
Na região do Alegrete, ambientalistas
da Fundação Ibirapuitã
estão sempre promovendo manifestações
contra a caça esportiva
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Silvestre Gorgulho,
de Brasília
A Argentina é o paraíso para
os caçadores de cervos, patos e até
pumas. Segundo a jornalista Marcela Valente,
cerca de sete mil caçadores estrangeiros
visitam a Argentina todos os anos para praticar
o “esporte”. E por que a Argentina
se transformou em um ponto de encontro dos
caçadores? Por vários motivos:
pela variedade da fauna, pela facilidade de
acesso e pela falta de controle de fiscalização.
E no Brasil? Bem, no Brasil as leis são
mais duras. Há uma certa tolerância
a caça esportiva apenas no Rio Grande
do Sul, quanto ao abate, sobretudo, de marrecões.
Mas o assunto é polêmico e provoca
grandes debates. Para o ambientalista Ari
Quadros, da Fundação Ibirapuitã,
essa atividade só poderia surgir numa
humanidade afundada em guerras e violências
de toda ordem. Num mundo onde tem gente que
se diverte, matando animais indefesos. “No
estado gaúcho mata-se de tudo um pouco,
o ano inteiro. O interessante é que
os agressores da fauna normalmente conseguem
escapulir. Mas os matadores de bois e vacas,
no entanto, são identificados e presos”,
denuncia Ari Quadros. Já outros acham
que a caça é uma necessidade
para os produtores rurais, que produzem os
alimentos que facilmente chegam às
nossas mãos pelos supermercados. E
vão mais longe: a simples proibição
da caça não garante a proteção
da fauna. A maior prova disso é o Brasil,
onde a caça é proibida em praticamente
todo o país, mas é praticada
de forma intensa e predatória. De certa
feita, um ambientalista escreveu para a Folha
do Meio Ambiente dizendo que, como funcionário
de uma Unidade de Conservação,
preferiria mil vezes uma reserva de caça
com seu ecossistema preservado no entorno
desta UC do que uma monocultura. Mesmo que
o produtor de soja ou criador de gado não
permita a caça dentro da sua propriedade.
E acrescentava: os grandes vilões da
biodiversidade são o desmatamento e
a fragmentação de habitats,
não a caça, muito menos a caça
controlada. Bem, o tema é mais do que
polêmico porque tem nuances econômicas,
ecológicas e filosóficas. Para
ajudar a entender um pouco mais esta questão
e buscar um pouco mais de luz para esta polêmica,
entrevistamos o advogado e ambientalista Antônio
Silveira Ribeiro dos Santos. Magistrado aposentado
e criador do Programa Ambiental A Última
Arca de Noé < www.aultimaarcadenoe.com
> Antonio Silveira fala dos prós,
contras e do futuro da caça esportiva
no Brasil e no mundo.
Antônio
Silveira – ENTREVISTA
Folha do Meio – Como
o senhor vê a questão da caça,
sob o enfoque do meio ambiente, do turismo
e do lazer?
Antônio Silveira – Vejo como
um dos mais controvertidos e interessantes
temas da atualidade. Um tema que tem que ser
discutido sob a ótima ambiental, econômica
e até filosófica. A caça,
como esporte e lazer, é praticada ainda
hoje em muitos países como os Estados
Unidos, a Inglaterra, a França, a Itália
e até o Brasil, no caso do Rio Grande
do Sul. Mas também começa a
existir, por parte de ecologistas e entidades
protetoras de animais, uma crescente resistência.
Sempre existe o debate, com argumentos a favor
e contra.
FMA – Quais são
os principais argumentos contra e a favor?
AS – Normalmente, os principais argumentos
favoráveis à caça esportiva
são econômicos, lazer e até,
por incrível que pareça, ecológicos.
Como argumento econômico, é fácil
justificar, pois a pesca e a caça nos
EUA geram mais de 100 bilhões de dólares.
Imagine que na França há 1,6
milhão de caçadores licenciados,
na Itália 1,5 milhão, na Espanha
1 milhão e na Grã-Bretanha 600
mil. Dizem ainda que esta atividade é
o sustentáculo de uma enorme indústria
internacional de turismo, armamentos, munições,
automóveis, roupas e equipamentos especializados,
editorias e tecnologia em geral.
Como lazer, evidente que os adeptos da caça
esportiva dizem que é um momento para
relaxar. E, sob o ponto de vista ecológico,
dizem que caçadores e pescadores são
grandes zeladores da natureza, pois dependem
dela. Dizem também que podem exercer
um equilíbrio, quando algumas das espécies
tendem a ter grande aumento de indivíduos,
sem predadores naturais.
FMA – E os argumentos
contrários?
AS – Olha, podemos elencar, em primeiro
lugar, um argumento turístico-econômico,
ou seja, a crescente conscientização
ambiental e a crescente atividade do turismo
de observação. Tudo isso leva
à conseqüente preservação
de áreas naturais. A observação
de animais selvagens vivos na natureza tem
crescido muito. O turismo de observação
é o segmento do ecoturismo onde o ecoturista
passa a observar a beleza da natureza. Vai
contemplar aves, animais, pegadas e até
baleias. O turista tem o gosto e o prazer
de admirar os animais, sobretudo aves, em
seus habitats . Quer fotografar, gravar seus
cantos e eternizar na própria retina
aquele momento e aquelas imagens.
A força do
turismo de observação

Antônio Silveira: “Com a
proibição da caça
em qualquer das modalidades, agregada
ao desenvolvimento do turismo de observação,
teríamos uma excelente “sala
de aula natural. Toda a natureza pode
ajudar na formação e conscientização
do cidadão moderno ”.
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FMA – Quais as principais
formas de turismo de observação?
AS – As principais formas do turismo
de observação são as
de aves (birdwatching ou birding) e a observação
de baleias e golfinhos (whale watching). É
bom salientar que hoje no mundo tem cerca
de 100 milhões de praticantes. São
mais de 80 milhões só para aves.
Veja o seu potencial econômico. O turismo
de observação propicia, entre
outras coisas, renda para regiões naturais
que têm pouca possibilidade de desenvolver
as atividades econômicas tradicionais;
emprega a massa rural dando oportunidade de
desenvolvimento pessoal, criando ainda novas
oportunidades para atividades profissionais
para biólogos e guias especializados
etc. Segundo a “BirdLife” os americanos
gastam por ano 29 milhões de dólares
em atividades relacionadas a observação
da vida selvagem. O que mostra a importância
turístico-econômico da fauna
preservada, naturalmente, com a proibição
da caça.
FMA – E a possibilidade
de se criar animais em grandes fazendas para
servirem “ao instinto selvagem”
dos praticantes da caça esportiva?
AS – Essa é uma boa questão.
Aí tem dois aspectos. O científico
e o ecológico. Em termos científicos,
a manutenção e os estudos de
animais em estado selvagem permitem melhores
resultados técnicos, diferentemente
em se utilizando animais criados em cativeiro
ou em reservas altamente controladas. Nestas
reservas eles apresentam, normalmente, comportamento
alterado devido ao estresse. No campo ecológico
devemos observar que não se pode comparar
a masto-fauna africana, americana e asiática,
com a das florestas tropicais como as da América
do Sul. Lá, os animais de porte como
os gnus, antílopes, alces, búfalos,
entre outros, vivem normalmente em grandes
bandos. Já, aqui, nas florestas tropicais,
os animais de porte maior como as antas, onças,
capivara e os veados, ou são solitários
ou andam em pequenos grupos. Isso impede que
possam ser utilizados como potencial de caça
amadora, pois não haveria tanta caça
para tantos “caçadores”.
Em se liberando a caça aos nossos raros,
solitários e furtivos animais, em pouquíssimo
tempo não restaria mais nenhum.
FMA – E a criação
de animais selvagens em fazendas de caça?
AS – Nem é muito fácil
e muito menos econômico, justamente
porque nossos animais andam em pequenos grupos
e são extremamente territoriais. Sem
contar um outro grave problema: a introdução
em áreas naturais de cães de
caça e de animais de outras regiões,
para a prática da famigerada caça,
podem introduzir doenças exóticas.
Existe, sim, a possibilidade da disseminação
de doenças como febre aftosa.
FMA – Sob o ponto de
vista jurídico, como o Brasil convive
com a questão da caça esportiva?
AS – Olha, sob o ponto de vista jurídico,
no Brasil a caça era regida pela Lei
5.197/67 que era o Código de Caça.
Agora, a caça está proibida
pelo artigo 225,§1º, VII, da Constituição
Federal, que impõe ao Poder Público
e à coletividade o dever de “proteger
a fauna e flora, vedadas, na forma da lei,
as práticas que coloquem em risco sua
função ecológica, provoquem
a extinção de espécies
ou submetam os animais a crueldade”.
O art.29, da Lei 9.605/98 [Crimes Ambientais]
também proíbe expressamente
a caça, permitindo apenas o abate de
controle (art.37, II e IV).
Além disso, deve-se observar que há
uma evolução no sentido de compreender
que a fauna é um bem difuso, ou seja,
de todos nós, e que deve ser preservada
por todos. Sempre é bom lembrar que
nos termos do art.225, de Constituição
Federal, o meio ambiente equilibrado e sadio
é um direito de todos.
FMA – A gente vê
também que muitos ambientalistas são
contra a caça esportiva por motivos
filosóficos. Pela defesa da vida, num
mundo já tão violento…
AS – É verdade e isso é
muito importante. Filosoficamente, temos que
observar que esta é uma colocação
humanista e que deve ser valorizada. Aliás,
tem sido valorizada pelas pessoas mais conscientes
e integradas nos novos conceitos mundiais
de preservação do ambiente global.
E tem ainda a questão ética.
Temos que nos conscientizar que o respeito
entre os seres humanos e as demais formas
de vida está crescendo cada vez mais,
fruto da conscientização ambiental.
Neste sentido, não há mais espaço
para a caça pelo mero prazer de caçar,
de lazer, de relaxar.
FMA – Dá para
concluir que a caça esportiva é
uma atividade ecologicamente incorreta e economicamente
inviável?
AS – Dá sim. E mais: além
de proibida pela legislação,
sua prática não trás
nenhuma vantagem à sociedade, ao contrário,
propicia uma perda em termos socio-econômico-ecológico.
Isso sem contar que estaremos mostrando que
somos muito insensíveis com os demais
seres viventes. Pior: a caça esportiva
está na contramão da história
ética da humanidade.
FMA – E existe ainda
o aspecto educativo?
AS – Isso mesmo! Não dá
para terminar sem falar do aspecto educativo.
Com a proibição da caça
em qualquer das modalidades, agregada ao desenvolvimento
do turismo de observação, teríamos
uma excelente “sala de aula natural”.
Os campos, as florestas, toda a natureza pode
ajudar na formação e conscientização
do cidadão moderno.
A natureza virgem, cheia de vida, é
um lugar perfeito para as pessoas terem aulas
de meio ambiente. Todos elementos estão
ali à disposição. Não
para serem caçados, mas para serem
estudados, pesquisados, observados e contemplados.
Nada como uma aula de educação
ambiental a céu aberto. Não
se pode esquecer que educação
ambiental é hoje uma disciplina indispensável
e obrigatória pela Lei 9.795, de 27/4/1999.