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Afinal, a Independência do Brasil foi revolucionária ou conservadora?

Quando se declarou independente de Portugal, há 200 anos, o Brasil optou por preservar características que vinham do período colonial: a forma monárquica de governo, a dinastia de Bragança no poder, a unidade territorial, a economia agrária de exportação e a escravidão de origem africana.
Isso quer dizer que a máxima “se quisermos que as coisas continuem como estão, elas terão que mudar”, do escritor italiano Giuseppe di Lampedusa, poderia ser um bom resumo da Independência do país? Não exatamente.
De acordo com historiadores, seria simplista descrever a emancipação brasileira como exclusivamente conservadora. O processo foi complexo. Muitos aspectos do Brasil, de fato, se conservaram. Outros tantos, contudo, mudaram de forma revolucionária.
No aspecto político, a revolução saltou aos olhos. Em 7 de setembro de 1822, um país novo surgiu e um sentimento de brasilidade até então inexistente começou a se formar.
Antes da Independência, as capitanias mantinham pouca ou até nenhuma conexão entre si. O Pará, por exemplo, se relacionava mais com Lisboa do que com o Rio de Janeiro. Além disso, a população não se enxergava como brasileira, mas como portuguesa da América ou, no máximo, fluminense, paulista, pernambucana, “bahiense” etc.
Por essa razão, o que os revolucionários da Inconfidência Mineira planejaram em 1789 foi que apenas a capitania de Minas Gerais se tornasse independente, e não a América portuguesa toda. A integração nacional teve que ser construída a partir de 1822, ainda que aos poucos, para que o Brasil independente vingasse. Não foi algo natural.
Outro aspecto de ruptura residiu nos poderes do monarca. Apesar de D. Pedro I ser filho do rei lusitano, não se pode dizer que houve continuidade, já que a Monarquia implantada no Brasil foi bem diferente da que vigorava em Portugal. D. João VI, como representante do velho absolutismo, mandava e desmandava a seu bel-prazer. D. Pedro I, não.
O historiador Antonio Barbosa, professor da Universidade de Brasília (UnB) e consultor legislativo do Senado, explica:
— D. Pedro I chegou ao poder no pós-Revolução Francesa, na onda do liberalismo político, da qual nem seu pai, já em Lisboa, escaparia. O Brasil nasceu como uma Monarquia constitucional representativa, e não absolutista. O imperador precisou submeter-se a uma Constituição e repartir o poder com um Parlamento eleito por cidadãos. Isso não foi algo trivial e, com adaptações, se mantém no Brasil até hoje. Na época, foi uma novidade tão grande que motivou crises durante todo o Primeiro Reinado e levou à abdicação de D. Pedro, em 1831.
Também foi inovador o caráter dado aos cidadãos brasileiros pela primeira Constituição, outorgada por D. Pedro I em 1824. Nos tempos do absolutismo, a lei fazia distinção entre ricos e pobres, nobres e plebeus.
As Ordenações Filipinas, código legal que se aplicava a Portugal e seus territórios ultramarinos, autorizavam o marido a matar tanto sua mulher traidora e quanto o amante dela. Havia uma única exceção: sendo o marido traído um “peão” e o amante de sua esposa um homem “de maior qualidade”, o assassino poderia ser condenado a três anos de desterro na África.
Isso mudou. Graças ao liberalismo da Constituição de 1824, todos os cidadãos se tornaram — ao menos no papel — iguais perante a lei. No passado colonial, até os descendentes do criminoso poderiam também ser castigados. No Brasil imperial, as punições passaram a ser exclusivamente individuais.
A historiadora Neuma Brilhante, professora da UnB e autora de um capítulo do livro recém-lançado Várias Faces da Independência (Editora Contexto), lembra que a igualdade legal abrangia até mesmo as pessoas negras:
— É certo que o Brasil surgiu como um país escravista, mas não houve leis que segregassem uma parte da população especificamente por causa da cor da pele. Isso pode ser considerado uma novidade. Não há como negar, claro, que havia racismo na vida prática. Legalmente falando, porém, todos eram iguais. No Brasil, as leis não podiam ser usadas para impedir que pessoas não brancas estudassem, ocupassem empregos públicos ou frequentassem determinados lugares. Não foi assim nos Estados Unidos. Nos países da América espanhola, as leis mantiveram os indígenas em posição social subalterna.
A primeira Constituição do Brasil, ao mesmo tempo, teve aspectos conservadores em relação à cidadania. Só tinha direito a voto quem contasse com renda anual de pelo menos 100 mil réis ou, a depender da votação, 200 mil réis. Para ser eleito deputado, o mínimo eram 400 mil réis. Para senador vitalício, 800 mil réis. Os homens que não tinham renda suficiente, assim como todas as mulheres, se encaixavam na sociedade como cidadãos de segunda categoria. Os escravizados simplesmente não eram cidadãos.
— Por mais abrangente que seja, nenhuma revolução se faz totalmente de transformações. Sempre existem aspectos de conservação — afirma o historiador João Paulo Pimenta, professor da Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro Independência do Brasil (Editora Contexto).
A manutenção dos trabalhadores escravizados, naturalmente, foi um dos aspectos conservadores do Brasil autônomo. Mesmo assim, ressalva o historiador, a escravidão pós-Independência não foi exatamente igual à escravidão pré-Independência.
Antes de 1822, ela esteve ligada ao mercantilismo e teve menor escala, utilizada principalmente na mineração do ouro e na plantação da cana-de-açúcar e do algodão. Depois, integrou-se ao nascente capitalismo industrial, com o Brasil posicionado no mundo como exportador de café, e exigiu mão de obra muito mais numerosa.
Após a Revolução Industrial, o café deixou de ser item de luxo e se transformou em produto popular do mercado capitalista, além de ter servido de estimulante para que os operários das novas indústrias americanas e europeias suportassem as jornadas de trabalho extenuantes.
Antes de 1822, quase não se questionava no Brasil a existência do trabalho cativo. Depois da Independência, os questionamentos surgiram dentro e fora do país, e o poder político nacional precisou agir para neutralizar os defensores da abolição e garantir a sobrevida da escravidão.
— A Independência foi um projeto fortemente centrado na continuidade da escravidão. Para quem viveu aquele momento, tratou-se de manutenção. Para nós, que hoje podemos enxergar todo o processo histórico, tratou-se de renovação, transformação. Com a Independência, instalou-se no Brasil um novo tipo de escravidão — analisa Pimenta, da USP, acrescentando que essa exploração ligada ao mercado capitalista é conhecida no meio acadêmico como “segunda escravidão”.
Os velhos livros didáticos de história costumavam descrever a Independência do Brasil como um processo único, uma verdadeira jabuticaba, quase uma aberração. Os autores, para comprovar a tese, comparavam a América portuguesa com a América espanhola, que, ao tornar-se independente, mergulhou em guerras civis, aboliu o trabalho servil, pulverizou-se em diversos países e adotou o modelo republicano.
Hoje se sabe que a Independência do Brasil envolveu, sim, confrontos armados. O jornalista Leonencio Nossa, autor do livro As Guerras da Independência do Brasil (Editora Topbooks), afirma:
— Houve violência e correu muito sangue. Travaram-se batalhas entre brasileiros e portugueses na Bahia, no Piauí, no Maranhão, no Grão-Pará. A situação só se acalmou em 1826. Mesmo assim, grupos políticos e sociais descontentes com o Brasil surgido na Independência continuaram se rebelando e pegando em armas até 1853.
Ele lembra que a Batalha do Jenipapo, no sertão do Piauí, em 1823, envolveu quase 4 mil soldados dos dois lados e deixou pelo menos 200 mortos. No mesmo ano, nas proximidades de Belém, cerca de 200 apoiadores de Portugal que estavam detidos no porão de um navio de guerra foram sumariamente executados, asfixiados por nuvens de cal viva. O episódio fico conhecido como tragédia do Brigue Palhaço.
O próprio D. Pedro I atribuiu a morte de um de seus filhos, ainda bebê, à violência da época da Independência. Perseguido por tropas portuguesas, que queriam levá-lo à força para Portugal, fugiu com a família do Paço de São Cristóvão para a Fazenda de Santa Cruz. O príncipe João Carlos já tinha a saúde debilitada e piorou na fuga. Ele não suportou o calor do verão do Rio de Janeiro e morreu em fevereiro de 1822, semanas antes de completar um ano de vida. Se não tivesse morrido, teria sido o segundo imperador brasileiro.
Os países vizinhos do Brasil aboliram a servidão indígena e a escravidão africana não por humanidade, mas, entre outras razões, para atrair o máximo possível de soldados para os exércitos formados em suas guerras de independência. E nenhum desses países dependia economicamente tanto dos escravizados negros quanto o Brasil.
Os Estados Unidos continuaram sendo escravistas quando se separaram da Grã-Bretanha, em 1776. Mesmo com esse aspecto conservador, os historiadores não deixam de chamar a independência das 13 colônias de Revolução Americana. A própria Revolução Francesa, de 1789, uma das mais notáveis rupturas da história da humanidade, não aboliu o trabalho escravo nas colônias pertencentes à França.
Quanto à manutenção na Monarquia no Brasil, deve-se considerar que decisivo para isso foi a longa permanência do rei D. João VI no Rio de Janeiro. Rei europeu nenhum havia vivido em território colonial. Aliás, rei nenhum havia sequer posto os pés em qualquer território fora da Europa.
De qualquer forma, a Coroa não foi uma exclusividade do Brasil. O Haiti e o México tiveram imperadores quando se libertaram respectivamente do jugo francês e espanhol.
As elites do território brasileiro assistiram com atenção aos movimentos independentistas da América espanhola e, com o objetivo de impedir semelhante pulverização territorial, souberam identificar quais comportamentos deveriam ser copiados e quais deveriam ser evitados.
A historiadora Cecilia Helena de Salles Oliveira, professora do Museu do Ipiranga, da USP, e autora do livro Ideias em Confronto: embates pelo poder na Independência do Brasil (Editora Todavia), resume:
— Mais ou menos no mesmo período, ocorreram a independência dos Estados Unidos, a Revolução Francesa e a independência da América espanhola. Cada episódio teve suas particularidades, mas todos eles fizeram parte de um mesmo movimento maior que sacudiu uma parte grande do mundo. A Independência do Brasil esteve nessa onda e se ligou a esses acontecimentos. Não foi algo isolado.
Ela lembra que a cidadania, por ser um conceito ainda em construção, não era ampla em parte nenhuma do mundo. A exigência de uma renda mínima de 100 mil ou 200 mil réis anuais para ser eleitor no Brasil, portanto, não chegava a ser uma excrescência. Salles Oliveira compara:
— Os Estados Unidos adotaram um sistema semelhante depois que se tornaram independentes. O principal requisito para que um homem americano pudesse votar foi ser pagador de impostos. Se pagava impostos, é porque tinha renda e patrimônio.
De acordo com a historiadora Neuma Brilhante, da UnB, os projetos políticos do presente estão sempre disputando o passado, buscando impor-lhe significados distintos. Ela explica que a visão depreciativa do grito do Ipiranga como algo puramente conservador, por exemplo, partiu dos republicanos no fim reinado de D. Pedro II:
— Os republicanos tiveram sucesso ao marcar a Monarquia como espaço atrasado e retrógrado. Convenceram que a melhor opção seria a República, que, na imagem construída por eles, se apresentaria como o espaço da modernidade e do progresso. Tiveram tanto sucesso nessa construção que a imagem negativa da Monarquia marca profundamente o Brasil contemporâneo.
A historiadora afirma que a disputa política em torno dos significados da Independência continuou depois da derrubada da Monarquia e apareceu em diversas ocasiões, com interpretações simplistas:
— Não é de forma inocente que se centra a Independência na figura de D. Pedro I. Quando se afirma que ela só foi possível graças à vontade e à força de um único homem, um herói, silenciam-se todos os atores sociais que participaram. No máximo, citam-se aquelas personalidades que estiveram por trás do herói, dando-lhe suporte, como Leopoldina e José Bonifácio. Não sobra espaço para gente comum, minorias, oposição, resistência, projetos alternativos. É como se o povo não fosse agente da história. Esse tipo de interpretação casa com perspectivas autoritárias de governo. Foi o que a ditadura militar fez no 150º aniversário da Independência, em 1972, quando trouxe de Portugal os ossos de D. Pedro I. O passado é usado como instrumento de legitimação do presente e de projetos políticos para o futuro.
Fonte: Agência Senado
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Ação educativa em bares orienta contra direção após consumo de álcool
Com o projeto Rolê Consciente, o Detran promove intervenções artísticas sobre os riscos de beber e dirigir; iniciativa acontece nesta sexta, na Asa Norte

Agência Brasília* I Edição: Débora Cronemberger
Na noite desta sexta-feira (29), acontece mais uma edição do projeto Rolê Consciente do Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran-DF). A ação educativa percorre bares e restaurantes levando conscientização ao público para não dirigir, se beber. A ação de hoje ocorre na Asa Norte, de 18h às 21h.

O Rolê Consciente é uma ação que envolve intervenções artísticas com bonecos, MCs do trânsito com suas rimas e, também, um papo sério com a entrega de material educativo e palestras dos professores de trânsito do Detran-DF. Toda a ação é voltada ao tema sobre os efeitos do álcool no organismo, orientações de segurança quanto à utilização de celular ao volante, a importância do respeito à velocidade máxima das vias, faixa de pedestre, respeito aos ciclistas e muito mais.
De acordo com o Código de Trânsito Brasileiro, dirigir após o consumo de álcool é infração gravíssima, com multa no valor de R$ 2.934,70 e suspensão do direito de dirigir por um ano. O Rolê Consciente acontece às quintas e sextas-feiras e, a partir de outubro, será aos sábados e domingos também.
*Com informações do Detran
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Parceria visa fortalecer o esporte inclusivo no DF
Secretarias de Esporte e Lazer e da Pessoa com Deficiência vão elaborar ações para ampliar o acesso das pessoas com deficiência à prática esportiva em todas as suas esferas e em todas as faixas etárias

Agência Brasília* | Edição: Igor Silveira
A Secretaria de Esporte e Lazer (SEL-DF) e a Secretaria da Pessoa com Deficiência (SEPD-DF) se uniram para potencializar o paradesporto e esporte inclusivo no DF. As ações serão efetivadas por meio do Programa de Esporte Inclusivo.
A SEL-DF tem trabalhado para fomentar a visibilidade e valorização do paradesporto na cidade. Para isso, a pasta vem realizando eventos com o objetivo de dar celeridade ao acesso das pessoas com deficiência à prática esportiva em todas as suas esferas e em todas as faixas etárias.

O secretário Julio Cesar Ribeiro explica que uma das principais prioridades da pasta tem sido criar ações para dar visibilidade ao paradesporto. “A valorização e o investimento no paradesporto são fundamentais para construir uma comunidade mais inclusiva, onde cada cidadão, independentemente de suas habilidades, encontre espaço e oportunidades no universo esportivo do Distrito Federal”, destaca. O esporte é uma ferramenta essencial para a superação de barreiras”, completa Ribeiro.
Para o secretário da Pessoa com Deficiência, Flávio Santos, as duas secretarias poderão estabelecer uma política pública específica e efetiva voltada para atender às pessoas com deficiência nessa área. “As ações já existiam, mas serão ampliadas e melhoradas por meio desse trabalho porque, aí sim, vai ser construído um programa de esporte inclusivo”, afirma.
As pastas já trabalhavam de forma conjunta em ações pontuais, com o apoio aos paratletas por meio dos programas Compete Brasília e Bolsa Atleta, além das atividades oferecidas nos Centros Olímpicos e Paralímpicos. “Eu, como secretário e como atleta, sempre evidenciei a importância do esporte como uma poderosa ferramenta de inclusão”, finaliza Flávio.
Inclusão
Em maio deste ano, o Centro Olímpico e Paralímpico do Gama, recebeu mais de 350 inscrições para o Festival Paralímpico, que, pela primeira vez, ocorreu em Brasília. O evento realizado pela SEL-DF proporcionou aos participantes a inclusão por meio da vivência lúdica nos esportes paralímpicos.
O Campeonato Regional Centro-Oeste de Bocha Paralímpica foi outro marco na capital federal. O evento, que recebeu o apoio inédito da pasta, serviu como etapa classificatória para o Campeonato Brasileiro de Bocha Paralímpica, além de ter proporcionado aos atletas a oportunidade de ter representado suas associações e região em uma competição de nível nacional.
Outro evento que contou com o apoio da pasta foi a etapa regional das Paralimpíadas Escolares, que fomentou a inclusão e o progresso dos jovens atletas com deficiência, reunindo a participação de mais de 900 competidores. Os jogos ocorreram entre os dias 31 de agosto e 1º de setembro.
Outras competições paradesportivas também foram apoiadas pela SEL, como o Brasileiro de Adestramento Paraequestre, Centro-oeste de Handebol de Surdos e o Campeonato Regional de Goalball.
*Com informações da Secretaria de Esporte e Lazer do Distrito Federal (SEL-DF)
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Poeta vencedora do Prêmio Jabuti transita do slam à literatura grega
Autora voltou à Estação Guilhermina para lançamento de seu livro

Foi na praça ao lado da Estação Guilhermina do Metrô, na zona norte paulistana, que Luiza Romão começou a declamar versos em público. Ali, acontece desde 2012, toda última sexta-feira do mês, a batalha de rimas conhecida como Slam da Guilhermina. Agora, dez anos depois desse encontro com a poesia falada, a autora retornou ao espaço para fazer um dos eventos de lançamento de Também Guardamos Pedras Aqui, seu livro que venceu o último Prêmio Jabuti.
“Quase pedir a benção”, resume a poeta sobre os sentimentos sobre esse momento que ela enxerga como o fechamento de um ciclo. “Acho que é bastante significativo, fazer isso bem antes de ganhar o mundo, assim, sabe? Antes de ir pro mundão”, comenta a respeito da turnê que se aproxima nos próximos dias. Até janeiro de 2024, a previsão é que Luiza tenha passado pela França, Argentina, México e Alemanha para divulgar o livro premiado, que já tem prontas traduções para o francês e espanhol.
Formada em artes cênicas, Luiza se aproximou da poesia atraída pelo modelo performático do slam, que começou a frequentar em 2013. As batalhas de rimas foram criadas por Marc Smith, nos Estados Unidos, na década de 1980. As competições, que atualmente acontecem em diversas partes do mundo, começaram, segundo a autora, como uma forma de tornar a leitura de poesia mais atraente nos saraus. “Em geral, em noites de cabaré, quando músico ia se apresentar, todo mundo prestava atenção. Quando ia uma pessoa do stand up, todo mundo prestava atenção. Na hora que o poeta ia declamar, era o momento que geral ia no banheiro, comprar cerveja, acender cigarro”, conta.
A performance da poesia falada, que compõe a cena cultural das periferias paulistanas, acabou atraindo Luiza, que tinha vindo em 2010 para a cidade, para estudar na Universidade de São Paulo. “Não estava no meu horizonte de vida virar poeta. Foi através do encontro com as batalhas de slam, com os microfones abertos, com o movimento saraus, que eu comecei a escrever”, lembra.
Uma estética que se relaciona com as temáticas que atravessam a juventude, especialmente a que vive fora dos bairros mais privilegiados. “Uma poesia muito engajada. Uma poesia que pensa o seu tempo histórico, que é fundamentada na dimensão coletiva da palavra. Toda essa partilha da performance”, enumera sobre as razões que a aproximaram dos versos e das rimas.
Atualmente com 31 anos, Luiza tem quatro livros publicados. O Também Guardamos Pedras Aqui é diretamente inspirado no épico grego Ilíada, de autoria atribuída a Homero, que retrata a conquista de Troia.
Veja os principais trechos da entrevista com a autora:
Vamos começar falando um pouco do livro Também Guardamos Pedras Aqui. Queria entender um pouco por que essa opção pela poesia grega e também o que isso significa na sua trajetória.
Eu sou formada em teatro. Tem algo que, de certa forma, eu discuto no livro, talvez de uma maneira não tão direta, que é essa obsessão nossa pelos gregos, que não diz respeito só a mim, Luiza, mas a nossa sociedade que passou por esse processo brutal de colonização e que ainda hoje continua referenciando de maneira tão intensa nos currículos escolares, nas produções culturais, esse imaginário cânone greco-latino. Então, na faculdade de artes cênicas, por exemplo, eu estudei dois anos de Grécia antiga.
Isso é algo que também se verifica nos cursos de letras e em muitos outros cursos. Você estuda tragédia grega. Você estuda comédia grega. Você estuda poética de Aristóteles, O Banquete do Platão. Uma tradição que é tão distante a nós. E, muitas vezes, a gente acaba não olhando para outras tradições e cosmovisões que estão mais próximas. As diferentes tradições latino-americanas andinas, maias e tudo mais ou as tradições africanas.
Quando eu termino [o curso universitário] eu vou fazer EAD, que a escola de artes dramáticas da USP, eu tenho que retomar essa galera [os gregos]. Eu estava lá, lendo pela segunda vez a mesma tradição, e faltava a Ilíada.
Então, eu estava indo viajar, fazer um mochilão pela Bolívia e pelo Chile. Eu falei: ‘Ah, vou pegar a Ilíada. Por que não? [risos]. É pesado, mas, pelo menos, é um volume só’. Meu irmão, Caetano, tinha uma edição que era leve, de papel bem fininho.
Foi onde eu li e fiquei muito chocada. Eu costumo dizer que o Pedras nasce um pouco desse horror a essa narrativa fundante da tradição ocidental, que é narrativa muito violenta. Eu sabia que era a história de uma guerra, que é como é contada, né? Mas, na verdade, não é a história de uma guerra, é a história de um massacre.
O que diferencia uma guerra de um massacre?
A guerra é quando, minimamente, você tem pé de igualdade. Você tem possibilidades reais dos dois lados ganharem. É algo que vai ser disputado na batalha. E, quando você lê a Ilíada, você vê que os troianos nunca tiveram chance de ganhar, porque os deuses eram gregos. Acho que foi a maior indignação para mim, porque isso eu não sabia antes de ler. Mas você tem o tempo inteiro a batalha acontecendo no campo terreno, entre gregos e troianos, e uma batalha acontecendo no plano divino, digamos assim, no Olimpo. Então, você tem os deuses que são pró-troianos e os deuses que são pró-gregos. E tem um momento que tem uma treta gigante, e Zeus [deus do trovão e líder do panteão grego] fala: ‘ninguém intervém na guerra, nenhum dos deuses’. E aí os troianos passam a ganhar a guerra.
Só que aí tem uma coisa que é muito doida, porque a gente tem essa ideia de perfeição atrelada à divindade, no catolicismo. No panteão dos gregos, na mitologia grega, são deuses que estupram, que têm inveja, que trapaceiam. Hera [esposa de Zeus] faz uma trapaça com Zeus. Ela vai até o fundo do oceano, pega um sonífero e Zeus dorme. Aí, ela e Atena [deusa associada a sabedoria] voltam para a guerra, quebram o pacto.
Os deuses são trapaceiros e Ulisses [herói grego] é trapaceiro também, porque é uma trapaça o que ele faz com cavalo. Não é fair play [jogo justo]. Eu acho que tem essa dimensão do massacre. Além de toda a devastação de um povo, das inúmeras formas de aniquilação, de tortura de subjugação, de estupro, de violência que estão no livro, tem isso de que é impossível esse povo ganhar. [Por orientação de Ulisses, os gregos fingem se retirar do campo de batalha e oferecem um cavalo gigante de madeira como presente aos troianos. Porém, uma parte dos soldados gregos se esconde dentro da escultura para, durante a noite, abrir os portões da cidade e provocar a derrota de Troia.]
No poema Homero, você diz que os gregos “foram capazes de” e traz uma lista, que seria de atrocidades, mas que está coberta por uma tarja preta, de censura, para em seguida dizer que, apesar desses horrores, eles, ao menos devolveram o corpo de Heitor, príncipe de Troia, ao contrário do que se fez, muitas vezes na ditadura militar brasileira. Você quer dizer que vivemos horrores maiores do que os troianos?
Isso tem muito a ver com dimensão quase que performativa da minha leitura. Eu estava lendo nessa viagem e passei pelo local onde Che Guevara [guerrilheiro que participou da revolução cubana] foi assassinado, no interior da Bolívia. Inclusive, tinha uma menina lá [parte do grupo], que era Tânia. Eles estavam tentando articular uma revolução comunista no coração da América Latina. A ideia seria sair do coração da Bolívia e se espalhar pelo continente inteiro. Eles são delatados, passam por uma emboscada e são assassinados.
O Che Guevara morre. A cabeça dele fica exposta em uma dessas vilas e o corpo fica desaparecido, por medo de que o local em que ele estivesse enterrado virasse um mausoléu de peregrinação comunista, um lugar de memória. O corpo dele só é encontrado 30 anos depois. Um dos militares disse que ele estava enterrado numa pista de pouso militar. Hoje você tem um museu do Che Guevara nesse local.
Eu queria aprofundar um pouco o uso desse recurso da censura, que aparece em outras partes do livro.
Eu acho que essa questão da censura ou do apagamento de arquivos é algo que também está muito presente quando a gente fala dessa história, dessa imposição de uma história única, dessa construção de um relato produzido pelo poder. Então, desses arquivos que são censurados, apagados e tudo mais.
Também, de certa forma propõe esse jogo com os leitores, da mesma forma que eu estou tentando reconstituir uma história que é muito apagada, vamos tentar reconstituir juntos. Talvez seja exercício imaginativo nosso também.
Você disse que Ulisses não jogava no fair play [jogo justo]. Tem um texto em que parece que você fala disso, invertendo a condição de herói e vilão, no poema Polifemo [gigante de um olho só que comia pessoas]. “Ninguém te cegou não/ não foi Ulisses/ aquela noite o policial não tinha identificação”
Ulisses, para mim, é um personagem que a gente, enquanto ocidente, vai emular como a inteligência. Primeiro, tudo que a gente sabe das viagens dele [narradas na Odisseia], é ele o que conta. Ou seja, ele pode estar mentindo, ele pode ter inventado tudo. Para mim, é um narrador nada confiável. Principalmente, porque do que a gente sabe, sim, de dados dele, é o personagem que faz o Cavalo de Tróia, que ganha na trapaça.
Então, Polifemo estava lá e, de repente, chegam esses homens, se metem [nos domínios dele] e ainda o cegam. E tem essa que a grande sabedoria do Ulisses é falar: “Eu não sou ninguém”. Então, Polifemo começa a gritar [após ter o olho furado]: “ninguém me cegou”.
Isso também foi uma chave de leitura para o caso do Sergio Silva [fotógrafo que perdeu o olho nas manifestações de 2013] e de vários e várias manifestantes que foram baleados com bala de borracha nos últimos anos, seja no Brasil, seja no Chile, onde a gente teve de fato uma forma sistemática da polícia de dilacerar o globo ocular de muitas pessoas.
E que ninguém cegou essas pessoas. É a mesma situação bastante recorrente quando a gente fala das ações das polícias militares, seja pelo não uso de identificação, seja porque cada vez mais são policiais que estão com balaclava ou com capacete.
Você fala em diversos momentos sobre violência (policial, contra a mulher), que é uma temática muito recorrente nos slams. Como o movimento dos slams atravessa a sua trajetória?
Minha trajetória é completamente atravessada pelo slam. Eu vim do teatro, sou das artes cênicas. Não estava no meu horizonte de vida virar poeta. Foi através do encontro com as batalhas de slam, com os microfones abertos, com o movimento saraus, que eu começo a escrever. Principalmente, por ser uma poesia muito engajada. Uma poesia que pensa o seu tempo histórico, que é fundamentada na dimensão coletiva da palavra. Toda essa partilha da performance é uma forma poética também de encarar esses temas.
O slam não dissocia política e poética. É óbvio que é indissociável. Mas tem alguns lugares que se tem ilusões que é possível dissociar disso. Então, eu começo a frequentar em 2013 e continuo, não mais como slammer. Já aposentei as chuteiras faz um tempo. Mas, de vez em quando, fazendo a parte de produção. Fui fazer um mestrado sobre isso.
Em que momento você se aposentou do slam?
Como slammer, é muito normal a gente ter ondas, né? É tipo jogador de futebol, a carreira é curta. A gente vai lá, batalha uma, batalha outra, brinca durante dois ou três anos. É muito normal. Assim, você tem uma renovação da cena muito constante. Então, eu comecei a frequentar em 2013, já tinha tido uma onda antes de mim. Eu sou dessa segunda geração e já estão na sexta geração, agora.
Então, eu fui fazer outras paradas em termos de artista, de criação artística. Mas, ao mesmo tempo, é um lugar que eu gosto muito de estar. Eu continuo frequentando muito nesses últimos anos.
De alguma forma, tentei elaborar bastante a reflexão sobre a cena na dissertação. Acho que é uma forma de agradecer também esses anos todos de trajetória. É um trabalho que é a primeira parte é bastante dedicada a pensar historiografia do slam nos Estados Unidos. Eu traduzi muita coisa que não está disponível em português.
Também analiso quatro poemas da Luz Ribeiro, de Pieta Poeta, do Beto Bellinati e da Ana Roxo. Pensando como que essas questões todas vão para o corpo do poema. Porque, muitas vezes, quando a gente fala de slam, a gente só faz uma abordagem antropológica ou socializante, sendo que a gente está falando de poesia. E eu acho que ler esses poemas também na sua potência estética, o que eles têm de disruptivo, no que eles propõem de linguagem, no que eles contestam em toda uma tradição literária brasileira, isso é muito potente também.
Edição: Sabrina Craide
ebc
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