Entrevistas
Éverton Vargas – Entrevista sobre a agenda ambiental brasileira
Agenda ambiental do Brasil para 2004/05
EVÉRTON VARGAS – Entrevista
Agenda ambiental brasileira
Da mesma forma que Copa do Mundo sem o Brasil não tem graça,
também não tem agenda ambiental sem o Brasil, pois 25% da biodiversidade do mundo está aqui
“Em política externa, não podemos nos apresentar com posições cindidas. |
Silvestre Gorgulho e Milano Lopes
Se há um tema que requer da diplomacia muito mais atenção, muito mais preparo e muito mais compreensão é justamente o meio ambiente. Por quê? Simples, porque esse é um tema que não tem fronteiras. Se o tema é importante por si só, imagina para o Brasil que tem o maior potencial de água doce do mundo, a maior floresta tropical e 25% da biodiversidade mundial. Muito bem preparado profissionalmente, o Itamaraty não brincou em serviço. Foi buscar um de seus melhores quadros para dirigir o Departamento de Meio Ambiente e Temas Especiais: o gaúcho Everton Vargas. Diplomata de carreira, o ministro Vargas trabalha há mais de uma década com a agenda ambiental brasileira e é considerado pelos profissionais do setor como um dos principais negociadores quando o assunto é meio ambiente. Impressiona pela capacidade técnica e política. O Departamento de Meio Ambiente e Temas Especiais do Itamaraty é um dos três Departamentos da Subsecretaria Geral de Assuntos Políticos do MRE. Essa Subsecretaria tem a responsabilidade de coordenar, acompanhar e instruir a participação das delegações do Brasil nos foros multilaterais mais diversos, como em direitos humanos, em desarmamento ou em meio ambiente. No caso de meio ambiente, o Departamento coordena a participação do Brasil nas diferentes conferências internacionais. Tem três divisões: de Meio Ambiente, de Política Ambiental e Desenvolvimento Sustentável e do Mar, da Antártida e do Espaço. Nessa entrevista, o ministro Everton Vargas fala da agenda ambiental brasileira para o segundo semestre de 2004 e primeiro de 2005.
Quais os eventos mais significativos da agenda internacional de meio ambiente que o Brasil cumprirá nos próximos doze meses?
Everton Vargas – Essa agenda é muito ampla. Existem não apenas as conferências das partes, das convenções e dos instrumentos em que o Brasil é parte, mas existem também reuniões técnicas que muitas vezes são extremamente importantes politicamente, porque elas preparam as decisões que vão acontecer nas conferências das partes. Por exemplo, realizou-se, em junho, em Bonn, na Alemanha, a reunião dos órgãos subsidiários da Convenção do Clima. A partir dela será delineada toda a negociação da 10ª Conferência das Partes da Convenção do Clima, que vai acontecer em Buenos Aires, de 6 a 17 de dezembro deste ano.
Essa vai ser uma conferência extremamente importante. Se a Rússia efetivamente ratificar o Protocolo de Kioto a tempo, pode acontecer que, na Argentina se possa realizar também a 1ª Reunião das Partes do Protocolo. Esta é uma reunião que poderá ser crucial.
E se a Rússia não ratificar Kioto?
Vargas – Se a Rússia não ratificar o Protocolo de Kioto, nós poderemos estar também frente ao desafio de saber como é que nós vamos tratar a questão do clima. Em setembro próximo teremos uma reunião informal que é co-presidida pelo Brasil e pelo Japão – será a segunda reunião que vai se realizar em Tóquio, nos dias 15 e 16 de setembro – sobre o futuro do regime internacional de mudanças do clima. Pelo artigo 3.9 do Protocolo de Kioto, as negociações para o chamado Segundo Período de Cumprimento do Protocolo, que seria após 2012, teriam que se iniciar em 2005.
Brasil pode dar um salto tecnológico
Como o protocolo não está em vigor, como é que se vai fazer?
Vargas – Verdade, como vamos fazer? Negociar um outro Protocolo? Vamos buscar uma outra alternativa? Isso é uma coisa que nós temos que discutir, porque os países industrializados ainda não cumpriram com as suas metas. A própria União Européia está com dificuldades para cumprir as suas metas de redução de emissão de gases que provocam o efeito estufa, tal como estabelecido no Protocolo de Kioto. E como se sabe, o Protocolo de Kioto responde apenas por 5,2% da redução das emissões de gases que provocam o efeito estufa. Ele não resolve o problema da estabilização da concentração dos gases. Ele é apenas um primeiro passo que a comunidade internacional deu sobre isso.
A questão climática é a mais importante nas relações internacionais?
Vargas – Não. Ela é muito importante, mas não é a mais importante. Igualmente importante, como ela, é a questão da biodiversidade. Na verdade, a questão do clima está intimamente ligada à biodiversidade. Há nessa discussão várias incógnitas, como a vontade política dos países ricos de cooperar no processo de transferência de tecnologia em matéria de mudança do clima, a questão do cumprimento das metas pelos países industrializados até 2012, a não participação americana no Protocolo de Kioto etc.
E como vai se negociar o futuro do regime?
Vargas – O Protocolo de Kioto não foi negociado assim de chofre. Os países membros da Convenção sobre Mudança do Clima sentaram à mesa e chegaram a um acordo para a negociação. Houve o chamado Mandato de Berlim, que foi adotado em 1994 pela Conferência das Partes e que estabeleceu o que seria negociado. Nele foi demarcado o território de negociação. A Convenção do Clima, por tratar de temas como energia, meio ambiente, padrões de produção e consumo, é, na verdade, uma convenção sobre o desenvolvimento. É que ela é tão importante e que chamou a atenção tanto da comunidade científica quanto da comunidade empresarial e das ONGs quando foi negociada.
Porque ela poderia vir a ser – se não houvesse atenção para aqueles aspectos – uma espécie de camisa-de-força especialmente para os países em desenvolvimento. E foi exatamente por isso que, no artigo 4.7 da Convenção, foi estabelecido que, para os países em desenvolvimento, a primeira prioridade é o desenvolvimento econômico e social e a erradicação da pobreza. Por isso, os países em desenvolvimento nunca aceitaram metas de redução de emissões.
Essa aceitação significaria que eles teriam que fazer uma contribuição para um problema que eles não geraram, e ao mesmo tempo, teriam que pagar muito mais caro pelo processo de desenvolvimento.
E como se encaixa nesse quadro a questão da biodiversidade?
Vargas – A Convenção da Biodiversidade está centrada na idéia de utilização dos recursos naturais. A questão aí é o seguinte: para um país como o Brasil, que tem 25% da biodiversidade do mundo, a utilização dos recursos biológicos e genéticos existentes em seu território significa um novo padrão de industrialização. Poderemos dar um salto tecnológico.
Hoje, qualquer revista científica mostra onde estão sendo feitas as grandes descobertas: em cima da genética, do DNA, das propriedades das plantas. Para o Brasil isso é uma riqueza estratégica. Não é uma riqueza que vai permanecer intocada. Não vamos ser uma espécie de jardim botânico do mundo. Trata-se de um bem econômico que tem que ser conservado para ser usado de forma sustentável, criando renda, emprego, melhoria das condições econômicas e sociais, em particular para as comunidades onde os recursos estão localizados, e protegendo o meio ambiente. A grande discussão que se tem hoje, em torno da biodiversidade, é o reconhecimento dos direitos dos países de origem pela pesquisa e pelo beneficiamento de seus recursos genéticos e biológicos. E os países industrializados obviamente não desejam reconhecer isso, pois, até a negociação da Convenção sobre Diversidade Biológica, entendiam que esses recursos eram um bem comum da humanidade.
Qual a relação entre essa discussão e o patenteamento?
Vargas – Essa discussão sobre os direitos dos países de origem está intimamente ligada à questão do patenteamento. Quão adequados são os direitos de propriedade intelectual para proteção dos recursos biológicos, genéticos e do conhecimento tradicional? Trata-se de uma questão ligada ao patenteamento da vida. Entramos numa discussão muito grande sobre se é possível ou não patentear. Outro problema está relacionado aos conhecimentos tradicionais. Como vamos patentear o conhecimento de uma comunidade, se ele vem se estratificando através das gerações? Estamos, no campo do direito, numa disjuntiva e numa fronteira.
Aí se trata de um direito coletivo…
Vargas – Justamente. O direito de propriedade intelectual foi criado para preservar o inventor frente à sociedade, para fazer com que, se alguém inventou uma determinada tecnologia, tenha o seu conhecimento preservado e receba a retribuição adequada pelo esforço que desempenhou.
Diferente é quando se trata dos conhecimentos tradicionais, pois não estamos diante de um direito individual, mas de um direito coletivo. Infelizmente, a ciência jurídica, hoje, ainda não tem uma doutrina adequada para a proteção dos direitos coletivos.
Não existe nos acórdãos dos tribunais superiores dos diferentes países uma decisão sobre a proteção do conhecimento tradicional. Então, isso está gerando uma grande discussão, iniciada com a decisão adotada pela Cúpula Mundial do Desenvolvimento Sustentável, em Johannesburgo, a respeito da negociação de um regime internacional sobre repartição de benefícios.
Essa negociação já teve um primeiro passo na recente Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica, que aconteceu em Kuala Lumpur, na Malásia, em fevereiro. E a primeira reunião do grupo de trabalho aberto sobre acesso e repartição de benefícios em relação a recursos genéticos, após a reunião de Kuala Lampur, acontecerá em fevereiro do próximo ano, na Tailândia.
Não vamos ser uma espécie de jardim botânico do mundo.
A natureza é um bem econômico que tem que ser conservada para ser usada de forma sustentável
Calendário da agenda ambiental brasileira para 2004/05
Esse é o coração da agenda?
Vargas – Sim, esse é o coração da nossa agenda porque ela envolve tecnologia, investimento, emprego, renda, propriedade intelectual, conservação, política nacional de meio ambiente e, simultaneamente, uma política de desenvolvimento sustentável. E isso vale tanto para a Convenção sobre Mudança do Clima como para a Convenção sobre Biodiversidade. As duas, depois, vão estar presentes em diferentes áreas onde os dois temas serão discutidos.
Quando discutimos a questão do comércio internacional de espécies ameaçadas na CITES – vamos ter uma Conferência das Partes que vai acontecer em outubro próximo – estamos falando de uma questão intrínseca à biodiversidade. Quando, no próximo ano, tivermos uma reunião do Comitê de Florestas da FAO, em março, e a 5ª Reunião do Foro das Nações Unidas sobre Florestas, prevista para maio ou junho, estaremos também tratando de biodiversidade e de clima.
Quando conversamos sobre áreas úmidas, de especial interesse ecológico, protegidas pela Convenção Ramsar, também está envolvida a questão da biodiversidade. E aí entra também um aspecto comercial extremamente importante que normalmente nessa discussão sobre meio ambiente passa um pouco despercebida. Refiro-me à questão dos subsídios agrícolas, que são pagos pelos países industrializados aos seus agricultores.
Há uma relação entre subsídios agrícolas e meio ambiente?
Vargas – Ao lidar com a questão da conservação da biodiversidade, sobretudo nos países europeus, onde a biodiversidade foi praticamente toda devastada, verificamos que esses países tentam, nas negociações, passar uma justificativa nova para seus subsídios agrícolas, com base na conservação da biodiversidade.
Isso é um perigo, porque no momento em que permitimos que os países industrializados paguem aos seus agricultores, a pretexto de garantir a conservação da biodiversidade, estamos de fato, concordando em que eles continuem subsidiando a sua agricultura. E, ao mesmo tempo tentam impedir que países como o Brasil, que têm uma grande biodiversidade, e que precisam desenvolver processos e produtos a partir da utilização sustentável dessa biodiversidade, com a aplicação de biotecnologia, tenham acesso aos grandes mercados consumidores, por causa justamente dos subsídios.
De fato, processos e produtos desenvolvidos nos países industrializados vão, com base na conservação, ainda que pequena, de sua biodiversidade, estabelecer barreiras ao acesso dos produtos dos países em desenvolvimento. Há, aí, uma ligação com toda essa questão de negociações comerciais internacionais.
O que eu quero mostrar é que há uma enorme inter-relação entre a questão ambiental e todas as outras questões que estão aí, e que muitas vezes, quando se lê na imprensa, aparece como uma coisa dissociada. Temos que ter muito cuidado, sobretudo em se tratando de um país como o Brasil, que tem extensão territorial, os maiores recursos hídricos do mundo, os maiores recursos da biodiversidade, a maior floresta tropical do mundo, um parque industrial altamente desenvolvido, que é o sexto maior produtor de sementes do mundo, que é o país que tem recursos minerais riquíssimos, muitos deles inexplorados. Para o Brasil, essas questões todas são estratégicas.
O debate sobre meio ambiente, para o Brasil, é tão importante quanto discutir questões comerciais e de acesso aos mercados. Tudo está interligado.
As convenções internacionais, para o Brasil, não serão um obstáculo à nossa autonomia decisória para a utilização dos nossos recursos naturais.
O beneficiamento desses recursos é a grande discussão da humanidade. Se recorrermos aos romanos, verificamos que, quando eles conquistaram a Europa e a África, estavam atrás dos recursos naturais também.
O Brasil tem razões para influenciar na agenda global
Temos que buscar fórmulas para manter a indústria brasileira funcionando e ganhar mercados
Se não há Copa do Mundo sem o Brasil, pode-se dizer que também não há discussão sobre o meio ambiente sem o Brasil?
Vargas – Sem dúvida. Não há tema ambiental no qual o Brasil não tenha uma participação relevante. O Brasil é um país que tem uma influência enorme por várias razões. Temos uma comunidade científica respeitada, temos uma tradicional capacidade de negociação diplomática, temos uma indústria relevante e temos também áreas deprimidas. Então, ao mesmo tempo em que defendemos a necessidade de criar emprego e renda para as pessoas que moram nas áreas menos favorecidas da Federação, também temos que pensar na participação da indústria brasileira, ao implementar nossa obrigação internacional. Temos que buscar fórmulas para manter a indústria brasileira funcionando e evitar que ela se veja impedida de penetrar nos mercados.
Como o senhor vê a questão dos transgênicos?
Vargas – O Brasil é parte do Protocolo de Cartagena. Nós estivemos na 1ª Reunião das Partes do Protocolo, realizada em fevereiro passado. Trata-se de questão importante, na qual existe também enorme debate dentro da sociedade. Em política externa, não podemos nos apresentar com posições cindidas.
Temos que buscar sempre um mínimo denominador comum entre os diferentes órgãos interessados, pois o governo, obviamente, é o mandatário da sociedade. É necessário que haja uma discussão, que neste momento está ocorrendo no Congresso Nacional, onde tramita uma lei sobre biossegurança. É um tema que tem diferentes facetas. É uma tecnologia de enorme relevância hoje em dia no mundo, mas temos que saber exatamente qual é o seu verdadeiro impacto.
É preciso que nós tenhamos cuidado, porque o Brasil, ao mesmo tempo em que tem uma enorme biodiversidade, é também um grande exportador de grãos. Não podemos fazer uma coisa em prejuízo da outra. É preciso procurar um meio termo. Daí a necessidade de que haja uma negociação interna, de que haja diálogo. As questões que temos hoje em dia na mesa não são daquelas que as sociedades têm opiniões unânimes.
Na verdade a questão ambiental é bem controvertida…
Vargas – Sim, a questão ambiental é controvertida por natureza, porque todos nós estamos conscientes do impacto que teremos se ocorrer uma enorme devastação, ou se forem introduzidos organismos exóticos em um determinado ecossistema, por exemplo. Este é, aliás, um dos temas mais discutidos na área de biodiversidade, pois a invasão de espécies exóticas pode gerar enorme impacto sobre a agricultura, em função de pragas, ou para a biodiversidade marinha, em decorrência do despejo da água de lastro dos navios.
Verificamos que impactos desse tipo podem acarretar não só danos à fauna e à flora, como também enormes prejuízos econômicos. Há vinte anos, quem falasse de espécies exóticas invasoras era considerado um exótico.
E por falar em espécies invasoras, há discussão internacional sobre o tema?
Vargas – Teremos ainda este ano uma reunião do Acordo Internacional sobre Albatrozes e Petréis. Aparentemente trata-se apenas de passarinhos. Mas não é assim. A captura dessas aves aquáticas ocorre de maneira não intencional, em decorrência do tipo de rede usada por grandes pescadores, de maneira geral. O que se procura é modificar os métodos de pesca para torná-los mais sustentáveis e com isso evitar a captura indiscriminada de albatrozes e petréis, cuja importância para o equilíbrio ecológico é enorme, por serem aves migratórias.
O Brasil recebe, no sul, albatrozes vindos de longas distâncias. Estamos falando de coisas que formam uma agenda nova e até agora pouco compreendida, cujas ramificações ainda não foram completamente definidas, e que têm um significado econômico relevante.
E em relação ao semi-árido e à desertificação?
Vargas – Agora em agosto vai haver um evento em Fortaleza chamado CCD+10, destinado a celebrar os dez anos da Convenção de Combate à Desertificação e Seca. Para isso estamos convidando representantes dos pontos focais da Convenção na América do Sul para um diálogo destinado a definir medidas de colaboração para implementar no continente.
Isso é um tema extremamente importante, pois em certos Estados brasileiros, inclusive no Rio Grande do Sul, temos indícios de processos de desertificação. É inacreditável que um Estado que há 40 anos era considerado celeiro do Brasil, hoje tenha um problema de desertificação. E isso é o resultado notório da degradação ambiental e do mau gerenciamento ambiental. Em relação ao semi-árido, que domina a maior parte do território de vários Estados do Nordeste, entendemos que ele poderá tornar-se o grande celeiro do Brasil na área de agricultura energética. Temos hoje em dia um programa importante de desenvolvimento de biocombustíveis.
E temos agora o biodiesel…
Vargas – Realmente, agora estamos entrando na área do biodiesel. O óleo de mamona é a grande fonte de recursos para o biodiesel, e o semi-árido brasileiro poderá transformar-se no grande produtor de mamona. Em junho último, a ministra Dilma Roussef, das Minas e Energia, participou de uma reunião em Bonn, na Alemanha, sobre energia renovável. Ela fez um pronunciamento sobre a importância dos biocombustíveis, destacando o óleo de mamona para a produção de biodiesel. Há todo um programa do Ministério de Minas e Energia nessa direção. Da mesma forma que a região de Petrolina, em Pernambuco, é hoje reconhecida no mundo como um dos grandes celeiros de frutas tropicais, o semi-árido nordestino poderá amanhã transformar-se na grande fonte de energia alternativa. E isso é extremamente importante, pois em matéria de energia, uma das grandes questões é como assegurar o seu fornecimento constante.
Na medida em que os países em desenvolvimento vão precisar crescer mais e o Brasil, em especial, vai precisar dar um salto para erradicar a pobreza, haverá indiscutivelmente uma maior demanda por energia. A questão que se coloca para nós é: qual o caminho que vamos seguir? Vamos percorrer o mesmo caminho dos países industrializados e, portanto, emitir gases causadores do efeito estufa, ou vamos seguir um caminho alternativo que utilize, de um lado, a tecnologia mais limpa, em matéria de combustíveis fósseis e, de outro, maior ênfase nas energias alternativas que poluem menos?
E o Programa Nacional do Álcool?
Vargas – É verdade. Produzimos etanol sem nenhum subsídio, atendendo plenamente o consumo interno e abrindo espaço para a exportação. A China decidiu introduzir 13% de álcool na gasolina. No Japão já existe uma decisão, ainda que em bases voluntárias, da adição de 3% de álcool à gasolina. Há um interesse de negociação com o Brasil.
No ano passado, estive no Japão discutindo o assunto com autoridades japonesas, para promover a importação de etanol produzido no Brasil. Nossa produção atual é de 10 bilhões de litros de etanol por ano. A nossa capacidade de produção está estimada em 16 bilhões de litros anuais. O Japão consome 60 bilhões de litros de gasolina por ano. Se o Japão adotasse, de maneira obrigatória, para todos os automóveis, 3% de etanol na gasolina, isso significaria 1,8 bilhão de litros, que poderiam ser vendidos pelo Brasil ao Japão. Trata-se de uma alternativa econômica, somada à questão ambiental e de desenvolvimento. E isso vai se refletir na Convenção do Clima, porque o maior volume de energia alternativa corresponde a uma diminuição das emissões de gases de feito estufa. E também na Convenção da Biodiversidade, porque quando forem montados os programas de biocombustíveis, terá de se considerar o respectivo impacto no ecossistema.
O que temos sempre mostrado, em relação ao etanol, é que, em primeiro lugar, ele é produzido sem subsídio; em segundo lugar, não há nenhuma agressão à floresta, pois a área ocupada é típica de uma região agrícola já consolidada.
Como a legislação ambiental brasileira vai se adequar às legislações do Mercosul e dos países da Organização do Tratado de Cooperação da Amazônia?
Vargas – São coisas diferentes. O Mercosul é um mercado comum. Existe a perspectiva de que progressivamente iremos ter leis mais harmonizadas. Em junho último entrou em vigor o Acordo Marco de Cooperação Ambiental do Mercosul, que foi assinado e ratificado pelos quatro países: Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. No âmbito do Mercosul, a legislação brasileira é a mais avançada.
Nós estamos trabalhando conjuntamente em várias áreas, inclusive através de um sub-grupo de trabalho específico sobre meio ambiente. Houve, também no mês passado, em Buenos Aires, a primeira reunião ordinária de Ministros do Meio Ambiente do Mercosul, sucedendo a uma reunião extraordinária, ocorrida em outubro do ano passado em Montevidéu. Agora, o diálogo entre esses ministros foi institucionalizado. E isso é muito importante porque vai permitir que haja políticas e medidas concertadas a esse propósito.
Em novembro próximo, será a vez do Brasil sediar a segunda reunião ordinária de Ministros de Meio Ambiente do Mercosul. A Ministra Marina Silva vai assumir a presidência dessa reunião porque o Brasil será, no segundo semestre deste ano, o presidente pró-tempore do Mercosul.
E no caso da OTCA?
Vargas – No caso da OTCA é diferente, porque não temos uma obrigação, um acordo que obrigue a busca de uma legislação comum. Mas existe um interesse de harmonizar a legislação, porque o acesso aos recursos genéticos e a proteção dos conhecimentos tradicionais são temas que têm relevância tanto para o Brasil, como para a Colômbia, a Venezuela, o Peru e, muitas vezes, as comunidades tradicionais estão localizadas nas regiões de fronteira e elas atravessam.
O conhecimento, portanto, não conhece fronteiras. É relevante que tenhamos uma legislação harmonizada, o que não significa ter a mesma legislação, necessariamente, porque cada país tem as suas instituições, a sua cultura, as suas especificidades. Mas é preciso lembrar que legislação implica ter instituições fortes, recursos humanos adequadamente treinados, investimentos em infra-estrutura, capacidade de fazer avaliação de impacto.
Nós não podemos simplesmente fazer um acordo com todos os países da OTCA dizendo que eles terão avaliação de impacto ambiental. Isso depende de cada um, embora seja normal buscar uma aproximação das legislações, e fazer com que esse patrimônio que é comum aos países amazônicos seja igualmente protegido nos diversos domínios territoriais dos Estados que compõem o Tratado.
Em que medida a agenda ambiental de 2005 dependerá do resultado das eleições nos Estados Unidos?
Vargas – A eleição norte-americana é sempre um fato político muito importante em qualquer agenda internacional que se tenha. A agenda comercial, a agenda ambiental, a agenda tecnológica, a agenda de segurança. Agora, o mundo não é refém das eleições americanas. O mundo não vota para presidente dos Estados Unidos. Só os cidadãos nos Estados Unidos.
E a decisão do governo norte-americano de não ratificar o Protocolo de Kioto?
Vargas – Sabemos que existe nos Estados Unidos uma fortíssima atuação tanto da sociedade civil como das próprias empresas americanas e também de alguns estados, no sentido de reduzir as emissões. Na Califórnia e em Nova York, por exemplo, que também são governados pelo Partido Republicano, isso está acontecendo. Sim, a eleição norte-americana é um fator político importante, mas o mundo também continua.
Quando o Brasil elege como prioridade de política externa a América do Sul e uma concertação com a África do Sul e a Índia, quando o Brasil tem um diálogo mais intenso com a China, isso também tem impacto. A visita do presidente Lula à China não passou despercebida pelos grandes órgãos de imprensa. Um país como o Brasil também tem o que dizer, e as viagens e a atuação do ministro Celso Amorim nos foros internacionais testemunham isso. Uma China, uma Índia tem o que dizer. O Brasil tem uma capacidade de influência que não pode ser negligenciada, o que nem sempre é percebido pela sociedade, quando ela discute nosso papel no mundo. E essa capacidade de influência tem que ser exercida de dentro para fora.
Nós não podemos tratar os temas ambientais, ou os outros temas, a partir da agenda ou da perspectiva fixada de fora. Esse, no fundo, é o grande problema que enfrentamos na discussão ambiental, justamente porque essa agenda nasceu nos países industrializados.
A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, Suécia, em 1972, derivou da preocupação que os países industrializados tinham com o problema da poluição. Foi essa iniciativa que gerou todo o movimento ambientalista na sociedade.
Naquela época, para o Brasil, a coisa mais importante que tivemos de negociar em Estocolmo foi o problema do uso dos recursos naturais compartilhados, especialmente os recursos hídricos.
O Brasil está aberto a parcerias
A cooperação internacional tem que deixar de ser vista como uma cooperação assistencialista
O senhor defende, então, uma nova visão do mundo pelo Brasil?
Vargas – Sim. Nas discussões multilaterais, especialmente sobre os chamados temas globais, não podemos ficar a reboque da visão externa. Temos que dar uma visão brasileira, uma visão a partir da perspectiva dos países que já alcançaram um determinado patamar de desenvolvimento, mas que ainda enfrentam desafios como a fome e a pobreza. Temos tecnologia, indústria, uma sociedade conscientizada. Mas também temos desafios, como as matas ciliares, o desmatamento e problemas de saneamento.
Também temos soluções, inclusive, no tocante a saneamento, o chamado esgoto comunitário, que pode ser multiplicado.
Este ano, a questão do saneamento foi o tema central da Comissão de Desenvolvimento Sustentável da ONU, junto com a água e assentamentos humanos. E nós vamos ter, em 2005, uma negociação sobre esse mesmo tema, no âmbito da Comissão para definir políticas de cooperação internacional nessa área.
Essa cooperação internacional tem que deixar de ser vista como uma cooperação assistencialista. A cooperação internacional nasceu como um bônus, por assim dizer, que as super-potências procuravam dar aos países que apoiavam as suas respectivas políticas internacionais durante a guerra fria. Hoje não temos mais a guerra fria. Hoje, a geopolítica no mundo mudou muito. Um país como o Brasil tem condições de trabalhar a cooperação de outra maneira. Da mesma forma que a cooperação prestada ao Brasil também mudou de foco.
O Brasil pode atuar em conjunto com os países doadores e com os organismos internacionais seja em projetos no país, seja em terceiros países que apresentem condições econômicas, sociais e ambientais semelhantes às nossas.
O Brasil está aberto a fazer trabalhos conjuntos com outros países em diferentes áreas. Temos sempre que definir quais são as nossas prioridades políticas, quais as medidas que vamos tomar para implementá-las e apartir daí, executar projetos que efetivamente se reflitam numa melhoria das condições econômicas, sociais, ecológicas e que, em última análise, vão significar melhoria da qualidade de vida da população.
Entrevistas
Kátia Queiroz Fenyves fala a respeito de sustentabilidade e meio ambiente

Kátia Fenyves é Mestre em Políticas Públicas e Governança pela Sciences Po Paris e formada em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo. Ao longo de sua trajetória profissional, acumulou experiências em cooperação internacional para o desenvolvimento sustentável no terceiro setor e na filantropia. Atualmente é Gerente do Programa de Finanças Verdes da Missão Diplomática do Reino Unido no Brasil.
1. Você estudou e tem trabalhado com a questão de sustentabilidade e o meio ambiente. Pode nos falar um pouco a respeito desses temas?
Meio ambiente é um tema basilar. Toda a vida do planeta depende de seu equilíbrio. A economia, da mesma forma, só se sustenta a partir dos recursos naturais e de como são utilizados. Sustentabilidade, portanto, foi o conceito que integrou as considerações aos aspectos ambientais, sociais e econômicos, revelando de forma mais sistêmica esta inter-relação e, sobretudo, colocando o meio ambiente como eixo estratégico do desenvolvimento, para além de seu valor intrínseco.
2. Quando se fala em sustentabilidade, pensa-se no tripé social, ambiental e econômico. Como você definiria esses princípios? Qual deles merece maior atenção, ou todos são interligados e afetam nossa qualidade de vida integralmente?
Exatamente, sustentabilidade é o conceito que revela as interligações entre os três pilares – social, ambiental e econômico e, portanto, são princípios interdependentes e insuficientes se tomados individualmente. Talvez, o ambiental seja realmente o único que escapa a isso. A natureza não depende da economia ou da sociedade para subsistir, mas, por outro lado, é impactada por ambos. Por isso, sustentabilidade é um conceito antrópico, ou seja, é uma noção que tem como referencial a presença humana no planeta.
3. Questões relacionadas à sustentabilidade, preservação do meio ambiente e consumo consciente são discutidas nas escolas e universidades?
Há entre as Diretrizes Curriculares Nacionais estabelecidas pelo Conselho Nacional de Educação, que são normas obrigatórias, as específicas para Educação Ambiental que devem ser observadas pelos sistemas de ensino e suas instituições de Educação Básica e de Educação Superior a partir da Política Nacional de Educação Ambiental. Estas contemplam todos os temas citados na pergunta. Não sou especialista na área então é mais difícil avaliar a implementação, mas em termos de marco institucional o Brasil está bem posicionado.
4. Quando se fala em preservação do meio ambiente, pensa-se também nos modelos de descarte que causam tantos danos ao meio ambiente. Existe alguma política de incentivo ao descarte consciente?
Mais uma vez, o Brasil tem um marco legal bastante consistente para o incentivo ao descarte consciente que é a Política Nacional de Resíduos Sólidos de 2010, que é inclusive uma referência internacionalmente. Na verdade, mais que um incentivo ela é um desincentivo ao descarte inconsciente por meio do estabelecimento da responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos e a logística reversa. Isso significa que a PNRS obriga as empresas a aceitarem o retorno de seus produtos descartados, além de as responsabilizar pelo destino ambientalmente adequado destes. A inovação fica sobretudo na inclusão de catadoras e catadores de materiais recicláveis e reutilizáveis tanto na logística reversa como na coleta seletiva, algo essencial para um país com nosso contexto social.
5. Você acha que os modelos de descarte atuais serão substituídos por novos modelos no pós-pandemia? O que fazer, por exemplo, para incentivar as pessoas a descartar de forma consciente as máscaras antivírus?
Sempre é preciso se repensar e certamente a pandemia deu destaque a certas fragilidades da implementação da PNRS. Grande parte dos hospitais brasileiros ainda não praticam efetivamente a separação e adequada destinação de seus resíduos e, na pandemia, este problema é agravado tanto pela maior quantidade de resíduos de serviços de saúde gerados como por uma maior quantidade de geradores, uma vez que a população também começa a produzir este tipo de resíduo em escala. Falta ainda muita circulação da informação, então talvez este seja o primeiro passo: uma campanha de conscientização séria que jogue luz nesta questão.
6. Na sua opinião, o mundo está mais consciente das necessidades de preservação do meio ambiente e dos recursos naturais para que gerações futuras possam deles usufruir?
Acredito que tenhamos passado do ponto em que estas necessidades de preservação eram uma questão de consciência e chegamos a um patamar de sobrevivência. Também não se trata apenas das gerações futuras, já estamos sofrendo as consequências do desequilíbrio ambiental provocado pela ação humana e do esgotamento dos recursos naturais desde já. A própria pandemia é resultado de relações danosas entre o ser humano e o meio ambiente e os conflitos por fontes de água, por exemplo, são uma realidade.
7. Quais as ações que mais comprometem e degradam o meio ambiente?
Nosso modelo produtivo e de consumo como um todo é baseado em uma relação predatória com o meio ambiente: retiramos mais do que necessitamos, sem respeitar os ciclos naturais de reposição e, além disso, quando descartamos os resíduos e rejeitos não cumprimos com os padrões adequados estabelecidos. Já temos conhecimento suficiente para evitar grande parte dos problemas, mas ainda não conseguimos integrá-lo nas nossas práticas efetiva e definitivamente.
8. O que na sua opinião precisa ser feito para que as sociedades conheçam mais a respeito de sustentabilidade, preservação do meio ambiente e consumo consciente?
Acredito que para avançarmos como sociedade precisamos tratar a questão das desigualdades socioeconômicas que estão intrinsicamente relacionadas a desigualdades ambientais, inclusive no que diz respeito às informações, ao conhecimento. A educação é, portanto, um componente estratégico para este avanço, mas é preciso ter um entendimento amplo que traga também os saberes tradicionais para esta equação. Além disso é preciso cada dia mais abordar o tema da perspectiva das oportunidades, pois a transição para modos de vida mais sustentáveis, que preservam o meio ambiente e que se baseiem em consumo conscientes alavancam inúmeras delas; por exemplo, um maior potencial de geração de empregos de qualidade e menos gastos com saúde.
9. A questão climática está relacionada com a sustentabilidade? Como?
A mudança do clima intensificada pela ação antrópica tem relação com nossos padrões de produção e consumo em desequilíbrio com o meio ambiente: por um lado, vimos emitindo uma quantidade de gases de efeito estufa muito significativa e, por outro, vimos degradando ecossistemas que absorvem estes gases, diminuindo a capacidade natural do planeta de equilibrar as emissões. Assim, a questão climática está relacionada com um modo de vida insustentável. A notícia boa é que práticas sustentáveis geram diretamente um impacto positivo no equilíbrio climático do planeta. Por exemplo, o Brasil tem potencial para gerar mais de 25 mil gigawatts em energia solar, aproveitando sua excelente localização geográfica com abundância de luz solar, uma medida sustentável que, ao mesmo tempo, é considerada uma das melhores alternativas para a diminuição das emissões de CO2 na atmosfera, que é um dos principais gases intensificadores do efeito estufa.
Entrevistas
MARCOS TERENA

De filho pródigo à liderança internacional, o índio, piloto e cacique Marcos Terena, tornou-se um líder respeitado e o ponto de equilíbrio entre autoridades brancas e os povos indígenas.



Entrevistas
Johan Dalgas Frisch – Entrevista sobre a ave símbolo do Brasil
O sabiá tem o espírito brasileiro

Silvestre Gorgulho, de São Paulo
O engenheiro e ornitólogo Johan Dalgas Frisch, presidente da Associação de Preservação da Vida Selvagem, em nome da diretoria da APVS, veio a Brasília trazer um estudo ao ministro José Carlos Carvalho, do Meio Ambiente, e fazer um pedido muito especial: a indicação do sabiá (Turdus rufiventris) como ave nacional do Brasil. O documento entregue ao ministro era assinado, além de Dalgas Frisch, pelo vice-presidente da APVS, jornalista Ciro Porto, e pelo diretor da entidade, Rogério Marinho, da Rede Globo. Nesta entrevista exclusiva à Folha do Meio Ambiente, Dalgas Frisch explica a importância sócio-cultural do pedido. Antes de conferir a entrevista, vale a pena conhecer esse empresário que faz da vida uma luta em prol dos pássaros.
Quem é Dalgas Frisch
Dalgas limpa o ar e água para proteger as aves O industrial Johan Dalgas Frisch retira do negócio da limpeza de ar e da água o fôlego financeiro para patrocinar sua paixão passarinheira
O brasileiro Johan Dalgas Frisch pertence a uma genuína família de ecologistas. Seu bisavô materno foi influente na Coroa dinamarquesa porque conseguiu transformar uma vasta região desértica daquele país em uma imensa floresta, contando com a única tecnologia disponível na época, os arados puxados por bois. Ele inventou um tipo diferente de arado, puxado não por um, mas por 12 bois. Era o único capaz de quebrar a superfície dura do solo, resultado de muitas queimadas. Rompida a crosta, as raízes das árvores podiam se desenvolver e em poucas décadas uma grande floresta estava de pé. Já seu pai, o pintor Svend Frisch, amigo de Pablo Picasso, não vacilou diante da oportunidade de mudar da Dinamarca para o exótico Brasil. Aqui, formou família e desde que o filho Dalgas, aos seis anos de idade, revelou seu amor pelas aves, o pai não parou mais de pintá-las. Ao longo de quatro décadas, Svend desenhou cerca de dois mil exemplares de aves, coletados pelo próprio Dalgas ou emprestados de algum museu ou colecionador particular. Em 1964, pai e filho publicaram a primeira edição do livro Aves Brasileiras. Obra atualizada em 1981, ainda hoje constitui o mais detalhado manual de identificação das espécies ornitológicas existentes no País.
Ainda nos anos 60, Dalgas Frish estava na divisa dos estados do Paraná e São Paulo fazendo exatamente o mesmo que tem feito desde que se conhece por gente. Mas ao ser avistado por alguns militares com seu “arsenal de passarinheiro” – gravadores, microfones, antena parabólica, máquina fotográfica – foi imediatamente confundido com um espião. Por sorte, sua personalidade cativante logo desfez o mal-entendido e como seus pequenos amigos de asas, pôde continuar livre para alçar novos e mais altos vôos.
Como se vê, a família Dalgas tem muitas histórias para contar, enredos que têm a natureza como pano de fundo e que misturam situações curiosas, comoventes e até engraçadas, mas que ainda não mereceram o devido registro. As aves, ao contrário, estão minuciosamente retratadas em livros e discos, de uma beleza tocante e acabamento impecável, editados pelos próprios Dalgas. Um exemplo é a encantadora obra Jardim dos Beija-Flores (1995), que foi acolhida com entusiasmo até por chefes de estado, como Bill Clinton, ex-presidente dos Estados Unidos.
Inspirado pela companheira do “passarinheiro”, Birte, o livro sobre os beija-flores proporciona uma grata surpresa, pois ensina como aquelas delicadas criaturas podem ser permanentemente atraídas até para uma humilde sacada de um apartamento situado numa grande cidade. O leitor também se emociona ao tomar contato com as fotos de uma centena de beija-flores, trabalho feito em doses exatas de técnica e paixão pelo filho de Dalgas, Christian, co-autor do Jardim dos beija-flores.
Ainda na década dos 60, foi lançado o disco Cantos das aves do Brasil, trabalho pioneiro na América do Sul e aclamado pela Rádio BBC de Londres. O disco vendeu milhares de cópias e acabou inaugurando uma série que hoje é composta de quase 20 volumes. Na época de lançamento do primeiro disco, Assis Chateaubriand, dono de um império de jornais, revistas, emissoras de rádio e televisão, teve a idéia de mostrar o trabalho de Dalgas para Walt Disney.
“Graças ao Chatô, que me tratava como um filho, fui para os Estados Unidos viver mais esse episódio. A parceria não deu certo porque Disney queria os cantos das aves sem mencionar que eram brasileiras. Achei isso um abuso. Também discordávamos quanto a um ponto essencial: Disney queria compor novas músicas a partir do canto dos pássaros. Nos meus discos, eu junto músicas já existentes, que normalmente têm por tema as alegrias e tristezas humanas, com o canto dos pássaros, que são sempre de perpetuação e celebração da vida. É o casamento perfeito entre esses dois reinos”, acredita Dalgas.
A entrevista com DALGAS FRISCH
O que significa uma ave nacional?
Dalgas Frisch – É justamente o retrato vivo de um país, de sua gente e de sua cultura. Como a logomarca representa uma empresa, os símbolos nacionais representam a nação, seu povo e seus costumes. E para que se mantenham vivos na mente dos cidadãos, é necessário respeitá-los e difundi-los. Uma ave nacional representa a alma, o folcore e a cultura de um país. Mas só tem legitimidade quando for oficializada pelo governo.
Por que existe o Dia da Ave no Brasil e até hoje não tem nenhuma ave nacional?
Dalgas – Foi uma falha no decreto 63.234, publicado no Diário Oficial de 12 de setembro de 1968 e assinado pelo presidente Arthur da Costa e Silva. Durante reunião que tivemos no Palácio do Planalto, o presidente Costa e Silva falou com veemência sobre o sabiá, um pássaro que deu muitas emoções a ele, na sua infância no Rio Grande do Sul.
Todos os jornais da época noticiaram o sabiá como ave nacional, tanto que o sabiá foi festejado durante décadas. Em todas as solenidades, governadores, prefeitos e diretores de escolas soltavam um sabiá de uma gaiola como símbolo de liberdade e de poesia, para motivar os jovens estudantes.
Foram feitos todos anos diplomas comemorativos ao Dia da Ave e as crianças que faziam os melhores trabalhos sobre o tema recebiam de presente passagens aéreas com todas despesas pagas para diversos lugares do Brasil como Foz de Iguaçu, Bahia, Rio de Janeiro. Tudo financiado pela Associação de Preservação da Vida Selvagem.
Há pouco tempo, um jornalista descobriu que o Diário Oficial, que publicou o decreto do Dia da Ave no Brasil, não trouxe o nome da ave. Quando o senador Jorge Borhausen foi ministro da Educação, tentou-se corrigir a falha. Bornhausen fez um ofício ao então presidente José Sarney para retificar o Decreto número 63.234 que criou o Dia da Ave. O objetivo era fazer do sabiá a ave nacional. Mas um novo erro foi cometido, pois esqueceu-se de dar o nome científico do sabiá e acabou que a correção nunca foi publicada. A verdade é que até hoje este lamentável engano ainda permanece “em berço esplêndido”.
Todos países têm uma ave nacional?
Dalgas – Praticamente todos tem! E é muito bonito ver ave típica como símbolo de uma nação. Tal qual o hino nacional, a bandeira e os brazões. A ave nacional acaba por ser um símbolo vivo de um país.
Por que a maioria dos ornitólogos e intelectuais defendem o sabiá como ave nacional brasileira?
Dalgas – A resposta é simples! É só fazer uma consulta nos registros do ECAD (Escritório Central de Arrecadação de Direitos Autorais) sobre as músicas e letras referentes a aves no Brasil. A ave mais cantada, disparado, é o sabiá, por ser a ave mais conhecida de toda população brasileira. O sabiá vive junto às casas e até mesmo nas cidades, desde que haja um pé de laranjeira, jabuticabeira, amoreira, goiabeira, pitangueira. Na primavera, o sabiá é a primeira ave a cantar, ainda no escuro, antes do raiar do dia. Seu canto é sem dúvida nenhuma o que mais motivou poetas, músicos e escritores no Brasil.
O sabiá é uma maravilha de despertador vivo nas fazendas, nas roças e nas cidades bem arborizadas. Pelo seu canto, imagem, docilidade em viver junto às casas dos caboclos, o sabiá passou a fazer parte da vida, do sentimento dos brasileiros.
Gravar cantos de pássaros em CD é comercialmente rentável?
Dalgas – Olha, Gorgulho, o canto de um pássaro é a perfeição da espécie. Aquele que canta mais bonito, mais melodioso vai atrair a fêmea. Mas é preciso entender que o sentimento humano é diferente.
Para que o CD seja comercialmente um sucesso é importante que, além da beleza da música, que a letra também mexa com o sentimento. Que reflita uma profunda sensibilidade. Algo nostálgico, do amor não correspondido, da dor de cotovelo, da conquista e da paixão.
Então o que funciona comercialmente é mesclar, é interagir o canto dos pássaros acompanhando as músicas dos homens. Misturar ritmos, trinados, melodias e gorgeios. Comercialmente correto, pois passarinho não compra CD…
-
Reportagens2 semanas ago
Lula participa de reunião com empresários em Nova York
-
Artigos3 meses ago
ALYSSON PAOLINELLI PARTIU
-
Entrevistas3 meses ago
Kátia Queiroz Fenyves fala a respeito de sustentabilidade e meio ambiente
-
Reportagens3 meses ago
Cine Brasília recebe mostra latino-americana
-
Reportagens3 meses ago
Alerta do INPE: Inverno mais quente devido ao El Niño no Brasil
-
Reportagens3 meses ago
Escolas de samba fecham desfile e reforçam diversidade presente na capital
-
Artigos4 meses ago
A Sexta Onda da Tecnologia: Transformando o Futuro com Sustentabilidade e ESG
-
Reportagens2 meses ago
GDF elabora Plano Distrital pela Primeira Infância para 2024 a 2034