Entrevistas
Miguel von Behr – Entrevista sobre o Jalapão
Jalapão: história, cultura e meio ambiente
Jalapão sob olhar de Miguel von Behr
Esse ecossistema faz transição com a Caatinga e é prioritária para a conservação da flora, da fauna, dos recursos hídricos e do patrimônio espeleológico do bioma
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Silvestre Gorgulho, de Brasília
A exuberância dos ecossistemas brasileiros sempre encantaram biólogos, fotógrafos, pesquisadores e jornalistas – estrangeiros e brasileiros – e há vários séculos frequenta grandes publicações nacionais e internacionais. Cada uma com sua característica. De Carl Friedrich von Martius, passando por Saint Hilaire, Langsdorff, Arne Sucksdorff até os contemporâneos como Miguel von Behr que lança, no próximo dia 11 de maio, em Brasília, seu novo livro: Jalapão – o Sertão das Águas. Miguel von Behr é arquiteto, fotógrafo e ambientalista. Funcionário do Ibama, von Behr trabalha com a criação e implantação de unidades de conservação, planejamento urbano e corredores ecológicos, e é autor do selo editorial Série Ecossistemas Brasileiros História, Cultura e Natureza. Seus trabalhos (Guarakessaba – Chapada dos Veadeiros, o Berço das Águas do Novo Milênio – a Serra da Bodoquena – e, agora, O Jalapão – Sertão das Águas) mostram o que ocorre – ou ocorreu – em termos históricos e culturais ao redor das unidades de conservação e contribuem para inseri-las na realidade regional. Seus livros apresentam cada ecossistema de uma forma global, fortalecendo a identidade e a relação homem-natureza. O Jalapão está no extremo leste do Tocantins e concentra uma das maiores extensões dos 20% de Cerrado brasileiro ainda conservados. É área pouco pesquisada, importante por estar na transição com a Caatinga e prioritária para a conservação da flora, da fauna, dos recursos hídrico e do patrimônio espeleológico do bioma.
![]() Miguel von Behr é arquiteto, fotógrafo e ambientalista. Seus livros têm uma forma holística de abordagem |
Como surgiu a série Ecossistemas Brasileiros?
Miguel von Behr – Essa série foi resultado de uma séria experiência profissional de mais de 20 anos como ambientalista, fotógrafo e arquiteto. Como ambientalista eu pude entender melhor essa teia que envolve as relações de vida entre os recursos minerais, a flora, a fauna e nós homens sobre a Terra. Como fotógrafo eu pude registrar e eternizar imagens fantásticas desta relação. E como arquiteto eu pude entender a harmonia, a orquestração e a dinâmica das forças, das belezas e dos mistérios da natureza.
Evidente que para fazer essa Série Ecossistemas Brasileiros eu tive o apoio do Ibama, do Ministério do Meio Ambiente, de governos estaduais e de alguns parceiros da iniciativa privada, aproveitando as leis estaduais e federal de incentivo à cultura.
O que acho importante nas suas publicações é a forma holística de sua abordagem, ou seja, natureza, cultura, povo, processo histórico de ocupação humana. Como nasceu esta sua preocupação?
Miguel – Olha, eu sou um apaixonado pela natureza e gosto de enxerga-la com olhos de ambientalista, de antropólogo, de fotógrafo, de arquiteto, de historiador e até de espiritualista.
Não dá para fotografar e registrar a beleza e a importância de um sítio histórico ou de uma natureza exuberante sem entender em que contexto aquele sítio está inserido na vida do homem e daquela região no passado, no presente e no futuro.
Na verdade eu gosto de fazer um trabalho para sociedade como um todo, para comunidade local, para os turistas, para os formadores de opinião, para os formuladores de políticas públicas e para os tomadores de decisão. Por quê? Para que todos sintam a responsabilidade que têm no sentido de preservar e de contribuir para que a região se desenvolva dentro de um ritmo sustentável e de uma forma que as atuais e futuras gerações se beneficiem daquelas riquezas e belezas.
Quais foram os títulos já publicados e quais os próximos livros?
Miguel – Foram vários. Guarakessaba, uma fantástica reserva de Mata Atlântica do Paraná. Chapada dos Veadeiros, uma das regiões mais lindas de Goiás, berço das águas do novo milênio; e a Serra da Bodoquena, outra região lindíssima de Mato Grosso do Sul. Agora sai este livro sobre o Jalapão, uma das três áreas prioritárias para conservação da biodiversidade do bioma Cerrado, que já perdeu um pouco mais da metade da sua cobertura vegetal original. Quanto aos próximos, duas obras estão na reta final: Costa dos Corais, em Pernambuco e Alagoas, e Arquipélago do Marajó, no Pará, além de já ter finalizado fotos e texto sobre o Lago da Serra da Mesa, em Goiás.
Por que um livro sobre o Jalapão?
Miguel – Porque não existe uma obra com registros fotográficos que englobe os ricos aspectos históricos, culturais e naturais do Jalapão. Ou seja, um livro que literalmente apresente a região de uma forma global para a sociedade. O livro é proposto também para que possamos despertar a atenção da sociedade para o desenvolvimento sustentável da região, por meio de uma comunicação de qualidade, contribuindo para fortalecer a política de turismo regional, integrando as três linhas temáticas mais exploradas pelo turismo: histórico, cultural e natural.
Qual a importância do Jalapão para a conservação do Cerrado?
Miguel – Porque o Jalapão é uma área semidesértica, formada por enormes áreas de rochas areníticas, mas cheia de pequenos rios que nunca secam. A erosão provocada pela chuva e pelo vento na serra do Espírito Santo formam as dunas, uma das principais atração turística do Jalapão, além das dezenas de cachoeiras.
Quais os resultados da Expedição Científica do Ibama ao Jalapão que você chefiou em 2001?
Miguel – O principal resultado foi a imediata criação da Estação Ecológica da Serra Geral do Tocantins, a maior unidade de conservação do Cerrado criada na época, com 712 mil hectares, maior que o Líbano. Outro resultado, apesar do pouco tempo disponível, foi a avaliação dos aspectos ambientais como botânica, fauna, espeleologia e antropologia, mostrando a presença de espécies raras, endêmicas e em processo de extinção.
A presença, por exemplo, do tatu-bola. Além de ser uma indicação da influência do bioma de Caatinga é de relevante importância por ser uma espécie ameaçada de extinção.
O relatório produzido divulgou os resultados utilizados hoje pelas escolas da região, no desenvolvimento de projetos regionais, corredores ecológicos do Cerrado e gestão biorregional do Jalapão.
Houve outras expedições científicas ao Jalapão?
Miguel – Houve várias outras e muito importantes. No século retrasado e passado houve a expedição dos ingleses George Gardner e James Wells. Teve também a do alemão Guilherme Dodt, no século 19, e dos brasileiros Agenor Augusto de Miranda, dr. Júlio Paternostro e Gilvando Simas Pereira no século passado. Todas elas deixaram interessantes e importantes relatos sobre a realidade cultural e ambiental da época em que foram realizadas.
Por que “Sertão das Águas”?
Miguel – Porque a região é de águas emendadas, pois possui nascentes de afluentes de rios de três grande bacias hidrográficas brasileiras: Tocantins, São Francisco e Parnaíba.
A Chapada das Mangabeiras é o maciço central de onde partem águas para essas três bacias, formando-se na região um enorme lençol d’água subterrâneo e um imenso manancial hídrico de rios e córregos permanentes, favorecendo ainda mais a biodiversidade.
Devido a grande quantidade areia, a água passa facilmente entre os poros dos terrenos, impedindo a sua concentração na superfície. A aridez da paisagem esconde uma enorme quantidade de água, dando vida à região. Por isso, “Sertão das Águas”.
Naturatins divulga portaria de proteção ao capim dourado O presidente do Naturatins, Isac Braz da Cunha, assinou portaria que ordenou a coleta e manejo do capim dourado. A portaria 005 proíbe a coleta de capim dourado (Shyngonanthus nitens) nos municípios de São Félix do Tocantins, Mateiros e Ponte Alta do Tocantins, em virtude da pressão sobre a espécie, devido ao elevado interesse pelo artesanato. A coleta poderá ser feita somente pelos credenciados nas associações Capim Dourado do Povoado de Mumbuca, Comunitária de Artesãs e Pequenos Produtores de Mateiros, Comunitária dos Extrativistas, Artesãos e Pequenos produtores do Povoado do Prata e a Associação Esperança dos extrativistas e Pequenos Produtores da Fazenda Nova. A proibição para coletores não credenciados é por tempo indeterminado. Já, entre os autorizados será feita de forma seletiva, deixando-se exemplares intocados. |
Quais as medidas tomadas para ordenar o turismo no Jalapão?
Miguel – Em primeiro lugar é bom dizer que é possível tirar proveito do turismo, por sinal a única atividade econômica que cresceu no Jalapão nos últimos anos.
O turismo ajudou a gerar riqueza, empregos e a distribuir lucros. As visitas se transformaram também numa experiência de educação ambiental para os turistas.
A principal medida foi a criação de unidades de conservação pelo governo do Tocantins e pelo Ibama, formando o maior mosaico de diferentes áreas protegidas do Cerrado brasileiro, com mais de 1,5 milhão de hectares, atualmente em processo de implantação.
Relacionado com turismo está o conhecido capim dourado, uma das razões para os turistas se dirigirem à região e conhecer este artesanato que já é admirado internacionalmente. Atualmente há controle sobre o corte do capim. (ver boxe abaixo).
Mais um trabalho concluído. Qual a melhor lembrança?
Miguel – É saber que existe a esperança de utilizar a fotografia como meio de elevar a auto-estima do homem, construindo uma ponte de identidade entre o passado, o presente e o futuro. É bom saber que este esforço vai interferir positivamente na vida das pessoas e ajuda a preservar a memória do Jalapão. Tudo isso contribui para despertar uma reflexão de como compatibilizar a tão necessária conservação da biodiversidade com o também tão necessário desenvolvimento.
Entrevistas
Kátia Queiroz Fenyves fala a respeito de sustentabilidade e meio ambiente

Kátia Fenyves é Mestre em Políticas Públicas e Governança pela Sciences Po Paris e formada em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo. Ao longo de sua trajetória profissional, acumulou experiências em cooperação internacional para o desenvolvimento sustentável no terceiro setor e na filantropia. Atualmente é Gerente do Programa de Finanças Verdes da Missão Diplomática do Reino Unido no Brasil.
1. Você estudou e tem trabalhado com a questão de sustentabilidade e o meio ambiente. Pode nos falar um pouco a respeito desses temas?
Meio ambiente é um tema basilar. Toda a vida do planeta depende de seu equilíbrio. A economia, da mesma forma, só se sustenta a partir dos recursos naturais e de como são utilizados. Sustentabilidade, portanto, foi o conceito que integrou as considerações aos aspectos ambientais, sociais e econômicos, revelando de forma mais sistêmica esta inter-relação e, sobretudo, colocando o meio ambiente como eixo estratégico do desenvolvimento, para além de seu valor intrínseco.
2. Quando se fala em sustentabilidade, pensa-se no tripé social, ambiental e econômico. Como você definiria esses princípios? Qual deles merece maior atenção, ou todos são interligados e afetam nossa qualidade de vida integralmente?
Exatamente, sustentabilidade é o conceito que revela as interligações entre os três pilares – social, ambiental e econômico e, portanto, são princípios interdependentes e insuficientes se tomados individualmente. Talvez, o ambiental seja realmente o único que escapa a isso. A natureza não depende da economia ou da sociedade para subsistir, mas, por outro lado, é impactada por ambos. Por isso, sustentabilidade é um conceito antrópico, ou seja, é uma noção que tem como referencial a presença humana no planeta.
3. Questões relacionadas à sustentabilidade, preservação do meio ambiente e consumo consciente são discutidas nas escolas e universidades?
Há entre as Diretrizes Curriculares Nacionais estabelecidas pelo Conselho Nacional de Educação, que são normas obrigatórias, as específicas para Educação Ambiental que devem ser observadas pelos sistemas de ensino e suas instituições de Educação Básica e de Educação Superior a partir da Política Nacional de Educação Ambiental. Estas contemplam todos os temas citados na pergunta. Não sou especialista na área então é mais difícil avaliar a implementação, mas em termos de marco institucional o Brasil está bem posicionado.
4. Quando se fala em preservação do meio ambiente, pensa-se também nos modelos de descarte que causam tantos danos ao meio ambiente. Existe alguma política de incentivo ao descarte consciente?
Mais uma vez, o Brasil tem um marco legal bastante consistente para o incentivo ao descarte consciente que é a Política Nacional de Resíduos Sólidos de 2010, que é inclusive uma referência internacionalmente. Na verdade, mais que um incentivo ela é um desincentivo ao descarte inconsciente por meio do estabelecimento da responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos e a logística reversa. Isso significa que a PNRS obriga as empresas a aceitarem o retorno de seus produtos descartados, além de as responsabilizar pelo destino ambientalmente adequado destes. A inovação fica sobretudo na inclusão de catadoras e catadores de materiais recicláveis e reutilizáveis tanto na logística reversa como na coleta seletiva, algo essencial para um país com nosso contexto social.
5. Você acha que os modelos de descarte atuais serão substituídos por novos modelos no pós-pandemia? O que fazer, por exemplo, para incentivar as pessoas a descartar de forma consciente as máscaras antivírus?
Sempre é preciso se repensar e certamente a pandemia deu destaque a certas fragilidades da implementação da PNRS. Grande parte dos hospitais brasileiros ainda não praticam efetivamente a separação e adequada destinação de seus resíduos e, na pandemia, este problema é agravado tanto pela maior quantidade de resíduos de serviços de saúde gerados como por uma maior quantidade de geradores, uma vez que a população também começa a produzir este tipo de resíduo em escala. Falta ainda muita circulação da informação, então talvez este seja o primeiro passo: uma campanha de conscientização séria que jogue luz nesta questão.
6. Na sua opinião, o mundo está mais consciente das necessidades de preservação do meio ambiente e dos recursos naturais para que gerações futuras possam deles usufruir?
Acredito que tenhamos passado do ponto em que estas necessidades de preservação eram uma questão de consciência e chegamos a um patamar de sobrevivência. Também não se trata apenas das gerações futuras, já estamos sofrendo as consequências do desequilíbrio ambiental provocado pela ação humana e do esgotamento dos recursos naturais desde já. A própria pandemia é resultado de relações danosas entre o ser humano e o meio ambiente e os conflitos por fontes de água, por exemplo, são uma realidade.
7. Quais as ações que mais comprometem e degradam o meio ambiente?
Nosso modelo produtivo e de consumo como um todo é baseado em uma relação predatória com o meio ambiente: retiramos mais do que necessitamos, sem respeitar os ciclos naturais de reposição e, além disso, quando descartamos os resíduos e rejeitos não cumprimos com os padrões adequados estabelecidos. Já temos conhecimento suficiente para evitar grande parte dos problemas, mas ainda não conseguimos integrá-lo nas nossas práticas efetiva e definitivamente.
8. O que na sua opinião precisa ser feito para que as sociedades conheçam mais a respeito de sustentabilidade, preservação do meio ambiente e consumo consciente?
Acredito que para avançarmos como sociedade precisamos tratar a questão das desigualdades socioeconômicas que estão intrinsicamente relacionadas a desigualdades ambientais, inclusive no que diz respeito às informações, ao conhecimento. A educação é, portanto, um componente estratégico para este avanço, mas é preciso ter um entendimento amplo que traga também os saberes tradicionais para esta equação. Além disso é preciso cada dia mais abordar o tema da perspectiva das oportunidades, pois a transição para modos de vida mais sustentáveis, que preservam o meio ambiente e que se baseiem em consumo conscientes alavancam inúmeras delas; por exemplo, um maior potencial de geração de empregos de qualidade e menos gastos com saúde.
9. A questão climática está relacionada com a sustentabilidade? Como?
A mudança do clima intensificada pela ação antrópica tem relação com nossos padrões de produção e consumo em desequilíbrio com o meio ambiente: por um lado, vimos emitindo uma quantidade de gases de efeito estufa muito significativa e, por outro, vimos degradando ecossistemas que absorvem estes gases, diminuindo a capacidade natural do planeta de equilibrar as emissões. Assim, a questão climática está relacionada com um modo de vida insustentável. A notícia boa é que práticas sustentáveis geram diretamente um impacto positivo no equilíbrio climático do planeta. Por exemplo, o Brasil tem potencial para gerar mais de 25 mil gigawatts em energia solar, aproveitando sua excelente localização geográfica com abundância de luz solar, uma medida sustentável que, ao mesmo tempo, é considerada uma das melhores alternativas para a diminuição das emissões de CO2 na atmosfera, que é um dos principais gases intensificadores do efeito estufa.
Entrevistas
MARCOS TERENA

De filho pródigo à liderança internacional, o índio, piloto e cacique Marcos Terena, tornou-se um líder respeitado e o ponto de equilíbrio entre autoridades brancas e os povos indígenas.



Entrevistas
Dener Giovanini – Entrevista sobre tráfico de animais
Tráfico de Animais Silvestres – Um problema maior do que se imagina

O tráfico de animais é um problema muito maior e muito mais grave do que se imagina |
O terceiro maior negócio do mundo: tráfico
de Animais Silvestres
Silvestre Gorgulho – de Brasília
Tudo começou com a Sociedade Mata Viva, em 1995, no Rio de Janeiro. E tudo começou, também, com o ambientalista Dener Giovanini, formado em Letras pela UFRJ e com curso de Biologia (incompleto) pela Faculdade de Vassouras. Giovanini foi o fundador e presidente da Sociedade Mata Viva. Em 1998, fez um projeto audacioso criando uma Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres. O projeto foi tão bem estruturado, tão bem aceito e trouxe tantos resultados positivos para a sociedade que deixou de ser criatura e ficou maior que o próprio criador. O projeto ficou maior do que a própria Socidade Mata Viva e se transformou na Renctas, uma das ONGs mais citadas pela mídia mundial. Em 2001, foram mais 17 horas de mídia espontânea nas tevês e 400 matérias nos mais importantes jornais brasileiros e internacionais. Para falar desta rede que conta com a participação de 580 organizações filiadas, ninguém melhor do que Dener Giovanini, seu primeiro e único dirigente.
FMA – O tráfico continua aumentando?
Dener – Eu acredito que hoje, no Brasil, ninguém tem condições de afirmar se o tráfico está crescendo ou diminuindo. Nem a sociedade, nem o governo. Simplesmente porque nós nunca possuímos dados estatísticos que permitisse uma comparação e que nos fornecesse um resultado confiável a respeito desse tema.
FMA – Não existe um levantamento?
Dener – Olha, o primeiro documento sobre tráfico de animais silvestres foi produzido pela Renctas e lançado no ano passado. Somente quando fizermos a segunda versão é que vamos ter parâmetros para avaliar a verdadeira dimensão desse comércio ilegal.
Hoje isso é impossível, exatamente pela inexistência de dados anteriores ao relatório da Renctas. Podemos afirmar então, que esse relatório foi o marco zero no Brasil. Somente a partir dos próximos relatórios vamos ter condições de fazer comparações. O tráfico de animais é um problema muito maior do que se imagina. É uma situação vivenciada pelo Brasil desde a sua descoberta.
FMA – E quais as principais dificuldades para combater esse crime?
Dener – Infelizmente as dificuldades são muitas. A começar pela nossa legislação ambiental, que precisa ser revista e alterada para que tenha uma ação realmente efetiva quanto à proteção do nosso patrimônio ambiental.
Também existem problemas com relação ao setor judiciário, principalmente no que diz respeito à aplicação das leis. Infelizmente esse crime é considerado de menor conseqüência, de menor poder ofensivo, o que provoca um certo desestímulo para a atuação dos órgãos responsáveis pela fiscalização ambiental.
FMA – E as dificuldades operacionais?
Dener – Essas também são grandes. A principal delas está na falta de recursos para a fiscalização. Soma-se a isso a quase inexistência de locais para destinação dos animais apreendidos. Desta forma, quando um agente ambiental apreende um animal, ele fica com um grande problema nas mãos, por não ter para onde levá-lo.
Os problemas são macros, e necessitam de soluções rápidas e eficazes. Para isso é preciso que tenhamos políticas públicas que englobem a participação de todos os setores da sociedade brasileira para resolvê-los. E é isso que a Renctas está buscando através das parcerias que vem estabelecendo.
FMA – Qual o papel do Governo nesse processo e qual o papel do cidadão?
Dener – O governo já deu um passo extremamente importante ao reconhecer a existência desse problema. É verdade que ainda há muito a ser feito, mas nós já vemos uma mobilização por parte do Ibama, por exemplo, quando aumenta a sua fiscalização em locais historicamente conhecidos pela atuação de traficantes, como é o caso do Raso da Catarina, local onde vive a Arara Azul de Lear. Ou nas feiras livres espalhadas por todo o Brasil. Isso é um ponto bastante positivo.
FMA – A repressão é suficiente para acabar com o tráfico?
Dener – Evidente que não. Não vamos resolver o problema do tráfico de animais silvestres somente com a repressão, porque esse é um problema basicamente cultural. Infelizmente faz parte da cultura brasileira enxergar os animais silvestres como passíveis de serem utilizados como mascote, como animais domésticos. Isso é uma herança do nosso processo colonial. Naqueles tempos os nossos índios viviam em estreito relacionamento com a fauna e esse comportamento foi absorvido pelos colonizadores.
FMA – Vamos falar do futuro. Quais as perspectivas do trabalho?
Dener – Estamos atuando em diversas frentes. Eu gostaria de citar algumas que considero muito importantes, como o trabalho de educação ambiental que temos realizado.
Lançamos uma campanha nacional contra o tráfico de animais silvestres, que teve uma grande repercussão e foi vencedora do prêmio Ford e Conservation Internacional em reconhecimento aos resultados alcançados.
Agora estamos fazendo a segunda versão da campanha, em parceria com o Ministério das Relações Exteriores e Ministério do Meio Ambiente. Estamos trabalhando com órgãos do governo no sentido de estabelecer parcerias para a criação de políticas públicas, discutindo alternativas viáveis para o combate ao tráfico de animais silvestres.
FMA – Destaque alguns desses trabalhos.
Dener – Posso destacar a realização de workshops de treinamento e capacitação para os agentes responsáveis pela fiscalização ambiental no Brasil. Nós já realizamos esse evento em 16 estados, e vamos cobrir todo país.
Esses workshops têm sido importantes por reunir todos os agentes responsáveis pela fiscalização ambiental, como o Ibama, Polícia Ambiental, Polícia Civil, Polícia Federal e a sociedade, representada pelas ONGs e pelas universidades. Em cada estado nós estamos presentes fisicamente, plantando uma semente de conscientização e criando oportunidade para uma atuação conjunta, harmoniosa e eficiente entre os órgãos responsáveis pelo controle ambiental.
FMA – É possível alguém possuir um animal silvestre legalmente?
Dener – A lei brasileira não proíbe que você tenha um animal silvestre. Basta que ele seja oriundo de um criadouro autorizado pelo Ibama. A exigência é que este animal seja adquirido com toda a documentação e que seja nascido em cativeiro e não retirado da natureza.
Eu acredito que a criação comercial da fauna silvestre é uma boa idéia para se combater o tráfico, porém, hoje nós temos uma dificuldade muito grande nesse aspecto, por dois motivos: primeiro o governo ainda não dispõe das condições necessárias para efetuar uma fiscalização eficiente nos criadouros autorizados a funcionar pelo Ibama. São poucos fiscais e alguns desses criadouros não respeitam a lei e acabam vendendo animais retirados da natureza.
Existem muitas pessoas sérias e honestas, mas como em toda área, há aqueles que prejudicam a boa intenção dos demais. A segunda dificuldade que eu identifico na criação comercial é o altíssimo preço dos animais que estão disponíveis no mercado.
FMA – Como funciona esses preços?
Dener – Simples, uma arara brasileira de origem legal custa em um criadouro autorizado cerca de R$ 3.500,00 a R$ 4.000,00, enquanto no comércio clandestino a mesma ave é comercializada por cerca de R$ 600,00. Isso é um desestímulo para que as pessoas possam ter acesso aos recursos naturais. Eu vejo a criação comercial ainda como uma criação extremamente elitista, ou seja, a fauna só está disponível para aqueles que tem muitos recursos para adquiri-la legalmente. Enquanto os problemas de fiscalização e de acesso a essas espécies não forem resolvidos, nós ainda teremos muita dificuldade para combater esse comércio ilegal.
FMA – A maior parte dos nossos animais é retirada da natureza para atender ao tráfico internacional. Como é possível resolver essa situação?
Dener – A questão do tráfico de animais silvestres é um problema mundial. É evidente que o Brasil, por possuir uma das biodiversidades mais ricas do planeta, torna-se um dos países mais visados por essa atividade criminosa. Mas no mundo inteiro há espécies que são procuradas para os mais diversos fins pelos traficantes de animais silvestres, seja na África, na Europa ou nos EUA.
FMA – E o tráfico internacional?
Dener – É bom ressaltar que a comunidade internacional também é responsável pela perda da biodiversidade brasileira, uma vez que ela é uma fomentadora desse tráfico.
As pessoas quando entram em um pet shop nos EUA, na Inglaterra ou na França, precisam saber que aquele animal que está disponível para a venda pode ter sido retirado ilegalmente do Brasil e se elas não tiverem essa consciência, a demanda vai continuar existindo e o nosso país vai continuar a perder sua riqueza biológica.
Nós temos uma fronteira enorme, é praticamente impossível impedir a saída desses animais, visto que grande parte do comércio é feito através das fronteiras secas. No Norte existe um tráfico muito grande nas fronteiras com a Venezuela, Bolívia e Peru. No Sul do país temos muita saída de animais através do Cone-Sul, como a Argentina, Uruguai, Paraguai.
Então é necessário que a comunidade internacional esteja ciente da sua responsabilidade nesse processo. Por isso, a Renctas está desenvolvendo com o Ministério do Meio Ambiente e o Ministério das Relações Exteriores uma campanha com o intuito de sensibilizar e chamar a atenção da comunidade internacional sobre sua responsabilidade.
FMA – Quais são os valores envolvidos nesta atividade criminosa?
Dener – Os números são absurdos. Nós temos espécies brasileiras, como a Arara azul de lear, que chega a ser comercializada por U$ 60 mil no mercado internacional.
Algumas serpentes raras chegam facilmente a U$25 mil no mercado de Singapura. É sempre bom atentarmos para o fato de que a lógica do tráfico é extremamente cruel: quanto mais raro for o animal, mais caro será seu valor no mercado ilegal e conseqüentemente, mais procurado. Temos o tráfico para fins científicos, conhecido como biopirataria, o tráfico para pet-shops, para criadores e colecionadores particulares. Tem até o tráfico que utiliza pedaços de animais e nesse tipo de tráfico entra o uso do animal para a indústria do artesanato ou fins medicinais.
Enfim, as variantes e os tipos de tráficos são muitos, e isso torna todas as espécies de alguma maneira passíveis de interesse para os traficantes. Um só traficante atende diversos seguimentos, ele tanto pode fornecer serpentes e escorpiões para pesquisadores estrangeiros, quanto borboletas para atender a indústria do artesanato na China.
FMA – Como todo esse lucro é distribuído na cadeia do tráfico?
Dener – O fato é que temos um componente social muito importante. A chamada linha de frente é composta pelos apanhadores, que são as pessoas com condições sócioeconômicas muito desfavoráveis. Essa camada da sociedade é a primeira a ser arregimentada pelos traficantes. É bom ressaltar que nenhuma atividade criminosa pode ser usada para justificar um aumento de renda.
FMA – Uns são explorados e quem ganha são os intermediários?
Dener – Isso mesmo. Os apanhadores são humildes, ganham muito pouco, mas têm papel fundamental. Êles que conhecem a região. É fácil encontrar pessoas que ganham R$0,20, R$0,50 por uma borboleta que ela captura e entrega na mão do traficante. Ou seja, ela não vai resolver o seu problema de renda e em seguida vai acabar tendo problemas ambientais, porque as espécies vão desaparecer.
Existem os intermediários, que são as pessoas que fazem o transporte da região de apanha para a região de venda, esses tem um lucro melhor. Mas o maior lucro é o do vendedor final. Principalmente das quadrilhas internacionais que atuam no Brasil, que são em torno de 350 a 400.
Assim, o grande lucro do tráfico fica nas mãos dos traficantes que têm conexões internacionais. Estamos falando de muito dinheiro. Da terceira maior atividade ilegal do mundo, perdendo só para o tráfico de drogas e armas. É um negócio que movimenta só no Brasil um bilhão e quinhentos milhões de dólares todos os anos.
FMA – E em termos de perda de biodiversidade?
Dener – A perda é incalculável, pois uma vez que uma espécie desaparece do seu habitat, nós nunca mais teremos a chance de recriá-la, e sabemos que todos os dias nós temos muitas espécies correndo o risco de desaparecer sem que nós tenhamos sequer conhecimento da sua existência.
Toda vez que perdemos um patrimônio genético, poderemos estar perdendo a única oportunidade de encontrar a cura para várias doenças. Hoje por exemplo, produtos para hipertensão arterial são feitos com o principio ativo de serpentes brasileiras. Toda espécie tem um papel extremamente importante no equilíbrio ambiental.
FMA – Existe risco para a saúde ter animal em casa?
Dener – Os riscos são muito grandes. Qualquer espécie possui microorganismos dentro de si. Uma vez que ela é retirada do seu habitat, a mesma passa por um processo de estresse muito grande e pode transmitir uma série de doenças ao ser humano, como a febre amarela, doença de chagas, leishimaniose, etc. Inclusive doenças desconhecidas da medicina, que são chamados de vírus emergentes.
No Brasil, nós já tivemos vários casos de hantavírus transmitidos por animais silvestres. Assim, quando uma pessoa leva para casa um animal de origem ilegal, ela está expondo sua família a um risco muito grande. Mais do que se pensa .
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