura.
Rural, como as antigas fazendas de café e cacau que desaparecem para dar lugar a perniciosos monocultivos.
Simbólico, como Sítio de Porongos, onde ocorreu o assalto das tropas imperiais que provocou a mortandade dos lanceiros negros propositalmente separados do restante das tropas e desarmados por Davi Canabarro e que hoje é um monumento ao sonho humano de liberdade.
Religioso, como o sítio onde apareceu a padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida e onde se construiu sua Basílica. Como o Horto em Juazeiro no Ceará, onde foi erigida a estátua do padre Cícero, a Igreja da Penha no Rio de Janeiro ou em Vitória, a capela do Padre Pio, no Rio Grande do Sul e uma infinidade de lugares por todo o País.
FMA – Você defende um dos tombamentos que mais me agrada: o Céu de Brasília…
CF – É verdade. Você mesmo fez uma entrevista com a Imperatriz do Japão e a primeira lembrança dela foi sobre a beleza dos Céus de Brasília.
Para mim, o céu de Brasília deve ser declarado como paisagem cultural por seu valor sublime. Quando fiz esta proposta há uns dois ou três anos, pessoas prosaicas, cujas almas não têm asas para empreender os grandes vôos, únicos que justificam nossa frágil condição humana, viram nisto um desvario. Espero que elas tenham considerado também delirante a decisão da Unesco de tombar como Patrimônio da Humanidade a noite escura e estrelada. No fundo, é um esforço, uma guerra contra a crescente iluminação artificial e as emissões de gases que roubam a luz ao planeta Terra. Quantas crianças nascidas e criadas nas grandes cidades não fazem a menor idéia de onde está Vênus, a Via Láctea, a Ursa Maior, o Cruzeiro do Sul… Neste caso, a nova legislação obrigará a um uso mais responsável da luz-ambiente, da construção de prédios nos centros urbanos e ao controlo da poluição. Todas estas ações nos roubam o Céu e as estrelas.
FMA – Ou seja, é hora de preservar muito mais do que edifícios e monumentos?
CF – Corretíssimo! É hora – como diz o presidente do Iphan, Luiz Fernando de Almeida – de preservar muito além de prédios de “pedra e cal”. O próprio Iphan indica a importância da preservação dos valores e dos bens culturais. A valorização do patrimônio cultural vai se intensificar a partir da compreensão de seus significados históricos e de seus benefícios sociais e econômicos. A história, o passado, o presente e o futuro passam pela Paisagem Cultural.
“O céu de Brasília deve ser declarado como paisagem cultural por seu valor sublime”.
FMA – Há interferência com o direito de propriedade ou funciona mais ou menos como no caso das RPPNs?
CF – Como as RPPNs, a chancela da paisagem cultural parte da vontade de proteger demonstrada por seus proprietários e usuários. Sob a coordenação do órgão cultural, esses agentes assinam um termo de responsabilidade no qual assumem o compromisso de cuidar da paisagem dentro de certos princípios expressos em um termo de gestão. O descumprimento do compromisso cria o risco de perda da chancela, algo vergonhoso, que muito afetará adversamente o reconhecimento público do valor da paisagem. Um efeito previsível será sobre as atividades turísticas. Órgãos públicos com responsabilidades sobre a paisagem serão convocados a participar de forma exemplar em sua defesa. Por exemplo, se uma fazenda apresenta áreas protegidas pela legislação ambiental, o Ibama deverá aplicar ali sua ação fiscalizadora de forma mais concentrada.
FMA – Prevista há tanto tempo, porque só agora a questão passou a ser tratada com profundidade?
CF – Por pura falta de interesse dos órgãos culturais. A princípio a questão do patrimônio natural era compreendida pelo Iphan como sendo atribuição de órgãos ambientais. Apenas após o Iphan ter entendido que cultura é muito mais do que edificações, esculturas e pinturas e contando com o total interesse do Ministério da Cultura, tornou-se possível assumir essa responsabilidade.
As paisagens espeleológica são as cavernas tombadas pelo Iphan, como as grutas Azul (Lençõis-BA), de N. S. Aparecida, em Bonito (MS), Terra Ronca (GO)s e outras. Vale lembrar que a responsabilidade pelo patrimônio espeleológico nacional é atribuição legal conferida exclusivamente ao Ibama, salvo quando protegidas pelo tombamento.
Na foto, a Gruta de Maquiné, em Cordisburgo, Minas Gerais, apresenta espeleotemas de rara beleza e é conhecida por ter servido de cenário para o trabalho científico de Peter Lund.
O deslumbrante cenário da Chapada Diamantina, em Lençóis, na Bahia.
Parque Estadual do Rio Preto, em Diamantina-MG: paisagem que faz bem aos olhos
Glossário
(1) Arquétipo vem do grego arché: principal ou princípio. É o primeiro modelo de alguma coisa. O termo “arquétipo” é usado por filósofos neoplatônicos, como Plotino, para designar as idéias como modelos de todas as coisas existentes, segundo a concepção de Platão. Nas filosofias teístas o termo indica as idéias presentes na mente de Deus. Pela confluência entre neoplatonismo e cristianismo, termo arquétipo chegou à filosofia cristã, sendo difundido por Agostinho, provavelmente por influência dos escritos de Porfírio, discípulo de Plotino. Arquétipo, na psicologia analítica, significa a forma imaterial à qual os fenômenos psíquicos tendem a se moldar. Jung usou o termo para se referir aos modelos inatos que servem de matriz para o desenvolvimento da psique. Eles são as tendências estruturais invisíveis dos símbolos. Os arquétipos criam imagens ou visões que correspondem a alguns aspectos da situação consciente.
(2) Pareidolia descreve um fenômeno psicológico que envolve um vago e aleatório estímulo, em geral uma imagem ou som, sendo percebido como algo distinto e significativo. Exemplos comuns incluem imagens de animais ou faces em nuvens, em janelas de vidro e em mensagens ocultas em músicas executadas do contrário. A palavra vêm do grego para – junto de, ao lado de – e eidolon – imagem, figura, forma. A pareidolia é um tipo de ilusão ou percepção equivocada, em que um estímulo vago ou obscuro é percebido como algo claro e distinto. Por exemplo, quando alguém vê o rosto de Jesus nas descolorações de uma rosquinha queimada.
(3) Inselbergs o termo vem do alemão, “monte ilha”, é um relevo que se destaca em seu entorno já aplainado, caracterizando-se por ser um relevo residual. São monólitos. No Brasil, é comum Inselbergs graníticos ou granitóides, tendo então uma forma esfeirodal e de alta inclinação, cerca de 40º. É o caso do Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro. Esses relevos são considerados “testemunhos”, pois são os relevos que resistem ao processo de pediplanação e pedogênese.
SUMMARY
CULTURAL LANDSCAPES
It‘s time for Brazil to preserve its cultural landscapes
The past, the present, the future and History shape cultural landscapes
Just as people, each plot of Earth is unique and this sensation can make us
feel far from or close to home. Earth is replete with these small pieces of land
which we refer to as landscapes.
Landscape is the material result of all change, be it social, natural or artificial that can occur in any given region. Prehistoric civilizations, extreme events (seaquakes, volcanoes, tsunamis, earthquakes), the actions of people in occupying the land spaces, the process of development, agriculture, construction of dams and urbanization have all shaped landscapes over thousands of years. In short, landscape is a simple evolutionary process, living complexity derived from the dynamic of different natural and cultural factors that interact and evolve together.
This relatively new Cultural Landscape concept has been defined fairly recently. It is the work of people. It is no longer free nature. Since it is no longer free nature, a cultural landscape may be a mystic area, a farmed valley, an environment prepared for veneration or even an area that man has prepared to pronounce his conquests and leave his mark.
Carlos Fernando de Moura Delphim
Carlos Fernando de Moura Delphim is an architect and landscaper graduated from UFMG (the Minas Gerais Federal University). He works with IPHAN as a technical expert on projects and plans for the management and preservation of sites having landscape, historical, natural, paleontological and archeological value. He is a disciple of Burle Marx and today is the preferred landscaper of the renowned Brazilian architect Oscar Niemeyer. He has planned a number of landscaping projects for Niemeyer, such as the Latin America Memorial in São Paulo, the Supreme Court of Justice in Brasília and the North Fluminense University.
Carlos Fernando pioneered restoration of historic gardens in Brazil and is the author of the first manual for historic garden interventions in the world. Additionally, he prepares expert reports regarding sites proposed for the UNESCO World Heritage Committee. Thanks to one of his reports, the Tropical Wetland Forests in Queensland, Australia, have been declared world heritage.
Cultural landscape
IPHAN (The Brazilian Historical and Artistic Heritage Institute) has defined Brazilian Cultural Landscape as a specific portion of Brazilian territory representative of the process of man’s interaction with the natural environment, in which life and human science have left their mark or assigned value.
I learned from the great Judith Cortesão that all which is natural is also cultural. Only human knowledge and culture can organize, understand and use a site where no man has ever stepped. Only man can assign values to a natural resource or a landscape.
Immaterial patrimony
It must be made clear that together with the genetic and material heritage and the legacy of nature, the means for understanding and making the features of these ecosystems disappear. This constitutes the human dimension and immaterial patrimony, resulting from the broad cultural plurality diversification inherent to Brazil. Biodiversity and this plurality comprise our real and most valuable heritage.
Origins of debate
The UNESCO Cultural and Natural Heritage Protection Convention gave rise to the issue of cultural landscape in 1972. The convention produced an International Letter, in which a dichotomistic, if not antagonistic culture versus nature view was expressed. Later, UNESCO, having realized its error adopted a more simplified definition for the Convention, removing Cultural and Natural and acknowledged the indivisibility of the two concepts, because everything that is cultural is based on what is natural and all that is natural can only be perceived and acknowledged by man based on that which is cultural.
Cultural Landscape vs. Development
Cultural landscape is not a compulsory statement made by governmental agencies. It is a democratic decision from the population, expressed in a perfectly democratic way; it is the willingness on the part of each group to protect those scenarios which are the most valuable to their communities. To answer your question, a declaration of Cultural Landscape abides by the transformations inherent to sustainable economic and social development and takes into appreciation the motivation behind preserving this legacy.
Benefits
There are a number of advantages. To begin with, a Cultural Landscape proposes a systemic, sweeping, integrated and articulated action, involving not just a few governmental agencies but the whole community as well. The Cultural Landscape is an instrument that requires new types of action to protect the different elements that make up this patrimony, by calling forth and involving the participation of public and individual liberties. Suppose that each governmental agency out there starts conducting more scrupulous inspections. Regional products could bear a seal of quality issued by a cultural agency to demonstrate the producers concern with sustainability which would, in turn, certainly increase their value.
Broader concept
There are important landscapes from historic, artistic, geographic, geomorphologic, scientific, paleontological, speleological, hydrologic, archeological, agricultural, religious and symbolic standpoints. It can be all this and much more including plant and animal habitats, ecosystems, edaphic, mythic, sacred, ethnic, environmental and industrial sites, to name a few.
The Skies of Brasília
In my opinion, the skies of Brasília should be declared a cultural landscape for their awe-inspiring value. When I made this proposal some two or three years ago, mundane people, whose souls have no wings to take great flight, which can uniquely justify our fragile human condition, saw this as madness. I hope that they also consider delirous the UNESCO decision to preserve the dark and starry night. It is after all an effort, a battle against the increasing use of artificial lighting and gas emissions that have stolen the light of planet Earth. How many children have been born in large cities, having no idea where Venus, the Milky Way, Big Bear and the Southern Cross are?
In this instance, new legislation should be enacted to make it mandatory to use more responsible environmental lighting, to put up buildings in urban centers and control pollution. All these actions have stolen the Sky and the stars.
Reality
Owed to the lack of cultural agency interest, natural heritage was initially understood by IPHAN as being the bailiwick of environmental agencies. Only after IPHAN had understood that culture is much more than buildings, sculpture and paintings and after receiving full support from the Ministry of Culture, did it become possible for it to take on this responsibility.
Unesco e a Constituição brasileira
definem o que é Paisagem Cultural
Definição segundo a UNESCO
“Os bens naturais devem: ser exemplos excepcionais representativos dos diferentes períodos da história da Terra, incluindo o registro da evolução, dos processos geológicos significativos em curso, do desenvolvimento das formas terrestres ou de elementos geomórficos e fisiográficos significativos, ou
ser exemplos excepcionais que representem processos ecológicos e biológicos significativos para a evolução e o desenvolvimento de ecossistemas terrestres, costeiros, marítimos e de água doce e de comunidades de plantas e animais, ou conter fenômenos naturais extraordinários ou áreas de uma beleza natural e uma importância estética excepcionais, ou conter os habitats naturais mais importantes e mais representativos para a conservação in situ da diversidade biológica, incluindo aqueles que abrigam espécies ameaçadas que possuam um valor universal excepcional do ponto de vista da ciência ou da conservação.”
Definição segundo a Constituição do Brasil
“Constituem o patrimônio cultural brasileiro, os bens, de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”.

Reportagens
Ação educativa em bares orienta contra direção após consumo de álcool
Com o projeto Rolê Consciente, o Detran promove intervenções artísticas sobre os riscos de beber e dirigir; iniciativa acontece nesta sexta, na Asa Norte

Agência Brasília* I Edição: Débora Cronemberger
Na noite desta sexta-feira (29), acontece mais uma edição do projeto Rolê Consciente do Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran-DF). A ação educativa percorre bares e restaurantes levando conscientização ao público para não dirigir, se beber. A ação de hoje ocorre na Asa Norte, de 18h às 21h.

O Rolê Consciente é uma ação que envolve intervenções artísticas com bonecos, MCs do trânsito com suas rimas e, também, um papo sério com a entrega de material educativo e palestras dos professores de trânsito do Detran-DF. Toda a ação é voltada ao tema sobre os efeitos do álcool no organismo, orientações de segurança quanto à utilização de celular ao volante, a importância do respeito à velocidade máxima das vias, faixa de pedestre, respeito aos ciclistas e muito mais.
De acordo com o Código de Trânsito Brasileiro, dirigir após o consumo de álcool é infração gravíssima, com multa no valor de R$ 2.934,70 e suspensão do direito de dirigir por um ano. O Rolê Consciente acontece às quintas e sextas-feiras e, a partir de outubro, será aos sábados e domingos também.
*Com informações do Detran
Reportagens
Parceria visa fortalecer o esporte inclusivo no DF
Secretarias de Esporte e Lazer e da Pessoa com Deficiência vão elaborar ações para ampliar o acesso das pessoas com deficiência à prática esportiva em todas as suas esferas e em todas as faixas etárias

Agência Brasília* | Edição: Igor Silveira
A Secretaria de Esporte e Lazer (SEL-DF) e a Secretaria da Pessoa com Deficiência (SEPD-DF) se uniram para potencializar o paradesporto e esporte inclusivo no DF. As ações serão efetivadas por meio do Programa de Esporte Inclusivo.
A SEL-DF tem trabalhado para fomentar a visibilidade e valorização do paradesporto na cidade. Para isso, a pasta vem realizando eventos com o objetivo de dar celeridade ao acesso das pessoas com deficiência à prática esportiva em todas as suas esferas e em todas as faixas etárias.

O secretário Julio Cesar Ribeiro explica que uma das principais prioridades da pasta tem sido criar ações para dar visibilidade ao paradesporto. “A valorização e o investimento no paradesporto são fundamentais para construir uma comunidade mais inclusiva, onde cada cidadão, independentemente de suas habilidades, encontre espaço e oportunidades no universo esportivo do Distrito Federal”, destaca. O esporte é uma ferramenta essencial para a superação de barreiras”, completa Ribeiro.
Para o secretário da Pessoa com Deficiência, Flávio Santos, as duas secretarias poderão estabelecer uma política pública específica e efetiva voltada para atender às pessoas com deficiência nessa área. “As ações já existiam, mas serão ampliadas e melhoradas por meio desse trabalho porque, aí sim, vai ser construído um programa de esporte inclusivo”, afirma.
As pastas já trabalhavam de forma conjunta em ações pontuais, com o apoio aos paratletas por meio dos programas Compete Brasília e Bolsa Atleta, além das atividades oferecidas nos Centros Olímpicos e Paralímpicos. “Eu, como secretário e como atleta, sempre evidenciei a importância do esporte como uma poderosa ferramenta de inclusão”, finaliza Flávio.
Inclusão
Em maio deste ano, o Centro Olímpico e Paralímpico do Gama, recebeu mais de 350 inscrições para o Festival Paralímpico, que, pela primeira vez, ocorreu em Brasília. O evento realizado pela SEL-DF proporcionou aos participantes a inclusão por meio da vivência lúdica nos esportes paralímpicos.
O Campeonato Regional Centro-Oeste de Bocha Paralímpica foi outro marco na capital federal. O evento, que recebeu o apoio inédito da pasta, serviu como etapa classificatória para o Campeonato Brasileiro de Bocha Paralímpica, além de ter proporcionado aos atletas a oportunidade de ter representado suas associações e região em uma competição de nível nacional.
Outro evento que contou com o apoio da pasta foi a etapa regional das Paralimpíadas Escolares, que fomentou a inclusão e o progresso dos jovens atletas com deficiência, reunindo a participação de mais de 900 competidores. Os jogos ocorreram entre os dias 31 de agosto e 1º de setembro.
Outras competições paradesportivas também foram apoiadas pela SEL, como o Brasileiro de Adestramento Paraequestre, Centro-oeste de Handebol de Surdos e o Campeonato Regional de Goalball.
*Com informações da Secretaria de Esporte e Lazer do Distrito Federal (SEL-DF)
Reportagens
Poeta vencedora do Prêmio Jabuti transita do slam à literatura grega
Autora voltou à Estação Guilhermina para lançamento de seu livro

Foi na praça ao lado da Estação Guilhermina do Metrô, na zona norte paulistana, que Luiza Romão começou a declamar versos em público. Ali, acontece desde 2012, toda última sexta-feira do mês, a batalha de rimas conhecida como Slam da Guilhermina. Agora, dez anos depois desse encontro com a poesia falada, a autora retornou ao espaço para fazer um dos eventos de lançamento de Também Guardamos Pedras Aqui, seu livro que venceu o último Prêmio Jabuti.
“Quase pedir a benção”, resume a poeta sobre os sentimentos sobre esse momento que ela enxerga como o fechamento de um ciclo. “Acho que é bastante significativo, fazer isso bem antes de ganhar o mundo, assim, sabe? Antes de ir pro mundão”, comenta a respeito da turnê que se aproxima nos próximos dias. Até janeiro de 2024, a previsão é que Luiza tenha passado pela França, Argentina, México e Alemanha para divulgar o livro premiado, que já tem prontas traduções para o francês e espanhol.
Formada em artes cênicas, Luiza se aproximou da poesia atraída pelo modelo performático do slam, que começou a frequentar em 2013. As batalhas de rimas foram criadas por Marc Smith, nos Estados Unidos, na década de 1980. As competições, que atualmente acontecem em diversas partes do mundo, começaram, segundo a autora, como uma forma de tornar a leitura de poesia mais atraente nos saraus. “Em geral, em noites de cabaré, quando músico ia se apresentar, todo mundo prestava atenção. Quando ia uma pessoa do stand up, todo mundo prestava atenção. Na hora que o poeta ia declamar, era o momento que geral ia no banheiro, comprar cerveja, acender cigarro”, conta.
A performance da poesia falada, que compõe a cena cultural das periferias paulistanas, acabou atraindo Luiza, que tinha vindo em 2010 para a cidade, para estudar na Universidade de São Paulo. “Não estava no meu horizonte de vida virar poeta. Foi através do encontro com as batalhas de slam, com os microfones abertos, com o movimento saraus, que eu comecei a escrever”, lembra.
Uma estética que se relaciona com as temáticas que atravessam a juventude, especialmente a que vive fora dos bairros mais privilegiados. “Uma poesia muito engajada. Uma poesia que pensa o seu tempo histórico, que é fundamentada na dimensão coletiva da palavra. Toda essa partilha da performance”, enumera sobre as razões que a aproximaram dos versos e das rimas.
Atualmente com 31 anos, Luiza tem quatro livros publicados. O Também Guardamos Pedras Aqui é diretamente inspirado no épico grego Ilíada, de autoria atribuída a Homero, que retrata a conquista de Troia.
Veja os principais trechos da entrevista com a autora:
Vamos começar falando um pouco do livro Também Guardamos Pedras Aqui. Queria entender um pouco por que essa opção pela poesia grega e também o que isso significa na sua trajetória.
Eu sou formada em teatro. Tem algo que, de certa forma, eu discuto no livro, talvez de uma maneira não tão direta, que é essa obsessão nossa pelos gregos, que não diz respeito só a mim, Luiza, mas a nossa sociedade que passou por esse processo brutal de colonização e que ainda hoje continua referenciando de maneira tão intensa nos currículos escolares, nas produções culturais, esse imaginário cânone greco-latino. Então, na faculdade de artes cênicas, por exemplo, eu estudei dois anos de Grécia antiga.
Isso é algo que também se verifica nos cursos de letras e em muitos outros cursos. Você estuda tragédia grega. Você estuda comédia grega. Você estuda poética de Aristóteles, O Banquete do Platão. Uma tradição que é tão distante a nós. E, muitas vezes, a gente acaba não olhando para outras tradições e cosmovisões que estão mais próximas. As diferentes tradições latino-americanas andinas, maias e tudo mais ou as tradições africanas.
Quando eu termino [o curso universitário] eu vou fazer EAD, que a escola de artes dramáticas da USP, eu tenho que retomar essa galera [os gregos]. Eu estava lá, lendo pela segunda vez a mesma tradição, e faltava a Ilíada.
Então, eu estava indo viajar, fazer um mochilão pela Bolívia e pelo Chile. Eu falei: ‘Ah, vou pegar a Ilíada. Por que não? [risos]. É pesado, mas, pelo menos, é um volume só’. Meu irmão, Caetano, tinha uma edição que era leve, de papel bem fininho.
Foi onde eu li e fiquei muito chocada. Eu costumo dizer que o Pedras nasce um pouco desse horror a essa narrativa fundante da tradição ocidental, que é narrativa muito violenta. Eu sabia que era a história de uma guerra, que é como é contada, né? Mas, na verdade, não é a história de uma guerra, é a história de um massacre.
O que diferencia uma guerra de um massacre?
A guerra é quando, minimamente, você tem pé de igualdade. Você tem possibilidades reais dos dois lados ganharem. É algo que vai ser disputado na batalha. E, quando você lê a Ilíada, você vê que os troianos nunca tiveram chance de ganhar, porque os deuses eram gregos. Acho que foi a maior indignação para mim, porque isso eu não sabia antes de ler. Mas você tem o tempo inteiro a batalha acontecendo no campo terreno, entre gregos e troianos, e uma batalha acontecendo no plano divino, digamos assim, no Olimpo. Então, você tem os deuses que são pró-troianos e os deuses que são pró-gregos. E tem um momento que tem uma treta gigante, e Zeus [deus do trovão e líder do panteão grego] fala: ‘ninguém intervém na guerra, nenhum dos deuses’. E aí os troianos passam a ganhar a guerra.
Só que aí tem uma coisa que é muito doida, porque a gente tem essa ideia de perfeição atrelada à divindade, no catolicismo. No panteão dos gregos, na mitologia grega, são deuses que estupram, que têm inveja, que trapaceiam. Hera [esposa de Zeus] faz uma trapaça com Zeus. Ela vai até o fundo do oceano, pega um sonífero e Zeus dorme. Aí, ela e Atena [deusa associada a sabedoria] voltam para a guerra, quebram o pacto.
Os deuses são trapaceiros e Ulisses [herói grego] é trapaceiro também, porque é uma trapaça o que ele faz com cavalo. Não é fair play [jogo justo]. Eu acho que tem essa dimensão do massacre. Além de toda a devastação de um povo, das inúmeras formas de aniquilação, de tortura de subjugação, de estupro, de violência que estão no livro, tem isso de que é impossível esse povo ganhar. [Por orientação de Ulisses, os gregos fingem se retirar do campo de batalha e oferecem um cavalo gigante de madeira como presente aos troianos. Porém, uma parte dos soldados gregos se esconde dentro da escultura para, durante a noite, abrir os portões da cidade e provocar a derrota de Troia.]
No poema Homero, você diz que os gregos “foram capazes de” e traz uma lista, que seria de atrocidades, mas que está coberta por uma tarja preta, de censura, para em seguida dizer que, apesar desses horrores, eles, ao menos devolveram o corpo de Heitor, príncipe de Troia, ao contrário do que se fez, muitas vezes na ditadura militar brasileira. Você quer dizer que vivemos horrores maiores do que os troianos?
Isso tem muito a ver com dimensão quase que performativa da minha leitura. Eu estava lendo nessa viagem e passei pelo local onde Che Guevara [guerrilheiro que participou da revolução cubana] foi assassinado, no interior da Bolívia. Inclusive, tinha uma menina lá [parte do grupo], que era Tânia. Eles estavam tentando articular uma revolução comunista no coração da América Latina. A ideia seria sair do coração da Bolívia e se espalhar pelo continente inteiro. Eles são delatados, passam por uma emboscada e são assassinados.
O Che Guevara morre. A cabeça dele fica exposta em uma dessas vilas e o corpo fica desaparecido, por medo de que o local em que ele estivesse enterrado virasse um mausoléu de peregrinação comunista, um lugar de memória. O corpo dele só é encontrado 30 anos depois. Um dos militares disse que ele estava enterrado numa pista de pouso militar. Hoje você tem um museu do Che Guevara nesse local.
Eu queria aprofundar um pouco o uso desse recurso da censura, que aparece em outras partes do livro.
Eu acho que essa questão da censura ou do apagamento de arquivos é algo que também está muito presente quando a gente fala dessa história, dessa imposição de uma história única, dessa construção de um relato produzido pelo poder. Então, desses arquivos que são censurados, apagados e tudo mais.
Também, de certa forma propõe esse jogo com os leitores, da mesma forma que eu estou tentando reconstituir uma história que é muito apagada, vamos tentar reconstituir juntos. Talvez seja exercício imaginativo nosso também.
Você disse que Ulisses não jogava no fair play [jogo justo]. Tem um texto em que parece que você fala disso, invertendo a condição de herói e vilão, no poema Polifemo [gigante de um olho só que comia pessoas]. “Ninguém te cegou não/ não foi Ulisses/ aquela noite o policial não tinha identificação”
Ulisses, para mim, é um personagem que a gente, enquanto ocidente, vai emular como a inteligência. Primeiro, tudo que a gente sabe das viagens dele [narradas na Odisseia], é ele o que conta. Ou seja, ele pode estar mentindo, ele pode ter inventado tudo. Para mim, é um narrador nada confiável. Principalmente, porque do que a gente sabe, sim, de dados dele, é o personagem que faz o Cavalo de Tróia, que ganha na trapaça.
Então, Polifemo estava lá e, de repente, chegam esses homens, se metem [nos domínios dele] e ainda o cegam. E tem essa que a grande sabedoria do Ulisses é falar: “Eu não sou ninguém”. Então, Polifemo começa a gritar [após ter o olho furado]: “ninguém me cegou”.
Isso também foi uma chave de leitura para o caso do Sergio Silva [fotógrafo que perdeu o olho nas manifestações de 2013] e de vários e várias manifestantes que foram baleados com bala de borracha nos últimos anos, seja no Brasil, seja no Chile, onde a gente teve de fato uma forma sistemática da polícia de dilacerar o globo ocular de muitas pessoas.
E que ninguém cegou essas pessoas. É a mesma situação bastante recorrente quando a gente fala das ações das polícias militares, seja pelo não uso de identificação, seja porque cada vez mais são policiais que estão com balaclava ou com capacete.
Você fala em diversos momentos sobre violência (policial, contra a mulher), que é uma temática muito recorrente nos slams. Como o movimento dos slams atravessa a sua trajetória?
Minha trajetória é completamente atravessada pelo slam. Eu vim do teatro, sou das artes cênicas. Não estava no meu horizonte de vida virar poeta. Foi através do encontro com as batalhas de slam, com os microfones abertos, com o movimento saraus, que eu começo a escrever. Principalmente, por ser uma poesia muito engajada. Uma poesia que pensa o seu tempo histórico, que é fundamentada na dimensão coletiva da palavra. Toda essa partilha da performance é uma forma poética também de encarar esses temas.
O slam não dissocia política e poética. É óbvio que é indissociável. Mas tem alguns lugares que se tem ilusões que é possível dissociar disso. Então, eu começo a frequentar em 2013 e continuo, não mais como slammer. Já aposentei as chuteiras faz um tempo. Mas, de vez em quando, fazendo a parte de produção. Fui fazer um mestrado sobre isso.
Em que momento você se aposentou do slam?
Como slammer, é muito normal a gente ter ondas, né? É tipo jogador de futebol, a carreira é curta. A gente vai lá, batalha uma, batalha outra, brinca durante dois ou três anos. É muito normal. Assim, você tem uma renovação da cena muito constante. Então, eu comecei a frequentar em 2013, já tinha tido uma onda antes de mim. Eu sou dessa segunda geração e já estão na sexta geração, agora.
Então, eu fui fazer outras paradas em termos de artista, de criação artística. Mas, ao mesmo tempo, é um lugar que eu gosto muito de estar. Eu continuo frequentando muito nesses últimos anos.
De alguma forma, tentei elaborar bastante a reflexão sobre a cena na dissertação. Acho que é uma forma de agradecer também esses anos todos de trajetória. É um trabalho que é a primeira parte é bastante dedicada a pensar historiografia do slam nos Estados Unidos. Eu traduzi muita coisa que não está disponível em português.
Também analiso quatro poemas da Luz Ribeiro, de Pieta Poeta, do Beto Bellinati e da Ana Roxo. Pensando como que essas questões todas vão para o corpo do poema. Porque, muitas vezes, quando a gente fala de slam, a gente só faz uma abordagem antropológica ou socializante, sendo que a gente está falando de poesia. E eu acho que ler esses poemas também na sua potência estética, o que eles têm de disruptivo, no que eles propõem de linguagem, no que eles contestam em toda uma tradição literária brasileira, isso é muito potente também.
Edição: Sabrina Craide
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