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Pororoca de expedições

Amazonas: a nascente é um mito e a foz é uma lenda






Paula Saldanha e Roberto Werneck afirmam que os registros mostram que o Amazonas é ainda mais longo, pois faltam ser incluídos na medição cerca de 300km

Silvestre Gorgulho
Que me perdoe os Nilos, os Eufrates, os Ganges, os Danúbios, os Mississipes, os Yang Tsés, os Renos e os Tejos. Mas rio imponente, exuberante e místico é o rio Amazonas. Tão misterioso e tão fantástico que até hoje sua nascente é um mito e sua foz uma lenda. É tão descomunal que nem se sabe se o Amazonas deságua em estuário ou delta. No google.com encontramos 236 referências como delta e 206 para estuário. A cada ano, o rio aumenta 1 km ao depositar sedimentos sobre o Atlântico. Por isso, ainda hoje se discute onde o Amazonas termina. O rio é tão importante que influi mais do que no destino dos nove países que compõem sua bacia hidrográfica, mais do que na geopolítica de um continente e até mais do que no dia-a-dia das cidades ribeirinhas. O rio Amazonas influencia na vida do Oceano Atlântico, no clima do mundo e até no campo gravitacional da Terra.
Ninguém entra num rio, como o Amazonas, e continua o mesmo. Seja um simples turista, seja um cientista, seja um surfista que vai desafiar a Pororoca. Assim aconteceu com navegador Vicente Pinzón (1500), com Francisco Orellana (1542), com a Bandeira de Pedro Teixeira (1637) com, Jacques Cousteau, com Frank e Helen Schreider (1970) com Loren McIntyre (1971) e com a jornalista Paula Saldanha e o fotógrafo e cineasta Roberto Werneck. Assim será, também, com certeza, com os 43 pesquisadores dos nove países que compõem a bacia hidrográfica, que acabam de partir para uma viagem de pesquisa da foz à nascente. O rio Amazonas é assim, gigante pela própria natureza. Depois que o casal Paula Saldanha e Roberto Werneck chegaram à nascente geográfica do grande rio, em 1994, e puderam mostrar em filmes, fotos e relatos esta epopéia, nem Paula e nem Roberto foram mais os mesmos: das filmagens desta expedição nasceu o programa Expedições, que comemora em julho 10 anos.



Paula Saldanha e Roberto Werneck – ENTREVISTA







O rio Amazonas nasce no sul do Peru, nas cabeceiras do
Apurimac-Ucayali. Coordenadas 15º 30′ 49″ LS e 71º 40′ 36″ LO

Em dezembro de 2000, várias instituições científicas de todo o mundo, incluindo a National Geographic Society e a Smithsonian Institution, confirmaram o local da nascente, na Quebrada Carhuasanta, nevado Mismi, exatamente onde a dupla de documentaristas Paula Saldanha e Roberto Werneck esteve em 1994.Considerando esta nova nascente, no Nevado Mismi, o rio Amazonas tem seu comprimento aumentado em 90 km para o sul. Paula e Roberto afirmam, desde 1995, que os registros históricos mostram que o Amazonas é ainda mais longo, pois faltam ser incluídos na medição total cerca de 300 km até o final de seu delta. A dupla concluiu o documentário com gravações no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, em 1995, informando aos pesquisadores as coordenadas desta nascente e solicitando a medição do grande Amazonas. Agora que o local da nascente do Amazonas foi homologado em mapa publicado pela Smithsonian Institution, Paula e Roberto estão propondo a diversas instituições que realizem trabalhos para a definição do limite extremo do delta, no oceano Atlântico, para posterior medição total deste rio lendário que em 1500 foi chamado de Mar Doce.


Folha do Meio – Como surgiu o projeto da expedição à nascente do Amazonas, realizada por vocês há 10 anos?
Paula Saldanha –
Já estávamos acompanhando a polêmica sobre a verdadeira nascente do Amazonas desde 1971, quando a revista americana Horizon publicou uma matéria de Frank e Helen Schreider. Eles foram os primeiros expedicionários a contestar a suposta nascente do rio Marañon, norte do Peru, como sendo o nascimento do Amazonas. Mas eles achavam que a nascente era no Monte Huagra.
Roberto Werneck – O Loren McIntyre, primeiro expedicionário a chegar à verdadeira nascente no Nevado Mismi, se inspirou nesse relato do casal Schreider e foi para o sul do Peru, a serviço da revista National Geographic. Fez um trabalho esplêndido com pesquisadores peruanos e determinou a nascente do Apurimar-Ucayali no Nevado Mismi, como sendo o ponto mais distante de onde brotam águas em direção à foz do Amazonas.


FMA – A viagem de vocês seguiu os passos de Loren McIntyre?
Roberto –
Curiosamente não tivemos conhecimento da expedição do Loren até chegar à nascente no Nevado Mismi e dar de cara com uma cruz em homenagem a ele. Os peruanos falavam de expedições científicas ao local, mas não nos deram detalhes.
Paula – Quando os cientistas do Instituto Geográfico Nacional do Peru nos forneceram as coordenadas da nova nascente, registramos a nascente do Nevado Mismi num mapa em nosso livro “Expedições”, publicado pela Editora Salamandra, em meados de 1994. Tivemos pouquíssimo tempo para preparar a viagem no mês de novembro. Fomos com a cara e a coragem em busca da verdadeira nascente do Amazonas.


FMA – Na parte final da expedição pelos Andes, foi difícil subir as montanhas? Como foi feita a escalada?
Roberto
– Não fizemos nenhum preparo físico anterior à viagem, só preparo mental. Saímos do nível do mar, subimos os Andes e passamos a caminhar acima de 5.500m de altitude. Foi muito difícil. Tivemos o chamado “sorocho”, ou mal da altitude.
Paula – A nascente do Amazonas fica na região mais seca do planeta, nos Andes, na metade da atmosfera terrestre! O ar rarefeito, pouco oxigênio… tudo dificultava a caminhada. Somente na descida, quando Roberto levou um tombo e quebrou uma costela, descobrimos que a equipe que nos acompanhava não tinha rádio para comunicação, nem garrafas de oxigênio para emergência. Mas os guias foram fundamentais para o sucesso da expedição.


FMA – Como foi o retorno ao Brasil, após a conquista?
Paula –
Passamos as coordenadas da nascente para o INPE e fizemos a proposta de um workshop com pesquisadores do Brasil e do exterior, para ser feita a medição total do rio. Soubemos, recente, que o pesquisador Paulo Martini levou adiante os trabalhos, que ainda estão em andamento.
Roberto – O Brasil tem condições de realizar todas as pesquisas. Com tecnologia de ponta, imagens de satélite e softwares, a medida total do rio poderá ser feita, tão logo seja definido o ponto extremo em sua foz.


FMA – E a questão da foz, não há controvérsias?
Roberto –
Evidente que há. Sem definir onde o rio termina, fica impossível concluir a medição. Muitos trabalhos divulgam um ponto no Canal Norte, como sendo o final da foz do Amazonas. Não se leva em consideração as ilhas que ficam mais ao norte e nordeste, formando o complexo e imenso delta. Não há mais dúvidas quanto ao local da nascente. Agora a questão é justamente saber até onde vai a foz. Alguns pesquisadores insistem em afirmar que o canal sul, por Breves, não deve ser considerado para medição do Amazonas. Mas estaremos apresentando toda esta questão agora, em julho, no Expedições “Amazonas, o maior rio do mundo”.
Nosso grande geógrafo, o Prof. Aziz Ab’Saber, deu uma entrevista que vale a pena lembrar. Diz que “Os dois canais foram criados pelo Amazonas, numa história geológica complexa. Para se medir o rio é preciso considerar sua nascente extrema, nos Andes, e seu braço mais extenso, até o final de seu delta”.
Paula – Só queria acrescentar que estamos lançando os documentários “Nascente do Amazonas”, em DVD, remasterizado e, também “Amazonas, o maior rio do mundo”, onde mostramos a entrevista que fizemos com Loren McIntyre.
Nesse último especial Loren, que faleceu recentemente, diz que escalamos pelo caminho mais difícil, mas nós chegamos exatamente no local onde ele esteve. Explicou então que, depois de décadas de pesquisas, a homologação desta nascente ocorreu em dezembro de 2000.


DADOS TÉCNICOS


O rio Amazonas nasce na Quebrada Carhuasanta, Nevado Mismi, Cordilheira de Chila, sul do Peru, nas cabeceiras do Apurimac-Ucayali, a 5.597 metros de altitude. Coordenadas 15º 30′ 49″ LS e 71º 40′ 36″ LO.


O rio Nilo mede 6.690km. O rio Amazonas, levando em conta a nascente no Monte Huagra, foi publicada no Guinness Book de 1993, como tendo 6.750km. Se levar em conta a nascente no Nevado Mismi, o Amazonas ganha mais 90km para o sul, ou seja, passa para 6.840km.


Falta agora comprovar definitivamente o final do delta, para ter então o cumprimento total do rio Amazonas. O interessante é que, devido à grande quantidade de água e ao processo de sedimentação, o rio Amazonas continua aumentando a cada ano. Um quilômetro por ano.


Pelas convenções internacionais, é considerada a nascente de um rio o lugar onde nasce seu formador mais extenso – no caso do Amazonas, o tributário mais longo e volumoso não é o Marañon, como se acreditava na década de 70, mas sim o Ucayali.


Depois de três décadas de pesquisas e diversas expedições às cabeceiras do Apurimac-Ucayali a Smithsonian Institution publicou um mapa homologando a nascente no Nevado Mismi. Uma expedição conjunta da National Geographic Society e Smithsonian Institution, em julho de 2000, mobilizou 22 cientistas de cinco países e forneceu os dados finais para a homologação.


Em junho de 2005, outra expedição formada por 43 profissionais partiu para pesquisar o rio Amazonas. São técnicos especialistas em desertificação, economia, meio ambiente, engenharia, médicos, geólogos, botânicos, geógrafos, sociólogos, arqueólogos e antropólogos, agrimensores e jornalistas de todos os países da bacia hidrográfica [Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela]. A expedição vai pesquisar a região das cabeceiras do Ucayali e o conteúdo sedimentológico que vem erodindo os Andes e se dispersando na bacia hidrográfica Amazônica. Os cientistas vão fazer uma radiografia das águas doces da Amazônia Sul Americana, que representam 20% de toda água potável disponível no planeta.

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Histórias inspiradoras de mulheres que superaram o câncer de colo do útero

Se detectada a tempo, doença tem chances altas de cura, sinalizam especialistas

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Agência Brasília* | Edição: Chico Neto

 

A professora do ensino fundamental Sabatha Borges, 41, ia ao médico regularmente e fazia exames ginecológicos com frequência, pois sempre teve o sonho de ser mãe. Aos 39 anos, grávida, sofreu um aborto espontâneo e precisou fazer a retirada do saco gestacional, procedimento que detectou um câncer de colo do útero em fase inicial.

Após um aborto espontâneo, Sabatha Borges (na foto, com o marido e a filha, Ilke), teve um câncer detectado, tratou-se, passou por uma cirurgia e conseguiu engravidar novamente | Fotos: Divulgação/Agência Saúde

“Para mim, foi um grande baque”, conta. “A gente nunca imagina isso. Eu me senti sem chão. Já estava muito triste por ter perdido meu filho, e ainda receber essa notícia… Foi muito doloroso”.

“Faixa etária de 25 a 64 anos tem a maior ocorrência das lesões de alto grau, passíveis de serem tratadas para que não evoluam para o câncer”Sônia Gallina, médica

Após uma cirurgia difícil em setembro de 2021, quando Sabatha teve parte de seu útero retirado, os médicos fizeram de tudo para manter uma estrutura que permitisse a ela engravidar de novo. Oito meses mais tarde, isso aconteceu naturalmente. E, depois de uma gestação sem sustos, nasceu sua filha Ilke. Hoje curada, Sabatha faz o controle anual e sonha ter outros filhos.

“Nunca tive sintomas e sempre me cuidei”, relata. “Além disso, os médicos da Secretaria de Saúde foram um grande apoio. Tive o suporte e o acompanhamento da doutora Sônia Maria Ferri Gallina e do doutor Fernando Henrique Batista da Mota, do Hospital Regional de Ceilândia. Eles me disseram que meu sonho de ser mãe ainda seria possível.”

A ginecologista Sônia Gallina, do Hospital de Base, lembra que os exames preventivos sempre são importantes: “Se diagnosticado precocemente, o câncer apresenta uma alta taxa de cura e se o tratamento for iniciado logo após o diagnóstico, aumenta a sobrevida e as chances de cura da paciente”.

O Mês da Mulher é marcado também pelo Dia Mundial da Prevenção do Câncer de Colo do Útero, celebrado neste domingo (26).

“Não tenham medo de investigar algo incomum por conta do resultado. Idade não é regra, e o autocuidado salvou minha vida”Sabatha Borges, professora

Conselhos

Terceiro tumor maligno mais frequente na população feminina (com exceção do câncer de pele não melanoma) e a quarta causa da morte de mulheres por câncer no país, o câncer de colo do útero é um problema de saúde pública no Brasil. Apesar de ser uma doença frequente, as lesões iniciais podem ser identificadas pelo teste de Papanicolau e, quando tratadas, evitam o surgimento da doença.

Sabatha aconselha mulheres mais jovens: “Conheçam-se, façam seus exames, como a citologia cervical. Não tenham medo de investigar algo incomum por conta do resultado. Sua vida e sua saúde são o que importa. O diagnóstico precoce aumenta as chances de cura. Idade não é regra, e o autocuidado salvou minha vida”.

Histórico familiar

Especialistas alertam que o histórico familiar é um indicativo para começar a prevenção o quanto antes. Dois ou mais parentes de primeiro grau (mães, irmãs ou filhas) ou de segundo (neta, avó, tia, sobrinha, meia-irmã) com câncer de útero, mama e/ou de ovário já indicam alto risco de surgimento da doença.

Mislene Dantas (à esquerda) teve câncer de colo de útero e um tumor no rim, mas venceu tudo com o tratamento: “Eu me sinto renascida, começando tudo de novo”

É o caso da dona de casa Mislene Dantas, 44. Em 2019, sua mãe teve câncer na bexiga. Um ano antes, Mislene apresentou um sangramento e descobriu que estava com câncer de colo do útero. “O câncer já estava em estado avançado”, lembra. “Tive que começar um tratamento rápido de quimioterapia e radioterapia. Todo o meu tratamento foi no HRT [Hospital Regional de Taguatinga]”. Ainda abalada com a notícia, ela também descobriu um tumor no rim. “Foi literalmente uma bomba na família. Veio tudo de uma vez, eu achei que não ia conseguir. Tive realmente medo de morrer”. Já a mãe de Mislene não sobreviveu.

Mãe de Camila, 24, e Thaynara, 26, Mislene esteve em tratamento durante cinco anos, com radioterapia, quimioterapia e braquiterapia. Hoje curada, faz acompanhamento anual pelo SUS. “Eu me sinto renascida, começando tudo de novo. Sempre que volto ao HRT para repetir os exames, fico com medo, mas neste ano a equipe de médicos me disse que estamos na reta final, que depois desses exames vou estar totalmente liberada. Isso quer dizer que não tenho mais sinal de câncer.”

Mislene agora sonha em voltar a estudar e ajudar pessoas que passam pela mesma situação: “Quero fazer psicologia, tenho muitos sonhos. Pretendo ajudar pessoas e fazer tudo que eu sempre quis. Eu tive uma segunda chance”.

Prevenção

O exame de Papanicolau deve ser feito pelas mulheres ou qualquer pessoa com colo do útero, na faixa etária de 25 a 64 anos que já tiveram atividade sexual. Isso inclui homens trans e pessoas não binárias designadas mulher ao nascer.

“Essa faixa etária tem a maior ocorrência das lesões de alto grau, passíveis de serem tratadas para que não evoluam para o câncer”, aponta a ginecologista Sônia Gallina. “Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a incidência deste câncer aumenta nas mulheres entre 30 e 39 anos de idade e atinge seu pico na quinta ou sexta década de vida.”

A vacina contra o HPV é uma das principais formas de prevenir a doença. Está disponível gratuitamente pelo SUS, sendo destinada a meninas e meninos de 9 a 14 anos. A eficácia do imunizante chega a prevenir até 70% dos cânceres de colo de útero e 90% das verrugas genitais.

Outra orientação é o uso do preservativo em todas as relações sexuais, atitude que favorece a diminuição do risco de contágio do vírus. As consultas médicas, bem como os exames preventivos periódicos, também são fundamentais para o diagnóstico de qualquer alteração na saúde.

*Com informações da Secretaria de Saúde

 

 

 

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Especialistas dizem que produzir trabalho decente no Brasil é desafio

Resgate de trabalhadores em condição degradante tem aumentado

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Produzir trabalho decente no Brasil é desafiador, mas caminho necessário para o enfrentamento ao trabalho análogo ao escravo. A avaliação é de especialistas ouvidos pela Agência Brasil em meio a repercussões do grande número de casos de resgate de trabalhadores nessas condições nos últimos meses.

Para o procurador do Ministério Público do Trabalho em Alagoas (MPT-AL) e coordenador regional de Combate ao Trabalho Escravo, Tiago Muniz Cavalcanti, o enfrentamento dessas situações se faz em duas vertentes: a repressiva e a preventiva.

“Quando falamos em prevenção, existem duas formas, a prevenção primária é quando o crime ainda não ocorreu. A secundária é quando o crime já ocorreu e precisamos acolher essa vítima, reverter os fatores de vulnerabilidade e reincluí-la no trabalho digno, para que não volte a ser novamente vítima do trabalho escravo. A vertente preventiva, tanto primária quanto secundária, é o nosso grande gargalo”, explicou.

Segundo ele, é dever do Estado implementar políticas públicas de acesso a direitos sociais, sobretudo trabalho decente, nas comunidades das vítimas em potencial. “O que fazemos diariamente, eu digo Estado, Ministério Público e sociedade civil que combate trabalho escravo, é tentar reverter todos os fatores de vulnerabilidade da população, para que tenhamos o mínimo de exploração. Ou seja, para que a exploração não seja aviltante a ponto de termos que resgatar aqueles trabalhadores de situações que chamamos atualmente de análogas à escrava porque a escravidão já não existe”, disse Cavalcanti.

Na mesma linha, a diretora executiva do Instituto do Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (InPacto), Marina Ferro, avalia que o período da pandemia de covid-19 levou ao aumento do desemprego e a oportunidades mais precarizadas de trabalho. “Combater o trabalho escravo é também produzir oportunidade e reduzir a desigualdade. Quanto mais você tem desigualdade social, mais fácil vai ficar de precarizar as situações, quanto mais você tira as pessoas da pobreza, da fome e gera oportunidades dignas, menos isso acontece”.

Para ela, a herança escravocrata no Brasil ainda é muito forte, pois com a abolição da escravidão não houve a inserção social de quem vivia nessa condição. “Por isso, continuamos um país muito desigual, que reproduz muita vulnerabilidade e que não trata o ser humano com dignidade, como um par”, afirmou.

As terceirizações, segundo Marina, também são fatores importantes para a precarização do trabalho. “É fator muito sensível para as empresas se anteciparem, prestar atenção e fazer a devida diligência na sua cadeia. Elas precisam olhar a cadeia produtiva, contratos com terceiros e não se eximir dessa responsabilidade. Então, acho que há um papel do Estado no combate ao trabalho escravo e um papel das empresas, que podem antecipar essa questão e evitar que isso aconteça”.

A legislação brasileira atual classifica como trabalho análogo à escravidão toda atividade forçada ou submetida a jornadas exaustivas, ou ainda desenvolvida sob condições degradantes ou com restrição da locomoção do trabalhador. Também é passível de denúncia qualquer caso em que o funcionário seja vigiado constantemente, de forma ostensiva, por seu patrão.

Outra forma de escravidão contemporânea reconhecida no Brasil é a servidão por dívida, que ocorre quando o trabalhador tem seu deslocamento restrito pelo empregador, sob alegação de que deve liquidar determinada quantia de dinheiro.

O presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), Bob Machado, alertou que, ao longo dos últimos anos, houve redução de orçamento e “redução drástica” do número de auditores fiscais do trabalho. Hoje, o país tem o menor número de auditores fiscais dos últimos 33 anos e cerca de 45% dos cargos estão vagos.

“Isso tem impacto direto no combate ao trabalho escravo, ao trabalho infantil, na inserção de aprendizes no mercado de trabalho, na inserção de pessoas com deficiência, no combate a fraudes trabalhistas, que visam majoritariamente reduzir a remuneração de trabalhadores, e também a busca por ambiente de trabalho mais seguro, visando à redução de acidentes”, disse Machado. Ele destacou outras atribuições dos auditores que visam à criação de trabalho decente.

Na última semana, o ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, informou que pretende promover concurso para recompor o quadro de fiscais do trabalho.

Aumento de casos

O início de 2023 trouxe novamente à tona casos de trabalhadores em situações análogas à de escravidão. No Rio Grande do Sul, 207 trabalhadores enfrentavam condições de trabalho degradantes nas terras das vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton, em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha. As empresas assinaram termo de ajuste de conduta com o Ministério Público do Trabalho (MPT) e se comprometeram a pagar R$ 7 milhões em indenizações.

Trabalho escravo no Brasil
Trabalho escravo no Brasil – Arquivo/Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Em Goiás e Minas Gerais, um grupo de 212 trabalhadores que prestava serviço a usinas de álcool e produtores de cana de açúcar foi resgatado, durante operação do Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Escravo. Na última sexta-feira (24), mais pessoas foram resgatadas, dessa vez no festival de música Lollapalooza, no Autódromo de Interlagos, em São Paulo. Em todos esses casos, os trabalhadores eram contratados por uma empresa de prestação de serviços terceirizados que intermediava a mão de obra.

Desde 1995, as fiscalizações e os resgates de trabalhadores são feitos pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel, coordenado por auditores fiscais do Trabalho, em parceria com o MPT, a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União, entre outras instituições.

Os resgates vêm aumentando nos últimos anos. Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), até o início de março as autoridades resgataram 523 vítimas de trabalho análogo ao escravo. Em 2022, conforme o Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho, 2.575 trabalhadores foram encontrados em situação de escravidão contemporânea, um terço a mais que em 2021.

O MPT e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) também desenvolveram o Observatório de Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, com dados e informações sobre políticas de trabalho.

O procurador Tiago Cavalcanti destacou que, de acordo com a organização internacional Walk Free Foundation, em 2014 o Brasil tinha cerca de 150 mil pessoas escravizadas. “Os números mais recentes mostram que a gente tem 370 mil, ou seja, mais do que duplicou o número de pessoas escravas, pessoas que estão, na verdade, aguardando resgate”, disse ele, explicando que a média de resgates é de pouco mais de 2 mil trabalhadores por ano.

Precarização do trabalho

Para Cavalcanti, no mundo capitalista sempre existirá escravidão. “A escravidão, na sua accepção mais pura e fiel, que é a exploração aviltante do ser humano, ou seja, o uso e o descarte de seres humanos, é inerente à nossa sociedade”, afirmou, acrescentando que a solução para o problema passa por uma mudança cultural.

Adicionalmente, segundo ele, a agenda de políticas públicas dos governos que se sucederam após o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff não favoreceram a população de baixa renda e aumentaram o nível de miserabilidade da população. Por isso, o número de pessoas que se submetem a qualquer trabalho aumentou vertiginosamente.

“Eu poderia citar inúmeros exemplos. Tivemos um estancamento da política de reforma agrária, um aumento da desigualdade social, o aumento das relações autoritárias de poder, ou seja, o coronelismo voltou com força muito maior. Tivemos uma precarização dos níveis de proteção social, ou seja, a legislação trabalhista foi flexibilizada, desregulamentada, a proteção social, da Previdência Social, ela foi flexibilizada. Tivemos o fenômeno da uberização (uso de aplicativos) das relações de trabalho de forma muito intensa, de certo modo fomentado, incentivado pelos últimos governos”, disse o procurador.

Para o secretário de Inspeção do Trabalho do MTE, Luiz Felipe Brandão de Mello, a narrativa do governo anterior, que defendia que “o importante é o trabalho e não só os direitos”, intensificou a precarização do emprego no Brasil. “Então, uma série de fatores juntos que levam a esse quadro. É inacreditável que em pleno 2023 estejamos discutindo o trabalho escravo no Brasil. Isso não é trabalho de uma instituição, mas preocupação que deve ser de toda a sociedade e ter grande mobilização”, destacou.

O presidente do Sinait, Bob Machado, concorda que, associada à cultura da escravatura, a reforma trabalhista e a terceirização irrestrita promovida pelos últimos governos reduziram as condições de trabalho decente. “Nós vivemos um período muito grande de contraposição entre o trabalho e os direitos, o que é direito, o que é emprego. E nesse sentido alguns interpretaram de maneira extrema, reduzindo os trabalhadores à condição análoga de escravos”, observou.

Cadeia produtiva

Segundo Marina Ferro, do InPacto, o setor produtivo precisa de práticas políticas para a prevenção de trabalho escravo nas cadeiras, dedicar recursos e esforços constantes na identificação de riscos. “As empresas precisam se comprometer com a causa e criar procedimentos, ter estrutura interna, ter gestão de riscos sobre aqueles possíveis e até os potenciais que possa vir a ter numa cadeira produtiva.A partir desse mapeamento de riscos inerente a cada setor, você consegue então dedicar esforços, ações para evitar que eles aconteçam”, disse.

Trabalho escravo
Trabalho escravo – Ministério Público do Trabalho – Divulgação

O Instituto do Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (InPacto) é apoiado por grandes empresas do país e é uma das respostas institucionais do setor privado do Brasil ao problema. Ele atua na busca de soluções para as cadeias produtivas globais, na prevenção ao trabalho escravo, envolvendo diversos atores e organizações sociais.

Uma das ferramentas criadas pelo instituto é o Índice de Vulnerabilidade InPacto, que permite estabelecer uma escala de risco de trabalho escravo no país, para que as empresas se antecipem na promoção do trabalho decente em seus locais de produção.

“Está ficando cada vez mais claro também, não só pela nossa legislação, mas também para quem exporta, por exemplo, para a União Europeia, há uma legislação de fora que está cada vez mais colocando a questão da devida diligência como algo essencial para os setores produtivos. Então, cada vez mais, as empresas vão ser cobradas pela responsabilidade de fiscalizar toda a sua cadeia, então não vai ter como dizer ‘contratei de um terceiro, não tenho responsabilidade’. O ‘eu não sabia’ não vai mais rolar, a empresa do futuro precisa se precaver”, afirmou Marina.

O agronegócio é o setor econômico mais frequentemente envolvido em casos de trabalho análogo ao escravo. De 1995 a 2022, das 57.772 pessoas resgatadas dessa situação, 29% atuavam na criação de bovinos, 14% no cultivo de cana-de-açúcar e 7% na produção florestal.

Para a especialista, a transformação do agro no Brasil está atrelada à sua produtividade. “Há setores que já demonstram uma mudança, tanto no sentido de trazer a renda para o produtor, mas também de dar boas condições de trabalho. Então, acho que que é preciso uma transformação cultural, principalmente na forma de pensar essa produção, mas também de oferecer condições. Com essa legislação cada vez mais forte, tanto nacional quanto internacional, a questão reputacional, se as empresas não começarem a se antecipar e se adequar, lá na frente a conta chega”.

O procurador do Trabalho, Tiago Cavalcanti, explica que nem todos os beneficiários do trabalho escravo podem ter o dolo (a má-fé) de escravizar, mas a culpa eles têm. “É muito fácil saber que as condições de execução do trabalho são precárias na medida em que o pagamento é muito baixo, à medida que você não tem uma fiscalização correta. As empresas que estão na ponta da cadeia, ou seja, empresas poderosas economicamente, a partir do momento em que elas subcontratam e fecham os olhos, passam a ser responsáveis por aquilo que ocorre na sua cadeia produtiva, principalmente quando a produção ocorre na sua propriedade”, disse, citando como exemplo o caso das vinícolas no Rio Grande do Sul.

Cavalcanti chama de “cegueira deliberada” essa atitude dos setores produtivos. “A identificação é óbvia. Ou seja, é uma cegueira proposital, ela [a empresa] fecha os olhos, finge que não conhece aquela realidade, quando na verdade ela tem todos os elementos para saber que aquilo existe de fato”, explicou.

Instrumentos de repressão

Na vertente da repressão, do combate ao trabalho escravo, o procurador avalia que o Brasil, “até certo ponto”, é modelo em âmbito internacional. “Temos alguns instrumentos importantes, como o Grupo Móvel que deflagra a força tarefa de combate ao trabalho escravo, a lista suja, existem órgãos que lidam de forma boa em relação à repressão, do ponto de vista administrativo, trabalhista e criminal”. Ele lembrou que, recentemente, a Justiça reconheceu a imprescritibilidade do crime trabalho escravo.

Cavalcanti confia que, com o novo governo, “teoricamente mais compromissado com a política de direitos humanos”, esses instrumentos sejam preservados. O procurador contou que a estrutura de combate a esse crime esteve ameaçada, mas conseguiu resistir durante o período pós-impeachment graças à mobilização dos órgãos públicos fiscalizadores e da sociedade civil organizada.

Segundo o procurador, a última grande medida de combate ao trabalho escravo é do governo Dilma, a emenda constitucional que alterou o Artigo 243 da Constituição Federal para prever a expropriação de terra daqueles que escravizam. “É importante ressaltar que não veio o governo do nada e criou esses instrumentos. Temos esses instrumentos porque o Brasil foi demandado em âmbito internacional para que fizesse alguma coisa em face do trabalho escravo”, destacou.

lista suja do trabalho escravo é o cadastro de empresas autuadas pelo Ministério do Trabalho por submeter seus empregados a condições análogas à escravidão. A inclusão do nome do infrator na lista só ocorre após decisão administrativa final. Ela é publicada a cada seis meses e a última foi em outubro do ano passado.

Segundo Marina Ferro, um dos compromissos dentro do Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo é que as empresas usem a lista suja para não fazer acordos comerciais com empresas que estejam lá. “Então, a lista suja se tornou um super instrumento para que as empresas conhecessem quem estivesse utilizando mão de obra análoga à escrava e impusessem restrições comerciais a essas pessoas jurídicas. É ferramenta de demonstração. Nenhuma empresa quer estar lá, porque além de ter a consequência monetária, também tem a reputacional. Depois é complicado para as empresas reconstruir”, explicou.

Segundo o secretário de Inspeção do Trabalho do MTE, Luiz Felipe Brandão de Mello, o objetivo do governo é fortalecer a fiscalização para identificar e coibir a exploração criminosa da mão de obra no país. “Temos que fazer uma avaliação, na verdade, para ver realmente o que está acontecendo para essa explosão do número de casos. Em cima disso, teremos que fazer análise para ver haverá redirecionamento das ações. Diferentemente do que já foi, no passado, que era muito concentrado numa determinada região do país, agora está ocorrendo em todas as áreas, então temos que ver como atuar”.

Na última semana, o ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, também defendeu a revisão de normas de terceirização trabalhista.

Para o presidente do Sinait, Bob Machado, a revisão da reforma trabalhista e da política de terceirização precisa ser feita no âmbito do Congresso Nacional, de maneira ampla, em debate com as entidades da sociedade civil. “Para que possa, a partir daí, resultar em alterações na legislação que visem prioritariamente proteger os trabalhadores, garantir trabalho digno para todos”, destacou.

Canais de denúncias

Bom Jardim de MInas (MG) 05.03.2023 - Operação resgata três trabalhadores em condições análogas à escravidãono Sítio Serra Verde, em Bom Jardim de Minas (MG). Foto: Minstério do Trabalho/Divulgação
Bom Jardim de MInas (MG) 05.03.2023 – Operação resgata três trabalhadores em condições análogas à escravidãono Sítio Serra Verde, em Bom Jardim de Minas (MG). Foto: Minstério do Trabalho/Divulgação – Ministério do Trabalho/Divulgação

As denúncias de trabalho análogo ao escravo podem ser feitas pela população, de forma anônima, por meio de canais como o Disque 100, o site do Ministério Público do Trabalho (MPT) e o Sistema Ipê, da Auditoria Fiscal do Trabalho.

O procurador do Trabalho, Tiago Cavalcanti, alerta que as denúncias precisam ser fortes e com o máximo de informações possíveis, que levem ao resgate de trabalhadores. Segundo ele, as diligências envolvem diversos órgãos e têm um custo para o Estado.

“Às vezes, as denúncias que chegam são frágeis, ou seja, não têm a localização exata, a identificação do empregador, não diz quais são os fatos que ensejam trabalho escravo, ou seja, o trabalhador tá sem comida, tá dormindo no curral com a vaca, enfim, os fatos que caracterizam o trabalho escravo contemporâneo”, exemplificou. “Então, só fazemos esse tipo de diligência quando a denúncia, de fato, é mais sólida, no sentido de que acreditamos que vai resgatar trabalhadores”, explicou.

Edição: Graça Adjuto

 

EBC

 

 

 

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CPI solicita reunião com ministro Alexandre de Moraes

Foto: Rinaldo Morelli/CLDF

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Os membros da CPI dos Atos Antidemocráticos da Câmara Legislativa enviaram, nesta sexta-feira (24), ofício ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, solicitando reunião para tratar de questões pertinentes à investigação em curso. De acordo com o presidente da comissão, deputado Chico Vigilante (PT), alguns requerimentos aprovados pela CPI da CLDF têm relação com depoentes ou fatos apurados nos inquéritos em que Moraes é relator.

Os distritais também se colocam à disposição para contribuir com investigação em curso no STF.

 

 

* Com informações da assessoria de imprensa do deputado Chico Vigilante 

Agência CLDF

 

 

 

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