Reportagens
Mês comemorativo da doação de leite humano realça o valor do aleitamento
Maio está acabando, mas é sempre tempo de falar desse serviço essencial

Agência Brasília* | Edição: Carolina Lobo
4.845Número de bebês que foram alimentados, de janeiro a abril deste ano, graças a 2.140 mulheres aptas a fazer as doações
Cecília estava na 26ª semana de gestação quando a pequena Crystal nasceu, pesando 575 g e com 27 cm. A bebê teve de ficar internada por cinco meses até conseguir respirar sem o apoio do oxigênio e chegar aos 3,05 kg. Nesse período, ela precisou do apoio do banco de leite humano para ser nutrida. “Tinha dias que eu não conseguia produzir 30 ml de leite e minha filha ficava com fome. A Crystal precisou muito do apoio do banco de leite”, relembra a mãe. Hoje aos 6 meses, a criança está em casa, saudável e pronta para começar novas fases na vida.
Crystal é um dos 4.845 bebês que foram alimentados, de janeiro a abril deste ano, graças a 2.140 mulheres aptas a fazer as doações. Mas, além da doação, é fundamental que o trabalho de coleta, pasteurização, divisão em porções e distribuição seja rigorosamente seguido. É esse o trabalho dos bancos de leite humano.
No Banco de Leite do Hospital Regional de Taguatinga (HRT), a busca pelo leite começa às 8h, quando os militares do Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal (CBMDF) saem para fazer a rota da coleta. Duas equipes passam por Águas Claras, Areal, Arniqueira, Taguatinga e Vicente Pires.
Doação
Uma das paradas é na casa da engenheira eletricista Lorena Ribeiro, 31 anos. Ela tem dois filhos e foi doadora nas duas oportunidades. Lorena conta que produzia muito leite e que o primeiro filho, Pedro, não ficava saciado. “Frequentemente pedia para mamar, mas eram curtas, como se estivesse se afogando com os jatos de leite entrando na boca”, relata. Aos três meses dele, ela procurou o apoio do banco de leite para tirar dúvidas sobre a amamentação e recebeu a instrução de que tinha de tirar um pouco no início para diminuir o volume de leite.
Assim, também conheceu o programa e começou a fazer parte. Lorena doou por quatro anos. Há quatro meses, nasceu a pequena Isabella. Novamente, a mãe identificou que o volume era acima do suficiente para a filha e que ela estava engasgando; assim procurou o banco de leite para voltar a ser doadora.
“Um projeto totalmente gratuito, mas que salvou os meus filhos de um desmame precoce. E só de saber que uma produção natural minha é capaz de ajudar outras crianças, é maravilhoso”, afirma. Lorena doa cerca de dois litros por semana. Nesta semana, o leite foi colhido pela subtenente do Corpo de Bombeiros Agda Lúcia Marcelo Gomes.
Coleta
“Eu não busco leite, busco vidas”, afirma subtenente Agda, que há 18 anos desempenha a função de coletar o alimento de casa em casa. “Há crianças que eu busquei o leite quando elas estavam mamando e hoje são mães que doam o leite para mim”, conta.
As equipes vão com a caixa térmica monitorada com termômetro, na qual os leites ficarão armazenados no trajeto. O tempo para esse deslocamento é controlado e, mesmo com os recipientes refrigerados, só é permitido o tempo máximo de seis horas da coleta do primeiro leite até a chegada ao banco de leite, independentemente da quantidade de doadoras. “Visamos preservar o leite, pois buscamos pela qualidade e não quantidade de leite materno”, explica a militar.
O trabalho da subtenente acontece por conta da parceria da Secretaria de Saúde com o CBMDF. Ao todo, 24 militares realizam a coleta domiciliar e o transporte do leite humano. Esse apoio é feito em Brazlândia, Ceilândia, Gama, Paranoá, Planaltina, Plano Piloto, Santa Maria, Samambaia, Sobradinho e Taguatinga.
Os frascos são etiquetados com informações sobre a data da coleta do leite, o nome da doadora, o nome do militar responsável pela busca e a quantidade em cada recipiente. As coletas domiciliares são realizadas de segunda a sexta-feira, conforme agendamento com a equipe dos Bombeiros.
Armazenamento
Ao chegarem ao banco de leite, esses recipientes serão higienizados com álcool 70% e esterilizados. Os potes com o produto ficarão em um freezer em temperatura negativa. Todos vão passar por um cadastro do DataSus, no qual estará registrado o dia que o leite foi coletado pela mãe, o dia em que foi recolhido em casa e dados do cadastro da doadora. “Uma pessoa com acesso a essas informações pode estar no Japão e ter a garantia precisa das informações de qualidade na condição que aquele leite chegou ao banco”, garante a chefe do Banco de Leite do HRT, Graça Cruz.
Esse leite terá uma parte do material coletada para análise e pode ficar armazenada sem passar por uma pasteurização por até 15 dias. Assim, o banco prioriza os leites com a data de coleta mais antiga. O importante é que o material nunca seja recongelado.
Pasteurização
Na data apropriada e definida, em período de até 15 dias, o leite vai ser retirado desse freezer e transferido para caixa térmica com termômetro. Essa caixa será colocada em um compartimento só para ela, como uma janela entre a sala de armazenamento e a de pasteurização. Um lado dessa janela deve ser fechado para o outro ser aberto, em um ambiente esterilizado. “O processo todo busca reduzir ao máximo qualquer risco de contaminação”, explica Graça Cruz.
O leite será descongelado em banho-maria. O método consiste em aquecer de forma lenta e uniforme uma substância existente em um recipiente colocado em contato com o vapor d’água. Após essa etapa, o leite será aquecido a uma temperatura de 62,5°C. Ao atingir a medida, deve ser rapidamente resfriado, em um intervalo de 15 a 20 minutos, para 5ºC.
“É um processamento do leite que faz parte do controle de qualidade e da inativação de micro-organismos prejudiciais à saúde. Por esse processo, 99,9% de todos patógenos são eliminados”, informa Graça. Em seguida, o leite volta a ser congelado e pode ficar armazenado por até seis meses. “Isso significa que esse leite pode alimentar uma criança que ainda nem nasceu.”
O HRT pasteuriza seis litros diariamente, de segunda a quinta-feira. Durante a ação, é coletada amostra desse leite, que será levada para análise, que identifica calorias e acidez. Essas informações serão etiquetadas junto com a data que o alimento foi pasteurizado.
Porcionamento e distribuição
Com os dados de cada leite doado, o material será distribuído de acordo com a indicação médica para a necessidade dos recém-nascidos. “Um bebê cardiopata precisa mais de um leite com calorias do que um bebê prematuro, que necessita de anticorpos”, compara a chefe do Banco de Leite do HRT.
O médico prescreve o tipo ideal de leite para aquele bebê e a quantidade exata. Com essas informações, a equipe responsável pelo porcionamento separa o leite que será encaminhando para as crianças. Esse transporte também segue em caixa térmica com termômetro. O líquido ficará em um potinho que poderá ser dado direto para a criança.
Parceria
Além de todas as funções para promover a alimentação de bebês, o banco de leite tem parceria com a Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes), por meio do Bolsa Maternidade. As mães de recém-nascidos em situação de vulnerabilidade contam, desde maio de 2020, com o auxílio que garante enxoval com 21 itens, entre roupinhas, fraldas e mantas.
A mãe de primeira viagem Julia Gomes Batista, 21 anos, passou por todos os processos de apoio do banco de leite. Quando a pequena Lis nasceu precisou de doação no seu primeiro dia de vida. Agora que a pequena tem 23 dias e consegue mamar o suficiente, a mãe doa o que a filha não dá conta. Recentemente, ela foi buscar o auxílio da Bolsa Maternidade. “Quero ajudar, porque minha filha, quando precisou, teve. Agora posso fazer pelos outros o que fizeram por ela”, agradece.
Mês de Doação de Leite Materno
No dia 19 de maio se comemora o Dia Nacional e Mundial de Doação do Leite Humano. Ações de divulgação do tema acontecem ao longo de todo o mês, mas a doação pode ocorrer ao longo de todo o ano. Para doar, ligue no Disque Saúde 160, opção 4.
*Com informações da Secretaria de Saúde
Reportagens
Histórias inspiradoras de mulheres que superaram o câncer de colo do útero
Se detectada a tempo, doença tem chances altas de cura, sinalizam especialistas

Agência Brasília* | Edição: Chico Neto
A professora do ensino fundamental Sabatha Borges, 41, ia ao médico regularmente e fazia exames ginecológicos com frequência, pois sempre teve o sonho de ser mãe. Aos 39 anos, grávida, sofreu um aborto espontâneo e precisou fazer a retirada do saco gestacional, procedimento que detectou um câncer de colo do útero em fase inicial.

“Para mim, foi um grande baque”, conta. “A gente nunca imagina isso. Eu me senti sem chão. Já estava muito triste por ter perdido meu filho, e ainda receber essa notícia… Foi muito doloroso”.
“Faixa etária de 25 a 64 anos tem a maior ocorrência das lesões de alto grau, passíveis de serem tratadas para que não evoluam para o câncer”Sônia Gallina, médica
Após uma cirurgia difícil em setembro de 2021, quando Sabatha teve parte de seu útero retirado, os médicos fizeram de tudo para manter uma estrutura que permitisse a ela engravidar de novo. Oito meses mais tarde, isso aconteceu naturalmente. E, depois de uma gestação sem sustos, nasceu sua filha Ilke. Hoje curada, Sabatha faz o controle anual e sonha ter outros filhos.
“Nunca tive sintomas e sempre me cuidei”, relata. “Além disso, os médicos da Secretaria de Saúde foram um grande apoio. Tive o suporte e o acompanhamento da doutora Sônia Maria Ferri Gallina e do doutor Fernando Henrique Batista da Mota, do Hospital Regional de Ceilândia. Eles me disseram que meu sonho de ser mãe ainda seria possível.”
A ginecologista Sônia Gallina, do Hospital de Base, lembra que os exames preventivos sempre são importantes: “Se diagnosticado precocemente, o câncer apresenta uma alta taxa de cura e se o tratamento for iniciado logo após o diagnóstico, aumenta a sobrevida e as chances de cura da paciente”.
O Mês da Mulher é marcado também pelo Dia Mundial da Prevenção do Câncer de Colo do Útero, celebrado neste domingo (26).
“Não tenham medo de investigar algo incomum por conta do resultado. Idade não é regra, e o autocuidado salvou minha vida”Sabatha Borges, professora
Conselhos
Terceiro tumor maligno mais frequente na população feminina (com exceção do câncer de pele não melanoma) e a quarta causa da morte de mulheres por câncer no país, o câncer de colo do útero é um problema de saúde pública no Brasil. Apesar de ser uma doença frequente, as lesões iniciais podem ser identificadas pelo teste de Papanicolau e, quando tratadas, evitam o surgimento da doença.
Sabatha aconselha mulheres mais jovens: “Conheçam-se, façam seus exames, como a citologia cervical. Não tenham medo de investigar algo incomum por conta do resultado. Sua vida e sua saúde são o que importa. O diagnóstico precoce aumenta as chances de cura. Idade não é regra, e o autocuidado salvou minha vida”.
Histórico familiar
Especialistas alertam que o histórico familiar é um indicativo para começar a prevenção o quanto antes. Dois ou mais parentes de primeiro grau (mães, irmãs ou filhas) ou de segundo (neta, avó, tia, sobrinha, meia-irmã) com câncer de útero, mama e/ou de ovário já indicam alto risco de surgimento da doença.

É o caso da dona de casa Mislene Dantas, 44. Em 2019, sua mãe teve câncer na bexiga. Um ano antes, Mislene apresentou um sangramento e descobriu que estava com câncer de colo do útero. “O câncer já estava em estado avançado”, lembra. “Tive que começar um tratamento rápido de quimioterapia e radioterapia. Todo o meu tratamento foi no HRT [Hospital Regional de Taguatinga]”. Ainda abalada com a notícia, ela também descobriu um tumor no rim. “Foi literalmente uma bomba na família. Veio tudo de uma vez, eu achei que não ia conseguir. Tive realmente medo de morrer”. Já a mãe de Mislene não sobreviveu.
Mãe de Camila, 24, e Thaynara, 26, Mislene esteve em tratamento durante cinco anos, com radioterapia, quimioterapia e braquiterapia. Hoje curada, faz acompanhamento anual pelo SUS. “Eu me sinto renascida, começando tudo de novo. Sempre que volto ao HRT para repetir os exames, fico com medo, mas neste ano a equipe de médicos me disse que estamos na reta final, que depois desses exames vou estar totalmente liberada. Isso quer dizer que não tenho mais sinal de câncer.”
Mislene agora sonha em voltar a estudar e ajudar pessoas que passam pela mesma situação: “Quero fazer psicologia, tenho muitos sonhos. Pretendo ajudar pessoas e fazer tudo que eu sempre quis. Eu tive uma segunda chance”.
Prevenção
O exame de Papanicolau deve ser feito pelas mulheres ou qualquer pessoa com colo do útero, na faixa etária de 25 a 64 anos que já tiveram atividade sexual. Isso inclui homens trans e pessoas não binárias designadas mulher ao nascer.
“Essa faixa etária tem a maior ocorrência das lesões de alto grau, passíveis de serem tratadas para que não evoluam para o câncer”, aponta a ginecologista Sônia Gallina. “Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a incidência deste câncer aumenta nas mulheres entre 30 e 39 anos de idade e atinge seu pico na quinta ou sexta década de vida.”
A vacina contra o HPV é uma das principais formas de prevenir a doença. Está disponível gratuitamente pelo SUS, sendo destinada a meninas e meninos de 9 a 14 anos. A eficácia do imunizante chega a prevenir até 70% dos cânceres de colo de útero e 90% das verrugas genitais.
Outra orientação é o uso do preservativo em todas as relações sexuais, atitude que favorece a diminuição do risco de contágio do vírus. As consultas médicas, bem como os exames preventivos periódicos, também são fundamentais para o diagnóstico de qualquer alteração na saúde.
*Com informações da Secretaria de Saúde
Reportagens
Especialistas dizem que produzir trabalho decente no Brasil é desafio
Resgate de trabalhadores em condição degradante tem aumentado

Produzir trabalho decente no Brasil é desafiador, mas caminho necessário para o enfrentamento ao trabalho análogo ao escravo. A avaliação é de especialistas ouvidos pela Agência Brasil em meio a repercussões do grande número de casos de resgate de trabalhadores nessas condições nos últimos meses.
Para o procurador do Ministério Público do Trabalho em Alagoas (MPT-AL) e coordenador regional de Combate ao Trabalho Escravo, Tiago Muniz Cavalcanti, o enfrentamento dessas situações se faz em duas vertentes: a repressiva e a preventiva.
“Quando falamos em prevenção, existem duas formas, a prevenção primária é quando o crime ainda não ocorreu. A secundária é quando o crime já ocorreu e precisamos acolher essa vítima, reverter os fatores de vulnerabilidade e reincluí-la no trabalho digno, para que não volte a ser novamente vítima do trabalho escravo. A vertente preventiva, tanto primária quanto secundária, é o nosso grande gargalo”, explicou.
Segundo ele, é dever do Estado implementar políticas públicas de acesso a direitos sociais, sobretudo trabalho decente, nas comunidades das vítimas em potencial. “O que fazemos diariamente, eu digo Estado, Ministério Público e sociedade civil que combate trabalho escravo, é tentar reverter todos os fatores de vulnerabilidade da população, para que tenhamos o mínimo de exploração. Ou seja, para que a exploração não seja aviltante a ponto de termos que resgatar aqueles trabalhadores de situações que chamamos atualmente de análogas à escrava porque a escravidão já não existe”, disse Cavalcanti.
Na mesma linha, a diretora executiva do Instituto do Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (InPacto), Marina Ferro, avalia que o período da pandemia de covid-19 levou ao aumento do desemprego e a oportunidades mais precarizadas de trabalho. “Combater o trabalho escravo é também produzir oportunidade e reduzir a desigualdade. Quanto mais você tem desigualdade social, mais fácil vai ficar de precarizar as situações, quanto mais você tira as pessoas da pobreza, da fome e gera oportunidades dignas, menos isso acontece”.
Para ela, a herança escravocrata no Brasil ainda é muito forte, pois com a abolição da escravidão não houve a inserção social de quem vivia nessa condição. “Por isso, continuamos um país muito desigual, que reproduz muita vulnerabilidade e que não trata o ser humano com dignidade, como um par”, afirmou.
As terceirizações, segundo Marina, também são fatores importantes para a precarização do trabalho. “É fator muito sensível para as empresas se anteciparem, prestar atenção e fazer a devida diligência na sua cadeia. Elas precisam olhar a cadeia produtiva, contratos com terceiros e não se eximir dessa responsabilidade. Então, acho que há um papel do Estado no combate ao trabalho escravo e um papel das empresas, que podem antecipar essa questão e evitar que isso aconteça”.
A legislação brasileira atual classifica como trabalho análogo à escravidão toda atividade forçada ou submetida a jornadas exaustivas, ou ainda desenvolvida sob condições degradantes ou com restrição da locomoção do trabalhador. Também é passível de denúncia qualquer caso em que o funcionário seja vigiado constantemente, de forma ostensiva, por seu patrão.
Outra forma de escravidão contemporânea reconhecida no Brasil é a servidão por dívida, que ocorre quando o trabalhador tem seu deslocamento restrito pelo empregador, sob alegação de que deve liquidar determinada quantia de dinheiro.
O presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), Bob Machado, alertou que, ao longo dos últimos anos, houve redução de orçamento e “redução drástica” do número de auditores fiscais do trabalho. Hoje, o país tem o menor número de auditores fiscais dos últimos 33 anos e cerca de 45% dos cargos estão vagos.
“Isso tem impacto direto no combate ao trabalho escravo, ao trabalho infantil, na inserção de aprendizes no mercado de trabalho, na inserção de pessoas com deficiência, no combate a fraudes trabalhistas, que visam majoritariamente reduzir a remuneração de trabalhadores, e também a busca por ambiente de trabalho mais seguro, visando à redução de acidentes”, disse Machado. Ele destacou outras atribuições dos auditores que visam à criação de trabalho decente.
Na última semana, o ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, informou que pretende promover concurso para recompor o quadro de fiscais do trabalho.
Aumento de casos
O início de 2023 trouxe novamente à tona casos de trabalhadores em situações análogas à de escravidão. No Rio Grande do Sul, 207 trabalhadores enfrentavam condições de trabalho degradantes nas terras das vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton, em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha. As empresas assinaram termo de ajuste de conduta com o Ministério Público do Trabalho (MPT) e se comprometeram a pagar R$ 7 milhões em indenizações.
Em Goiás e Minas Gerais, um grupo de 212 trabalhadores que prestava serviço a usinas de álcool e produtores de cana de açúcar foi resgatado, durante operação do Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Escravo. Na última sexta-feira (24), mais pessoas foram resgatadas, dessa vez no festival de música Lollapalooza, no Autódromo de Interlagos, em São Paulo. Em todos esses casos, os trabalhadores eram contratados por uma empresa de prestação de serviços terceirizados que intermediava a mão de obra.
Desde 1995, as fiscalizações e os resgates de trabalhadores são feitos pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel, coordenado por auditores fiscais do Trabalho, em parceria com o MPT, a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União, entre outras instituições.
Os resgates vêm aumentando nos últimos anos. Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), até o início de março as autoridades resgataram 523 vítimas de trabalho análogo ao escravo. Em 2022, conforme o Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho, 2.575 trabalhadores foram encontrados em situação de escravidão contemporânea, um terço a mais que em 2021.
O MPT e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) também desenvolveram o Observatório de Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, com dados e informações sobre políticas de trabalho.
O procurador Tiago Cavalcanti destacou que, de acordo com a organização internacional Walk Free Foundation, em 2014 o Brasil tinha cerca de 150 mil pessoas escravizadas. “Os números mais recentes mostram que a gente tem 370 mil, ou seja, mais do que duplicou o número de pessoas escravas, pessoas que estão, na verdade, aguardando resgate”, disse ele, explicando que a média de resgates é de pouco mais de 2 mil trabalhadores por ano.
Precarização do trabalho
Para Cavalcanti, no mundo capitalista sempre existirá escravidão. “A escravidão, na sua accepção mais pura e fiel, que é a exploração aviltante do ser humano, ou seja, o uso e o descarte de seres humanos, é inerente à nossa sociedade”, afirmou, acrescentando que a solução para o problema passa por uma mudança cultural.
Adicionalmente, segundo ele, a agenda de políticas públicas dos governos que se sucederam após o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff não favoreceram a população de baixa renda e aumentaram o nível de miserabilidade da população. Por isso, o número de pessoas que se submetem a qualquer trabalho aumentou vertiginosamente.
“Eu poderia citar inúmeros exemplos. Tivemos um estancamento da política de reforma agrária, um aumento da desigualdade social, o aumento das relações autoritárias de poder, ou seja, o coronelismo voltou com força muito maior. Tivemos uma precarização dos níveis de proteção social, ou seja, a legislação trabalhista foi flexibilizada, desregulamentada, a proteção social, da Previdência Social, ela foi flexibilizada. Tivemos o fenômeno da uberização (uso de aplicativos) das relações de trabalho de forma muito intensa, de certo modo fomentado, incentivado pelos últimos governos”, disse o procurador.
Para o secretário de Inspeção do Trabalho do MTE, Luiz Felipe Brandão de Mello, a narrativa do governo anterior, que defendia que “o importante é o trabalho e não só os direitos”, intensificou a precarização do emprego no Brasil. “Então, uma série de fatores juntos que levam a esse quadro. É inacreditável que em pleno 2023 estejamos discutindo o trabalho escravo no Brasil. Isso não é trabalho de uma instituição, mas preocupação que deve ser de toda a sociedade e ter grande mobilização”, destacou.
O presidente do Sinait, Bob Machado, concorda que, associada à cultura da escravatura, a reforma trabalhista e a terceirização irrestrita promovida pelos últimos governos reduziram as condições de trabalho decente. “Nós vivemos um período muito grande de contraposição entre o trabalho e os direitos, o que é direito, o que é emprego. E nesse sentido alguns interpretaram de maneira extrema, reduzindo os trabalhadores à condição análoga de escravos”, observou.
Cadeia produtiva
Segundo Marina Ferro, do InPacto, o setor produtivo precisa de práticas políticas para a prevenção de trabalho escravo nas cadeiras, dedicar recursos e esforços constantes na identificação de riscos. “As empresas precisam se comprometer com a causa e criar procedimentos, ter estrutura interna, ter gestão de riscos sobre aqueles possíveis e até os potenciais que possa vir a ter numa cadeira produtiva.A partir desse mapeamento de riscos inerente a cada setor, você consegue então dedicar esforços, ações para evitar que eles aconteçam”, disse.
O Instituto do Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (InPacto) é apoiado por grandes empresas do país e é uma das respostas institucionais do setor privado do Brasil ao problema. Ele atua na busca de soluções para as cadeias produtivas globais, na prevenção ao trabalho escravo, envolvendo diversos atores e organizações sociais.
Uma das ferramentas criadas pelo instituto é o Índice de Vulnerabilidade InPacto, que permite estabelecer uma escala de risco de trabalho escravo no país, para que as empresas se antecipem na promoção do trabalho decente em seus locais de produção.
“Está ficando cada vez mais claro também, não só pela nossa legislação, mas também para quem exporta, por exemplo, para a União Europeia, há uma legislação de fora que está cada vez mais colocando a questão da devida diligência como algo essencial para os setores produtivos. Então, cada vez mais, as empresas vão ser cobradas pela responsabilidade de fiscalizar toda a sua cadeia, então não vai ter como dizer ‘contratei de um terceiro, não tenho responsabilidade’. O ‘eu não sabia’ não vai mais rolar, a empresa do futuro precisa se precaver”, afirmou Marina.
O agronegócio é o setor econômico mais frequentemente envolvido em casos de trabalho análogo ao escravo. De 1995 a 2022, das 57.772 pessoas resgatadas dessa situação, 29% atuavam na criação de bovinos, 14% no cultivo de cana-de-açúcar e 7% na produção florestal.
Para a especialista, a transformação do agro no Brasil está atrelada à sua produtividade. “Há setores que já demonstram uma mudança, tanto no sentido de trazer a renda para o produtor, mas também de dar boas condições de trabalho. Então, acho que que é preciso uma transformação cultural, principalmente na forma de pensar essa produção, mas também de oferecer condições. Com essa legislação cada vez mais forte, tanto nacional quanto internacional, a questão reputacional, se as empresas não começarem a se antecipar e se adequar, lá na frente a conta chega”.
O procurador do Trabalho, Tiago Cavalcanti, explica que nem todos os beneficiários do trabalho escravo podem ter o dolo (a má-fé) de escravizar, mas a culpa eles têm. “É muito fácil saber que as condições de execução do trabalho são precárias na medida em que o pagamento é muito baixo, à medida que você não tem uma fiscalização correta. As empresas que estão na ponta da cadeia, ou seja, empresas poderosas economicamente, a partir do momento em que elas subcontratam e fecham os olhos, passam a ser responsáveis por aquilo que ocorre na sua cadeia produtiva, principalmente quando a produção ocorre na sua propriedade”, disse, citando como exemplo o caso das vinícolas no Rio Grande do Sul.
Cavalcanti chama de “cegueira deliberada” essa atitude dos setores produtivos. “A identificação é óbvia. Ou seja, é uma cegueira proposital, ela [a empresa] fecha os olhos, finge que não conhece aquela realidade, quando na verdade ela tem todos os elementos para saber que aquilo existe de fato”, explicou.
Instrumentos de repressão
Na vertente da repressão, do combate ao trabalho escravo, o procurador avalia que o Brasil, “até certo ponto”, é modelo em âmbito internacional. “Temos alguns instrumentos importantes, como o Grupo Móvel que deflagra a força tarefa de combate ao trabalho escravo, a lista suja, existem órgãos que lidam de forma boa em relação à repressão, do ponto de vista administrativo, trabalhista e criminal”. Ele lembrou que, recentemente, a Justiça reconheceu a imprescritibilidade do crime trabalho escravo.
Cavalcanti confia que, com o novo governo, “teoricamente mais compromissado com a política de direitos humanos”, esses instrumentos sejam preservados. O procurador contou que a estrutura de combate a esse crime esteve ameaçada, mas conseguiu resistir durante o período pós-impeachment graças à mobilização dos órgãos públicos fiscalizadores e da sociedade civil organizada.
Segundo o procurador, a última grande medida de combate ao trabalho escravo é do governo Dilma, a emenda constitucional que alterou o Artigo 243 da Constituição Federal para prever a expropriação de terra daqueles que escravizam. “É importante ressaltar que não veio o governo do nada e criou esses instrumentos. Temos esses instrumentos porque o Brasil foi demandado em âmbito internacional para que fizesse alguma coisa em face do trabalho escravo”, destacou.
A lista suja do trabalho escravo é o cadastro de empresas autuadas pelo Ministério do Trabalho por submeter seus empregados a condições análogas à escravidão. A inclusão do nome do infrator na lista só ocorre após decisão administrativa final. Ela é publicada a cada seis meses e a última foi em outubro do ano passado.
Segundo Marina Ferro, um dos compromissos dentro do Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo é que as empresas usem a lista suja para não fazer acordos comerciais com empresas que estejam lá. “Então, a lista suja se tornou um super instrumento para que as empresas conhecessem quem estivesse utilizando mão de obra análoga à escrava e impusessem restrições comerciais a essas pessoas jurídicas. É ferramenta de demonstração. Nenhuma empresa quer estar lá, porque além de ter a consequência monetária, também tem a reputacional. Depois é complicado para as empresas reconstruir”, explicou.
Segundo o secretário de Inspeção do Trabalho do MTE, Luiz Felipe Brandão de Mello, o objetivo do governo é fortalecer a fiscalização para identificar e coibir a exploração criminosa da mão de obra no país. “Temos que fazer uma avaliação, na verdade, para ver realmente o que está acontecendo para essa explosão do número de casos. Em cima disso, teremos que fazer análise para ver haverá redirecionamento das ações. Diferentemente do que já foi, no passado, que era muito concentrado numa determinada região do país, agora está ocorrendo em todas as áreas, então temos que ver como atuar”.
Na última semana, o ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, também defendeu a revisão de normas de terceirização trabalhista.
Para o presidente do Sinait, Bob Machado, a revisão da reforma trabalhista e da política de terceirização precisa ser feita no âmbito do Congresso Nacional, de maneira ampla, em debate com as entidades da sociedade civil. “Para que possa, a partir daí, resultar em alterações na legislação que visem prioritariamente proteger os trabalhadores, garantir trabalho digno para todos”, destacou.
Canais de denúncias
As denúncias de trabalho análogo ao escravo podem ser feitas pela população, de forma anônima, por meio de canais como o Disque 100, o site do Ministério Público do Trabalho (MPT) e o Sistema Ipê, da Auditoria Fiscal do Trabalho.
O procurador do Trabalho, Tiago Cavalcanti, alerta que as denúncias precisam ser fortes e com o máximo de informações possíveis, que levem ao resgate de trabalhadores. Segundo ele, as diligências envolvem diversos órgãos e têm um custo para o Estado.
“Às vezes, as denúncias que chegam são frágeis, ou seja, não têm a localização exata, a identificação do empregador, não diz quais são os fatos que ensejam trabalho escravo, ou seja, o trabalhador tá sem comida, tá dormindo no curral com a vaca, enfim, os fatos que caracterizam o trabalho escravo contemporâneo”, exemplificou. “Então, só fazemos esse tipo de diligência quando a denúncia, de fato, é mais sólida, no sentido de que acreditamos que vai resgatar trabalhadores”, explicou.
Edição: Graça Adjuto
EBC

Os membros da CPI dos Atos Antidemocráticos da Câmara Legislativa enviaram, nesta sexta-feira (24), ofício ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, solicitando reunião para tratar de questões pertinentes à investigação em curso. De acordo com o presidente da comissão, deputado Chico Vigilante (PT), alguns requerimentos aprovados pela CPI da CLDF têm relação com depoentes ou fatos apurados nos inquéritos em que Moraes é relator.
Os distritais também se colocam à disposição para contribuir com investigação em curso no STF.
* Com informações da assessoria de imprensa do deputado Chico Vigilante
Agência CLDF
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