Reportagens
Brasília e a arborização da Esplanada dos Ministérios
Arborização X Arquitetura
Arborização de Brasília: Esplanada Revisitada
Silvestre Gorgulho
O homem é verdadeiramente um ser especial. Por ser racional, tem um poder de adaptação fantástico, conseguindo viver bem em quaisquer dos ambientes habitados pelas outras espécies: pode construir seu próprio ambiente, mais frio ou mais quente, mais seco ou mais úmido, na terra ou no mar e, agora, até no espaço. O homem desenvolveu tecnologias e aprendeu a fazer seu habitat de acordo com as conveniências econômicas e sociais. Aprendeu a construir seu ambiente nas cidades, onde ele nasce, cresce, ama, se reproduz, se alimenta, realiza seu trabalho, pratica esportes, desfruta seus momentos de lazer, vive e morre. Mas nisso tudo há um segredo: é preciso que exista um certo equilíbrio entre os elementos naturais com o qual convive. Quanto maior o desequilíbrio entre esses elementos e entre eles e o homem, maior será o desconforto e a falta de saúde, comprometendo a qualidade de vida. E, na ecologia de seus assentamentos, sejam eles uma vila, uma cidade, uma metrópole ou uma megalópole, a arborização tem papel fundamental.
“O espaço vazio é, talvez, o elemento mais importante dos jardins e dos parques. É expressão do invisível, um centro em torno do qual tudo se ordena. É o equivalente do silêncio que constitui, não se deve esquecer, um dos componentes da eloquência. O vazio tem um valor espiritual: nossas catedrais eram o invólucro de um espaço de dimensões perfeitas que suscitam a prece”. Duque d’Harcourt,
em seu livro Des Jardins Heureux
“A arborização da Esplanada dos Ministérios se assemelha mais a um sítio rural onde se cultiva, sem qualquer ordem ou técnica, um pomar misturado a um jardim e a uma horta”. Carlos Fernando de Moura Delphim
A arborização urbana é uma arte. Exige profundos conhecimentos de estética e uma perfeita integração entre homem, natureza e prédios. Há que ter um convívio equilibrado, propiciando aos habitantes do meio urbano o prazer de um belo visual, paz de espírito e harmonia no viver diário.
As plantas, os parques e os jardins emolduram uma cidade. Fazem parte da paisagem de uma cidade. Na natureza está o lado romântico das cidades.
Todas as cidades têm seus monumentos, seus prédios característicos, muitas vezes tombados como patrimônio cultural. Os parques e, sobretudo a arborização urbana, têm que fazer parte deste contexto. Não pode haver agressão – mas sim harmonização – entre os prédios e a natureza.
A questão de Brasília
Árvores exóticas e inadequadas estão tapando totalmente as fachadas dos ministérios
Brasília é uma cidade tombada pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade. É a única cidade contemporânea tombada. Brasília é planejada. É a própria cidade-monumento.
Durante anos, muitas intervenções pontuais e aleatórias foram sendo efetuadas nos grandes canteiros, no Eixo Monumental, na Esplanada dos Ministérios, sem qualquer preocupação com o conjunto e com a integração com o meio edificado.
Muitas intervenções nunca deveriam ter sido feitas. Plantaram-se tantas árvores, sem nenhum critério, em pleno coração da Capital, que acabou por gerar uma grande confusão. Pior: árvores exóticas e inadequadas estão tapando totalmente as fachadas dos Ministérios. A Esplanada, hoje, se assemelha mais a um sítio rural onde se cultiva, sem qualquer ordem ou técnica, um pomar misturado a um jardim, a uma horta, de um modo típico de quem desconhece a arte de lidar com a natureza e com a estética. Muitos habitantes, guiados pelas melhores intenções, se viram no direito de inserir sua marca pessoal na paisagem, sob a forma de um mogno, uma mangueira, uma jaqueira, um pé de jamelão. Em muitos lugares não se vê a menor preocupação de estender à vegetação a ordem que criou a cidade e que a tornaram um bem cultural singular em todo o planeta.
Assim, ainda que na melhor das intenções, plantou-se de tudo na Esplanada. No seu livro “Manual de Intervenções em Jardins Históricos”, o arquiteto e paisagista do IPHAN, Carlos Fernando de Moura Delphim lembra muito bem que “o estrato arbóreo é um elemento quase arquitetônico. Uma árvore pode vir a assumir uma dimensão mais impactante que o próprio prédio”. E é, justamente, o que está acontecendo em Brasília.
Carlos Fernando de Moura Delphin, um dos paisagistas preferidos de Oscar Niemeyer, deixa claro que “projetada para automóveis, Brasília não precisa ser inóspita para os pedestres que não encontram qualquer aconchego na travessia de alguns de seus grandes gramados. Corredores de sombra e frescura poderiam ser criados de forma ininterrupta, curvos e sinuosos, em contraposição á geométrica e retilínea malha da cidade e sem se chocarem com suas formas”.
Erros cometidos na arborização
Para Moura Delphim, há vários erros que devem ser corrigidos:
1 – Nas imediações de belas edificações, foram plantadas árvores exóticas cujo porte adulto, muitas vezes, nem é ainda conhecido no Brasil. Ao crescerem, as árvores vão obstruindo e ocultando totalmente a visão de prédios que foram projetados para serem livremente contemplados.
2 – Figueiras e mognos foram plantados em renque ao longo de alguns ministérios. Essas árvores têm um porte tal que estão tornando o conjunto de prédios bem menos significantes. Há uma competição entre as árvores e os ministérios.
3 – Há, ainda, o inconveniente das raízes causadoras de ruínas, como as chamou Guimarães Rosa.
4 – A vegetação do grande canteiro existente diante do Hotel Nacional e que deveria emoldurar a vista que se tem da edificação, não tem qualquer utilidade prática, seja do ponto de vista estético, seja do ponto de vista ambiental. Arvoretas raquíticas não chegam a constituir um conjunto aprazível para os olhos nem se prestam à função de sombrear e refrescar.
Medida compensatória: para cada árvore cortada na Esplanada, será plantada uma centena de outras em áreas adequadas.
Os cheios e vazios na paisagem de Brasília
Diz o arquiteto-paisagista Carlos Fernando que é extremamente importante saber a exata medida entre os cheios e os vazios na paisagem de Brasília. “A idéia de Oscar Niemeyer em deixar amplos espaços cívicos livres e desocupados, como forma de valorizar sua arquitetura, deve ser integralmente respeitada. Entretanto as intervenções de plantio, onde se justificam, não devem ser tímidas, mas devem se integrar a esse vazios, servindo ao conforto e ao prazer estético da população”.
“Quando isoladas – lembra Carlos Fernando – antes parecem se separar do que se integrar à paisagem. Competem com o todo, subtraem, ao invés de colaborar, de acrescer. Como Brasília ficaria bela se novas espécies de árvores de floração deslumbrante fossem aqui introduzidas e se as espécies já existentes viessem a constituir conjuntos harmoniosos! Se manchas de cores vibrantes atravessassem seus espaços, se interpenetrassem, criando um novo desenho em contraponto ao lógico ordenamento urbano. Existem árvores de aspecto semelhante ao ipê com flores cor de sangue ou azuis e em outros tons também intensos de amarelo, roxo, branco e rosa. Muitas dessas árvores são nativas, outras exóticas e muitas nunca foram usadas na arborização urbana”.
Única saída
Como o tema é polêmico, técnicos propõem criar uma comissão: IPHAN, Unesco, Ibama, Secretaria de Habitação e Urbanismo, Secretaria de Cultura e Ministério da Cultura para fazer um projeto de revitalização para adequar a arborização do Eixo Monumental e da Esplanada dos Ministérios à arquitetura de Niemeyer. A Comissão indicaria as intervenções capazes de valorizar aquilo que Brasília tem de mais singular: seus grandes vazios. Aí, então, seriam organizados os novos plantios. E, quando for necessário e justificável, indicando os espécimes arbóreos cujos inconvenientes recomendam sua supressão, observando atenciosamente se a avifauna não se utiliza destas árvores para nidificar. Assim sendo, espera-se até que os filhotes estejam adultos e portanto aptos a se mudar para outros locais. Nesse caso, seria adotada uma Medida Compensatória: para cada árvore cortada na Esplanada, será plantada uma centena de outras em áreas adequadas.
Há falta de harmonização entre prédios e o paisagismo: árvores exóticas encobrem as fachadas
As árvores acabam assumindo uma dimensão mais impactante que os próprios prédios
Além de encobrir os prédios dos ministérios, as árvores plantadas sem o menor estudo paisagístico passam a esconder comércio clandestino, camelôs e até outras irregualaridades
Os 10 Mandamentos da Arborização Urbana (por Silvestre Gorgulho) | |
1 | Plantar espécies nativas da região. |
2 | Adequar a espécie ao espaço disponível e à arquitetura para não haver agressão e sim harmonização entre prédios e natureza urbana. |
3 | Planejar a arborização de tal modo que a cidade esteja florida o ano inteiro. |
4 | Estudar o sistema radicular das árvores plantadas para que ele não interfira em redes subterrâneas e edificações. |
5 | As espécies frutíferas podem atrair pássaros, o que é bom, mas em áreas muito próximas às residências e edificações comerciais podem também atrair animais indesejáveis, como morcegos. |
6 | Não realizar podas desnecessárias, interferindo o mínimo possível na arquitetura da copa das árvores. |
7 | Fazer a poda apenas dentro dos padrões técnicos recomendáveis, ouvindo sempre o órgão responsável pela arborização. |
8 | Abolir completamente machados e facões na poda das árvores, utilizando instrumental adequado, como motosserra, facilitando a recuperação das cicatrizes nas plantas. |
9 | Manter canal de comunicação permanente com a população para atender aos pedidos urgentes de poda, preservando assim a credibilidade da instituição governamental. |
10 | Não plantar árvores na estação da seca, evitando-se a onerosa e ineficiente irrigação através de carros-pipas ou consumo de água potável da rede pública. |

Reportagens
Histórias inspiradoras de mulheres que superaram o câncer de colo do útero
Se detectada a tempo, doença tem chances altas de cura, sinalizam especialistas

Agência Brasília* | Edição: Chico Neto
A professora do ensino fundamental Sabatha Borges, 41, ia ao médico regularmente e fazia exames ginecológicos com frequência, pois sempre teve o sonho de ser mãe. Aos 39 anos, grávida, sofreu um aborto espontâneo e precisou fazer a retirada do saco gestacional, procedimento que detectou um câncer de colo do útero em fase inicial.

“Para mim, foi um grande baque”, conta. “A gente nunca imagina isso. Eu me senti sem chão. Já estava muito triste por ter perdido meu filho, e ainda receber essa notícia… Foi muito doloroso”.
“Faixa etária de 25 a 64 anos tem a maior ocorrência das lesões de alto grau, passíveis de serem tratadas para que não evoluam para o câncer”Sônia Gallina, médica
Após uma cirurgia difícil em setembro de 2021, quando Sabatha teve parte de seu útero retirado, os médicos fizeram de tudo para manter uma estrutura que permitisse a ela engravidar de novo. Oito meses mais tarde, isso aconteceu naturalmente. E, depois de uma gestação sem sustos, nasceu sua filha Ilke. Hoje curada, Sabatha faz o controle anual e sonha ter outros filhos.
“Nunca tive sintomas e sempre me cuidei”, relata. “Além disso, os médicos da Secretaria de Saúde foram um grande apoio. Tive o suporte e o acompanhamento da doutora Sônia Maria Ferri Gallina e do doutor Fernando Henrique Batista da Mota, do Hospital Regional de Ceilândia. Eles me disseram que meu sonho de ser mãe ainda seria possível.”
A ginecologista Sônia Gallina, do Hospital de Base, lembra que os exames preventivos sempre são importantes: “Se diagnosticado precocemente, o câncer apresenta uma alta taxa de cura e se o tratamento for iniciado logo após o diagnóstico, aumenta a sobrevida e as chances de cura da paciente”.
O Mês da Mulher é marcado também pelo Dia Mundial da Prevenção do Câncer de Colo do Útero, celebrado neste domingo (26).
“Não tenham medo de investigar algo incomum por conta do resultado. Idade não é regra, e o autocuidado salvou minha vida”Sabatha Borges, professora
Conselhos
Terceiro tumor maligno mais frequente na população feminina (com exceção do câncer de pele não melanoma) e a quarta causa da morte de mulheres por câncer no país, o câncer de colo do útero é um problema de saúde pública no Brasil. Apesar de ser uma doença frequente, as lesões iniciais podem ser identificadas pelo teste de Papanicolau e, quando tratadas, evitam o surgimento da doença.
Sabatha aconselha mulheres mais jovens: “Conheçam-se, façam seus exames, como a citologia cervical. Não tenham medo de investigar algo incomum por conta do resultado. Sua vida e sua saúde são o que importa. O diagnóstico precoce aumenta as chances de cura. Idade não é regra, e o autocuidado salvou minha vida”.
Histórico familiar
Especialistas alertam que o histórico familiar é um indicativo para começar a prevenção o quanto antes. Dois ou mais parentes de primeiro grau (mães, irmãs ou filhas) ou de segundo (neta, avó, tia, sobrinha, meia-irmã) com câncer de útero, mama e/ou de ovário já indicam alto risco de surgimento da doença.

É o caso da dona de casa Mislene Dantas, 44. Em 2019, sua mãe teve câncer na bexiga. Um ano antes, Mislene apresentou um sangramento e descobriu que estava com câncer de colo do útero. “O câncer já estava em estado avançado”, lembra. “Tive que começar um tratamento rápido de quimioterapia e radioterapia. Todo o meu tratamento foi no HRT [Hospital Regional de Taguatinga]”. Ainda abalada com a notícia, ela também descobriu um tumor no rim. “Foi literalmente uma bomba na família. Veio tudo de uma vez, eu achei que não ia conseguir. Tive realmente medo de morrer”. Já a mãe de Mislene não sobreviveu.
Mãe de Camila, 24, e Thaynara, 26, Mislene esteve em tratamento durante cinco anos, com radioterapia, quimioterapia e braquiterapia. Hoje curada, faz acompanhamento anual pelo SUS. “Eu me sinto renascida, começando tudo de novo. Sempre que volto ao HRT para repetir os exames, fico com medo, mas neste ano a equipe de médicos me disse que estamos na reta final, que depois desses exames vou estar totalmente liberada. Isso quer dizer que não tenho mais sinal de câncer.”
Mislene agora sonha em voltar a estudar e ajudar pessoas que passam pela mesma situação: “Quero fazer psicologia, tenho muitos sonhos. Pretendo ajudar pessoas e fazer tudo que eu sempre quis. Eu tive uma segunda chance”.
Prevenção
O exame de Papanicolau deve ser feito pelas mulheres ou qualquer pessoa com colo do útero, na faixa etária de 25 a 64 anos que já tiveram atividade sexual. Isso inclui homens trans e pessoas não binárias designadas mulher ao nascer.
“Essa faixa etária tem a maior ocorrência das lesões de alto grau, passíveis de serem tratadas para que não evoluam para o câncer”, aponta a ginecologista Sônia Gallina. “Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a incidência deste câncer aumenta nas mulheres entre 30 e 39 anos de idade e atinge seu pico na quinta ou sexta década de vida.”
A vacina contra o HPV é uma das principais formas de prevenir a doença. Está disponível gratuitamente pelo SUS, sendo destinada a meninas e meninos de 9 a 14 anos. A eficácia do imunizante chega a prevenir até 70% dos cânceres de colo de útero e 90% das verrugas genitais.
Outra orientação é o uso do preservativo em todas as relações sexuais, atitude que favorece a diminuição do risco de contágio do vírus. As consultas médicas, bem como os exames preventivos periódicos, também são fundamentais para o diagnóstico de qualquer alteração na saúde.
*Com informações da Secretaria de Saúde
Reportagens
Especialistas dizem que produzir trabalho decente no Brasil é desafio
Resgate de trabalhadores em condição degradante tem aumentado

Produzir trabalho decente no Brasil é desafiador, mas caminho necessário para o enfrentamento ao trabalho análogo ao escravo. A avaliação é de especialistas ouvidos pela Agência Brasil em meio a repercussões do grande número de casos de resgate de trabalhadores nessas condições nos últimos meses.
Para o procurador do Ministério Público do Trabalho em Alagoas (MPT-AL) e coordenador regional de Combate ao Trabalho Escravo, Tiago Muniz Cavalcanti, o enfrentamento dessas situações se faz em duas vertentes: a repressiva e a preventiva.
“Quando falamos em prevenção, existem duas formas, a prevenção primária é quando o crime ainda não ocorreu. A secundária é quando o crime já ocorreu e precisamos acolher essa vítima, reverter os fatores de vulnerabilidade e reincluí-la no trabalho digno, para que não volte a ser novamente vítima do trabalho escravo. A vertente preventiva, tanto primária quanto secundária, é o nosso grande gargalo”, explicou.
Segundo ele, é dever do Estado implementar políticas públicas de acesso a direitos sociais, sobretudo trabalho decente, nas comunidades das vítimas em potencial. “O que fazemos diariamente, eu digo Estado, Ministério Público e sociedade civil que combate trabalho escravo, é tentar reverter todos os fatores de vulnerabilidade da população, para que tenhamos o mínimo de exploração. Ou seja, para que a exploração não seja aviltante a ponto de termos que resgatar aqueles trabalhadores de situações que chamamos atualmente de análogas à escrava porque a escravidão já não existe”, disse Cavalcanti.
Na mesma linha, a diretora executiva do Instituto do Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (InPacto), Marina Ferro, avalia que o período da pandemia de covid-19 levou ao aumento do desemprego e a oportunidades mais precarizadas de trabalho. “Combater o trabalho escravo é também produzir oportunidade e reduzir a desigualdade. Quanto mais você tem desigualdade social, mais fácil vai ficar de precarizar as situações, quanto mais você tira as pessoas da pobreza, da fome e gera oportunidades dignas, menos isso acontece”.
Para ela, a herança escravocrata no Brasil ainda é muito forte, pois com a abolição da escravidão não houve a inserção social de quem vivia nessa condição. “Por isso, continuamos um país muito desigual, que reproduz muita vulnerabilidade e que não trata o ser humano com dignidade, como um par”, afirmou.
As terceirizações, segundo Marina, também são fatores importantes para a precarização do trabalho. “É fator muito sensível para as empresas se anteciparem, prestar atenção e fazer a devida diligência na sua cadeia. Elas precisam olhar a cadeia produtiva, contratos com terceiros e não se eximir dessa responsabilidade. Então, acho que há um papel do Estado no combate ao trabalho escravo e um papel das empresas, que podem antecipar essa questão e evitar que isso aconteça”.
A legislação brasileira atual classifica como trabalho análogo à escravidão toda atividade forçada ou submetida a jornadas exaustivas, ou ainda desenvolvida sob condições degradantes ou com restrição da locomoção do trabalhador. Também é passível de denúncia qualquer caso em que o funcionário seja vigiado constantemente, de forma ostensiva, por seu patrão.
Outra forma de escravidão contemporânea reconhecida no Brasil é a servidão por dívida, que ocorre quando o trabalhador tem seu deslocamento restrito pelo empregador, sob alegação de que deve liquidar determinada quantia de dinheiro.
O presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), Bob Machado, alertou que, ao longo dos últimos anos, houve redução de orçamento e “redução drástica” do número de auditores fiscais do trabalho. Hoje, o país tem o menor número de auditores fiscais dos últimos 33 anos e cerca de 45% dos cargos estão vagos.
“Isso tem impacto direto no combate ao trabalho escravo, ao trabalho infantil, na inserção de aprendizes no mercado de trabalho, na inserção de pessoas com deficiência, no combate a fraudes trabalhistas, que visam majoritariamente reduzir a remuneração de trabalhadores, e também a busca por ambiente de trabalho mais seguro, visando à redução de acidentes”, disse Machado. Ele destacou outras atribuições dos auditores que visam à criação de trabalho decente.
Na última semana, o ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, informou que pretende promover concurso para recompor o quadro de fiscais do trabalho.
Aumento de casos
O início de 2023 trouxe novamente à tona casos de trabalhadores em situações análogas à de escravidão. No Rio Grande do Sul, 207 trabalhadores enfrentavam condições de trabalho degradantes nas terras das vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton, em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha. As empresas assinaram termo de ajuste de conduta com o Ministério Público do Trabalho (MPT) e se comprometeram a pagar R$ 7 milhões em indenizações.
Em Goiás e Minas Gerais, um grupo de 212 trabalhadores que prestava serviço a usinas de álcool e produtores de cana de açúcar foi resgatado, durante operação do Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Escravo. Na última sexta-feira (24), mais pessoas foram resgatadas, dessa vez no festival de música Lollapalooza, no Autódromo de Interlagos, em São Paulo. Em todos esses casos, os trabalhadores eram contratados por uma empresa de prestação de serviços terceirizados que intermediava a mão de obra.
Desde 1995, as fiscalizações e os resgates de trabalhadores são feitos pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel, coordenado por auditores fiscais do Trabalho, em parceria com o MPT, a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União, entre outras instituições.
Os resgates vêm aumentando nos últimos anos. Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), até o início de março as autoridades resgataram 523 vítimas de trabalho análogo ao escravo. Em 2022, conforme o Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho, 2.575 trabalhadores foram encontrados em situação de escravidão contemporânea, um terço a mais que em 2021.
O MPT e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) também desenvolveram o Observatório de Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, com dados e informações sobre políticas de trabalho.
O procurador Tiago Cavalcanti destacou que, de acordo com a organização internacional Walk Free Foundation, em 2014 o Brasil tinha cerca de 150 mil pessoas escravizadas. “Os números mais recentes mostram que a gente tem 370 mil, ou seja, mais do que duplicou o número de pessoas escravas, pessoas que estão, na verdade, aguardando resgate”, disse ele, explicando que a média de resgates é de pouco mais de 2 mil trabalhadores por ano.
Precarização do trabalho
Para Cavalcanti, no mundo capitalista sempre existirá escravidão. “A escravidão, na sua accepção mais pura e fiel, que é a exploração aviltante do ser humano, ou seja, o uso e o descarte de seres humanos, é inerente à nossa sociedade”, afirmou, acrescentando que a solução para o problema passa por uma mudança cultural.
Adicionalmente, segundo ele, a agenda de políticas públicas dos governos que se sucederam após o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff não favoreceram a população de baixa renda e aumentaram o nível de miserabilidade da população. Por isso, o número de pessoas que se submetem a qualquer trabalho aumentou vertiginosamente.
“Eu poderia citar inúmeros exemplos. Tivemos um estancamento da política de reforma agrária, um aumento da desigualdade social, o aumento das relações autoritárias de poder, ou seja, o coronelismo voltou com força muito maior. Tivemos uma precarização dos níveis de proteção social, ou seja, a legislação trabalhista foi flexibilizada, desregulamentada, a proteção social, da Previdência Social, ela foi flexibilizada. Tivemos o fenômeno da uberização (uso de aplicativos) das relações de trabalho de forma muito intensa, de certo modo fomentado, incentivado pelos últimos governos”, disse o procurador.
Para o secretário de Inspeção do Trabalho do MTE, Luiz Felipe Brandão de Mello, a narrativa do governo anterior, que defendia que “o importante é o trabalho e não só os direitos”, intensificou a precarização do emprego no Brasil. “Então, uma série de fatores juntos que levam a esse quadro. É inacreditável que em pleno 2023 estejamos discutindo o trabalho escravo no Brasil. Isso não é trabalho de uma instituição, mas preocupação que deve ser de toda a sociedade e ter grande mobilização”, destacou.
O presidente do Sinait, Bob Machado, concorda que, associada à cultura da escravatura, a reforma trabalhista e a terceirização irrestrita promovida pelos últimos governos reduziram as condições de trabalho decente. “Nós vivemos um período muito grande de contraposição entre o trabalho e os direitos, o que é direito, o que é emprego. E nesse sentido alguns interpretaram de maneira extrema, reduzindo os trabalhadores à condição análoga de escravos”, observou.
Cadeia produtiva
Segundo Marina Ferro, do InPacto, o setor produtivo precisa de práticas políticas para a prevenção de trabalho escravo nas cadeiras, dedicar recursos e esforços constantes na identificação de riscos. “As empresas precisam se comprometer com a causa e criar procedimentos, ter estrutura interna, ter gestão de riscos sobre aqueles possíveis e até os potenciais que possa vir a ter numa cadeira produtiva.A partir desse mapeamento de riscos inerente a cada setor, você consegue então dedicar esforços, ações para evitar que eles aconteçam”, disse.
O Instituto do Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (InPacto) é apoiado por grandes empresas do país e é uma das respostas institucionais do setor privado do Brasil ao problema. Ele atua na busca de soluções para as cadeias produtivas globais, na prevenção ao trabalho escravo, envolvendo diversos atores e organizações sociais.
Uma das ferramentas criadas pelo instituto é o Índice de Vulnerabilidade InPacto, que permite estabelecer uma escala de risco de trabalho escravo no país, para que as empresas se antecipem na promoção do trabalho decente em seus locais de produção.
“Está ficando cada vez mais claro também, não só pela nossa legislação, mas também para quem exporta, por exemplo, para a União Europeia, há uma legislação de fora que está cada vez mais colocando a questão da devida diligência como algo essencial para os setores produtivos. Então, cada vez mais, as empresas vão ser cobradas pela responsabilidade de fiscalizar toda a sua cadeia, então não vai ter como dizer ‘contratei de um terceiro, não tenho responsabilidade’. O ‘eu não sabia’ não vai mais rolar, a empresa do futuro precisa se precaver”, afirmou Marina.
O agronegócio é o setor econômico mais frequentemente envolvido em casos de trabalho análogo ao escravo. De 1995 a 2022, das 57.772 pessoas resgatadas dessa situação, 29% atuavam na criação de bovinos, 14% no cultivo de cana-de-açúcar e 7% na produção florestal.
Para a especialista, a transformação do agro no Brasil está atrelada à sua produtividade. “Há setores que já demonstram uma mudança, tanto no sentido de trazer a renda para o produtor, mas também de dar boas condições de trabalho. Então, acho que que é preciso uma transformação cultural, principalmente na forma de pensar essa produção, mas também de oferecer condições. Com essa legislação cada vez mais forte, tanto nacional quanto internacional, a questão reputacional, se as empresas não começarem a se antecipar e se adequar, lá na frente a conta chega”.
O procurador do Trabalho, Tiago Cavalcanti, explica que nem todos os beneficiários do trabalho escravo podem ter o dolo (a má-fé) de escravizar, mas a culpa eles têm. “É muito fácil saber que as condições de execução do trabalho são precárias na medida em que o pagamento é muito baixo, à medida que você não tem uma fiscalização correta. As empresas que estão na ponta da cadeia, ou seja, empresas poderosas economicamente, a partir do momento em que elas subcontratam e fecham os olhos, passam a ser responsáveis por aquilo que ocorre na sua cadeia produtiva, principalmente quando a produção ocorre na sua propriedade”, disse, citando como exemplo o caso das vinícolas no Rio Grande do Sul.
Cavalcanti chama de “cegueira deliberada” essa atitude dos setores produtivos. “A identificação é óbvia. Ou seja, é uma cegueira proposital, ela [a empresa] fecha os olhos, finge que não conhece aquela realidade, quando na verdade ela tem todos os elementos para saber que aquilo existe de fato”, explicou.
Instrumentos de repressão
Na vertente da repressão, do combate ao trabalho escravo, o procurador avalia que o Brasil, “até certo ponto”, é modelo em âmbito internacional. “Temos alguns instrumentos importantes, como o Grupo Móvel que deflagra a força tarefa de combate ao trabalho escravo, a lista suja, existem órgãos que lidam de forma boa em relação à repressão, do ponto de vista administrativo, trabalhista e criminal”. Ele lembrou que, recentemente, a Justiça reconheceu a imprescritibilidade do crime trabalho escravo.
Cavalcanti confia que, com o novo governo, “teoricamente mais compromissado com a política de direitos humanos”, esses instrumentos sejam preservados. O procurador contou que a estrutura de combate a esse crime esteve ameaçada, mas conseguiu resistir durante o período pós-impeachment graças à mobilização dos órgãos públicos fiscalizadores e da sociedade civil organizada.
Segundo o procurador, a última grande medida de combate ao trabalho escravo é do governo Dilma, a emenda constitucional que alterou o Artigo 243 da Constituição Federal para prever a expropriação de terra daqueles que escravizam. “É importante ressaltar que não veio o governo do nada e criou esses instrumentos. Temos esses instrumentos porque o Brasil foi demandado em âmbito internacional para que fizesse alguma coisa em face do trabalho escravo”, destacou.
A lista suja do trabalho escravo é o cadastro de empresas autuadas pelo Ministério do Trabalho por submeter seus empregados a condições análogas à escravidão. A inclusão do nome do infrator na lista só ocorre após decisão administrativa final. Ela é publicada a cada seis meses e a última foi em outubro do ano passado.
Segundo Marina Ferro, um dos compromissos dentro do Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo é que as empresas usem a lista suja para não fazer acordos comerciais com empresas que estejam lá. “Então, a lista suja se tornou um super instrumento para que as empresas conhecessem quem estivesse utilizando mão de obra análoga à escrava e impusessem restrições comerciais a essas pessoas jurídicas. É ferramenta de demonstração. Nenhuma empresa quer estar lá, porque além de ter a consequência monetária, também tem a reputacional. Depois é complicado para as empresas reconstruir”, explicou.
Segundo o secretário de Inspeção do Trabalho do MTE, Luiz Felipe Brandão de Mello, o objetivo do governo é fortalecer a fiscalização para identificar e coibir a exploração criminosa da mão de obra no país. “Temos que fazer uma avaliação, na verdade, para ver realmente o que está acontecendo para essa explosão do número de casos. Em cima disso, teremos que fazer análise para ver haverá redirecionamento das ações. Diferentemente do que já foi, no passado, que era muito concentrado numa determinada região do país, agora está ocorrendo em todas as áreas, então temos que ver como atuar”.
Na última semana, o ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, também defendeu a revisão de normas de terceirização trabalhista.
Para o presidente do Sinait, Bob Machado, a revisão da reforma trabalhista e da política de terceirização precisa ser feita no âmbito do Congresso Nacional, de maneira ampla, em debate com as entidades da sociedade civil. “Para que possa, a partir daí, resultar em alterações na legislação que visem prioritariamente proteger os trabalhadores, garantir trabalho digno para todos”, destacou.
Canais de denúncias
As denúncias de trabalho análogo ao escravo podem ser feitas pela população, de forma anônima, por meio de canais como o Disque 100, o site do Ministério Público do Trabalho (MPT) e o Sistema Ipê, da Auditoria Fiscal do Trabalho.
O procurador do Trabalho, Tiago Cavalcanti, alerta que as denúncias precisam ser fortes e com o máximo de informações possíveis, que levem ao resgate de trabalhadores. Segundo ele, as diligências envolvem diversos órgãos e têm um custo para o Estado.
“Às vezes, as denúncias que chegam são frágeis, ou seja, não têm a localização exata, a identificação do empregador, não diz quais são os fatos que ensejam trabalho escravo, ou seja, o trabalhador tá sem comida, tá dormindo no curral com a vaca, enfim, os fatos que caracterizam o trabalho escravo contemporâneo”, exemplificou. “Então, só fazemos esse tipo de diligência quando a denúncia, de fato, é mais sólida, no sentido de que acreditamos que vai resgatar trabalhadores”, explicou.
Edição: Graça Adjuto
EBC

Os membros da CPI dos Atos Antidemocráticos da Câmara Legislativa enviaram, nesta sexta-feira (24), ofício ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, solicitando reunião para tratar de questões pertinentes à investigação em curso. De acordo com o presidente da comissão, deputado Chico Vigilante (PT), alguns requerimentos aprovados pela CPI da CLDF têm relação com depoentes ou fatos apurados nos inquéritos em que Moraes é relator.
Os distritais também se colocam à disposição para contribuir com investigação em curso no STF.
* Com informações da assessoria de imprensa do deputado Chico Vigilante
Agência CLDF
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